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01/09/16

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NAUFRÁGIO


António Mesquita


"(...) era maravilhoso, esse homenzinho moreno de bigode encerado de alferes, quando falava em acordar com o apito das suas máquinas a vapor os touros alados do palácio de Sargon. Napoleónico ainda pela fé na sua estrela, por um optimismo comunicativo e pela profunda possessão desta ideia de que só se perde definitivamente uma questão quando se crê que está perdida."

"La vie en fleur" (Anatole France)

Porque, como sabemos, há causas que continuam vivas, apesar do resto do mundo ter deixado de acreditar nelas. Os impérios podem ruir, o Grande Corso podia ter sido já autopsiado na sua ilha que, por muito tempo, tudo isso, como os mortos que nos são mais próximos, continua de uma certa forma, a existir.

Nada parece mais contra-intuitivo que a ideia da ressurreição de um califado medieval em plena transformação tecnológica das sociedades. Porque é essa a novidade desta revolução que os hegelianos de esquerda e de direita não souberam antecipar: é que o 'global' está a derreter esses grandes 'icebergs' do passado que permitiram até agora o tempo e o espaço separados, a coexistência de mundos que eram fábula uns para os outros, graças à não-comunicação.

O discurso de Trump é o último assomo de um náufrago para se agarrar à jangada. Ele quer travar a força que tudo arrasta. E o perigo (tão natural é o seu esbracejar) são os que o candidato arrasta consigo.

Nenhum deles quer considerar que a sua causa está perdida.




MEU QUERIDO MÊS DE AGOSTO


Mário Martins 

https://www.google.pt/search?q=dino+meira+meu+querido+mes+de+agosto




Já se vê Vilar Jolie como, com algum desdém, lhe chamam os “portugas” de dentro, sabem lá eles o que passámos, se temos hoje um BêEme, uma casa de sete quartos na terra, confesso que não sabemos bem o que vamos fazer-lhe porque nem filhos, que têm a sua vida montada lá na França, nem netos, que já lá nasceram, querem vir, se temos um pé-de-meia no banco do que, dizem agora, era o dono disto tudo, quis Nosso Senhor e a Virgem Santíssima que eu não pertencesse ao grupo dos lesados do BES, também por isso não deixaremos, eu e a minha Esposa, de irmos a Fátima dar graças e de ser generosos com a Igreja e a Comissão de Festas da aldeia, e se temos, enfim, a expectativa de uma razoável retraite, tivemos que comer o pão que o diabo amassou, para além de aturar o chic de muitos messieurs e madames, é certo que, em compensação, não tivemos que aguentar o regime bolorento do Salazar, mas sobretudo os primeiros anos foram muito duros, a viver em casas de lata, sem mulher, num ambiente em que não só a língua era estranha, os “portugas” de dentro sabem lá, embora sofressem a ditadura, a pobreza e o atraso, tinham o conforto da língua e da tradição, a fronteira há muito que ficou para trás, faz muito calor e cheira a incêndio, mas já se divisa ao longe a nossa igreja, não é bonita oh! mulher? olá Ti Rosa, ainda se lembra de mim? então não havia de lembrar, és o Tono, e o Ti Jaquim, ainda é ele que puxa as cordas dos sinos da igreja? já não, coitado, tomara ele que o deixem, a viagem correu bem? venham cá lanchar, à tardinha está-se bem debaixo da ramada, os teus primos também já chegaram, sempre se arranjam aí umas rodelas de chouriço, broa e azeitonas e aquele tinto que tu conheces, não sei se era do vinho a escorrer, sanguíneo, pela malga e pela goela abaixo, mas que aquela música do tipo a que chamam pimba, vinda do lado da igreja, mexia comigo lá isso mexia:


IDE EM PAZ

Mário Faria

 (pt.depositphotos.com)


A atmosfera era de pesar: um familiar tinha morrido. Casa cheia a assistir à missa de corpo-presente. O efeito de estufa que a capela produzia aumentava em alguns graus a temperatura declarada. Era inevitável que a sonolência provocasse sinais indesejáveis de desrespeito que tive de combater. A estratégia foi tentar prestar a máxima atenção à cerimónia e seguir o ofício com a possível dedicação. Estava no meio de crentes muito aplicados. O padre de serviço, nem tinha boa dicção nem se ouvia. Os meus olhos faziam um brutal esforço para estarem abertos. No meio do levanta, senta e ajoelha, a cerimónia humanizava-se quando os fiéis respondiam às ladainha, respondendo: “ouvi-nos Senhor”. Embora tivesse sido educado segundo os princípios da Santa Madre Igreja, estou muito destreinado e não consigo descodificar nem a encenação, nem a representação. A cerimónia religiosa durou cerca de 30 minutos na repetição de uma lengalenga maçadora que só “animava” quando os presentes interagiam com o padre e davam seguimento às suas prédicas com as vozes afinadas de quem está habituado ao cerimonial religioso. Começava a  impacientar-me quando o padre se sentou com a cabeça junto ao peito, em sinal de recolhimento. Maldosamente, nessa altura pensei que provavelmente estaria tão sonolento quanto eu. Levantou-se exausto: a expressão era de dor. Este tipo de serviço religioso deve ser extenuante. Senti que o santo sacrifício da missa estaria próximo do fim. Consegui entender a data da realização da missa do sétimo dia e foi com alívio que o ouvi dizer, “ide em paz”. E fui. Perguntei-me: não poderia ser esta missa, mais simples, mais próxima e mais curta, sem desrespeitar os cânones religiosos? Uma espécie de diálogo com a alma da falecida, e com os seus familiares e amigos, a desejar-lhe votos de boa viagem e boa estadia e a promessa dos que os que cá ficam, e têm saudades, continuarão a perseverar a sua presença num cantinho do coração? Podia? Se calhar, não: a ortodoxia religiosa não dispensa tais rituais. É uma arma essencial na sua luta pela sobrevivência.

IBÉRIA

Manuel Joaquim




A comunicação social tem comentado muito pouco sobre a situação política em Espanha.

Será que está a ter um comportamento como um gato escaldado pelas posições que tomou, muitas vezes levianas, sobre os resultados das eleições em Portugal e a formação do actual governo, apoiado pelo PCP, BE e Verdes?

De facto, o PP, de Mariano Rajoy, teve maiorias em dois processos eleitorais, mas maiorias relativas, não conseguindo, por isso, formar governo. Tal como PSD/CDS, Passos Coelho/Paulo Portas, não conseguiram viabilizar o governo que entretanto tinham organizado.

Em Portugal foi possível organizar um governo do PS com apoio parlamentar. Em Espanha, o PSOE ainda não deu o passo necessário para encontrar uma solução de governo alternativo ao  governo do PP. 

A Espanha é o segundo maior país da EU, com mais de 47 milhões de habitantes. Hoje é uma monarquia mas já foi uma república. Sofreu uma guerra civil entre 1936 e 1939, com mais de 500.000 mortos, com consequências devastadoras em todas as famílias, ainda hoje muito presentes.

O PP, de Mariano Rajoy, em 2011, obteve maioria absoluta, com mais de 10.800.000 votos. Entretanto, apareceram novos partidos que conquistaram eleitorado aos partidos tradicionais.

Neste momento, provavelmente, caminha-se para um novo processo eleitoral do qual nada de novo aparecerá. 

A Espanha está a viver um novo período muito conturbado da sua história, onde existem movimentos separatistas muito organizados e muito activos, alguns com fortes influências políticas nas respectivas comunidades autónomas. 

É cada vez mais claro que quem tem o poder não consegue governar e quem contesta o poder não tem ainda condições para o conquistar. Esta contradição vai ter que ser resolvida. O sentido da saída vai ser determinado por muitos factores, entre os quais a capacidade de liderança de todo um processo político. 

Apesar de existirem muitas diferenças entre Portugal e a Espanha, as condições da crise são muito parecidas. Ao longo da história tem havido movimentos de aproximação e de afastamento. O fim do estado espanhol, tal como agora o conhecemos, pela conquista de independência por algumas das comunidades autónomas, naturalmente que terá fortes influências em Portugal. E daí, poderão ser criadas condições para um novo tipo de organização de estados autónomos que pode vir a ser, conforme alguém me sugeriu, a UNIÃO DAS REPÚBLICAS SOCIALISTAS DA IBÉRIA     



CARTAS DE SANTA MARIA


Florbela Espanca (www.contioutra.com)


O centro da vila permanece imobilizado no tempo como se Florbela Espanca estivesse a descansar e voltasse em breve aos lugares da sua infância. Ao lado, o palácio ducal, pela sua imponência, parece um absurdo no espaço errado. A poetisa que cedo mudou o nome de Flor Bela Lobo para Florbela d’Alma sobrevoa ainda, na minha imaginação, estes lugares. Vim de novo visitá-la na sua campa fria e marmórea de um branco triste e invernoso. É sempre uma visita de admiração e deslumbramento, de fascínio também. Tem sido de certa forma injustiçada quando no-la mostram como instável, por vezes até desequilibrada e histérica. Florbela foi sobretudo incompreendida. Dos homens que encontrou não souberam amá-la como a poesia que expressava. Amaram-na pelo que escrevia e ela procurava quem a amasse com o ardor e o romantismo das palavras que lhe saíam aos borbotões da alma. Se tu viesses ver-me hoje à tardinha. Não à tarde, ao fim do dia, mas à tardinha, o diminutivo a engrandecer o momento a caracterizar o estado da alma, a sua carência. A essa hora dos mágicos cansaços. Não é, essa fadiga que nos aborrece, que nos desconsola, que nos indispõe, mas antes a dos mágicos cansaços. Quando a noite de manso se avizinha. Faz-nos aproximar do crepúsculo em três momentos que parecendo diferentes situam o mesmo instante, à tardinha, na hora dos mágicos cansaços e quando a noite de manso se avizinha, vagarosa e silenciosa, para nos dizer como gostaria então de ser amada, e me prendesses toda nos teus braços. Só isso, apenas isso, o seu amor não carecia de mais nada nesses instantes e creio que foi essa sua necessidade de amor que não foi entendida e satisfeita. Sou aquela que passa e ninguém vê…/ Sou a que chamam triste sem o ser… Aqui expressa a incompreensão do mundo pelos seus sentimentos, para concluir que, Sou talvez a visão que alguém sonhou, / Alguém que veio ao mundo pra me ver,/ E que nunca na vida me encontrou. De facto, tudo o que desejava estava nos seus poemas e não topou com alguém que os interpretasse em gestos e sentimentos transformando em realidade os seus sonhos. Num dos seus mais belos poemas, Teus olhos, reaviva essa contradição entre o amor que desenha para si, ao qual se rende sem remissão e o que na verdade a vida lhe oferece. Esses olhos onde, ficaram os meus palácios moiros,/ Meus carros de combate destroçados,/ Os meus diamantes, todos os meus oiros/ Que trouxe d’Além-Mundos ignorados! Depois de toda a luxúria com que enaltece, os olhos do seu amor, termina aceitando a derrota da sua demanda, Berço vinde do céu à minha porta…/ Ó meu leite de núpcias irreais!.../ Meu sumptuoso túmulo de morta!.... Nunca descansou, no entanto, dessa procura, entregando-se por vezes na sua poesia a um amor que não via, mas acreditava ver, Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida./ Meus olhos andam cegos de te ver./ Não és sequer razão do meu viver/ Pois que tu és já toda a minha vida! Deixou-nos pelo menos esta poesia tão arrebatadora tão amante que nos ajuda nos amores e desamores que a vida nos reserva e é sobre os seus poemas e dos seus e dos nossos amores incompreendidos que conversamos nas largas horas das nossas visitas. A caminho de Vila Viçosa, desci por Arronches e Campo Maior, a terra do comendador que é tão benemérito, tão dadivoso, tão enaltecido que só lhe falta a espadinha ao lado como no poema do José Niza. Evitei Badajoz porque a 15 de Agosto se relembrava a matança de 1936, quando um miserável, um infame que deu pelo nome de Juan Yague, o qual sob as ordens de um vadio, um insurecto com o nome de Queipo de Llano, ordena o fuzilamento de milhares de soldados e milicianos que defendiam a República. Nem de Elvas me aproximei, contornei a cidade e caminhei para Juromenha. Nesta pequena aldeia, deixei-me tomar pela melancolia, por esse estado de alma que nos tolhe a força de vontade e nos leva para as recordações. O dia estava a meio, no ponto em que o sol inicia a sua descida e vai virando se sul para oeste. No horizonte, as águas do Guadiana inchadas pela retenção no Alqueva formavam um lago sem limites. Escutava-se o silêncio e o tempo imobilizou-se, como se procurasse a eternidade. Foi nesta moldura que decidi escrever uma carta à mulher do meu futuro. Aguardo-te mulher do meu futuro. Vem e enche o leito seco dos meus rios com o caudal intenso dos teus sonhos. Sim, vem porque a minha alma sucumbiu naquela tarde em que o crepúsculo se apagou quando o olhar de uma mulher iluminou outro navio que atravessava o horizonte. Agora, restas tu mulher do meu futuro, a quem poderei dizer, como Santo Agostinho, que já te amava antes de saber amar. Vem, dá-me a tua mão e abraça a minha para não me perderes e eu não me perder de ti. Faz-me arrepiar com o toque da tua pele, como a terra quando treme abanada por estertores vulcânicos. O meu caminho há-de ser o teu, seja onde for que ele conduza. Vem até mim mulher do meu futuro. Deixa que os meus olhos vejam de frente os teus, na descoberta de uma estrela acabada de nascer. Deixa-me sentir a beleza do teu corpo, a pele macia, a ternura dos teus afectos misturada com a carência dos meus. Deixa-me pousar na serena geografia do teu colo e saborear o tranquilo pulsar da tua vida no renascimento perene de quimeras impossíveis. Vem, chega depressa mulher do meu futuro para que os meus olhos rebeldes possam viajar pelo teu peito e fomentar a insurreição do teu corpo. Quero que venhas como uma rosa, de caule sólido, e de ti brotem flores amarelas e vermelhas, uma mistura de cor de fogo, o amarelo da amizade e o vermelho do amor, transformadas em tochas ardentes e eternas como as que lembram os heróis. E o meu olhar de requiem renascido há-de entrar em ti como numa floresta mágica, cheia de rumores e mistérios para transformar o outono do teu corpo, numa primavera vibrante, plena de sol e de luz, como uma harpa tocando o hino da alegria. Quero passear por ti com os dedos trementes, como um cego decifrando os símbolos. Vem, não tardes para que o meu olhar insubmisso seja o líder da rebelião que descerá do teu sorriso e se estenderá pelo convés do teu navio como a água de um rio descendo em catarata cantante e descontrolada. Quero voar em ti como uma nave vogando pelo universo, perdida no esplendor nocturno da beleza infinita. Vem, aproxima-te com a ternura da madrugada e deixa que me achegue à tua alma para abrir o livro da fantasia que nela vive. Quero folheá-lo, página a página, navegar nas palavras como uma galera descobridora, procurando mundos, rotas desconhecidas, mares nunca antes navegados. Quero sentir a tua beleza com a elegância das ogivas góticas, imortal e sedutora e me torne cativo do teu voo suspenso como as cúpulas das grandes catedrais. Chega depressa e com os rios da tua ternura apazigua esta minha sede de infinito. Mulher do meu futuro, não desejo que tenhas apenas o brilho de uma estrela, mas antes me abraces no espantoso feixe luminoso de uma constelação, não quero que sejas só uma montanha, mas uma cordilheira, onde possa caminhar nos trilhos infindos do teu corpo para saciar esta sede intensa, nas águas que descem das neves que se derretem no cume sereno da tua ternura. Aguardo-te, mulher do meu futuro. Anseio que cubras a solidão da minha alma com toda a poesia que trazes no olhar. Vem, estende pela planície do silêncio onde habito, as águas do Nilo, as areias de Atacama, o canto dos monges nas montanhas drusas, os versos de Omar Khayam, o cântico dolente e vibrante do muezim planando como uma névoa sobre o deserto. Oferece-me a vida toda que está em ti. Vem e visita as minhas madrugadas sem sono com os ramos amantes do teu corpo e protege-me dos medos nocturnos. Quero que chegues como a água e me faças viver como o vento. Não tardes, mulher do meu futuro.

Fernão Vasques*
Vila Viçosa, 31 de Agosto 

* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.



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