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01/09/10

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ENSAIOS SOBRE A CEGUEIRA

Alcino Silva
José Saramago (1922/2010)


No início de Julho ao ler os jornais locais, fui surpreendido pela notícia de que o presidente da assembleia municipal da Póvoa de Varzim, um Alberto Costa de sua graça, se a memória não me trai, se opôs a uma proposta do deputado bloquista para ser aprovada uma saudação de homenagem ao escritor José Saramago, acabado de falecer. Disse então, o tal Costa que só aceitaria a proposta se fosse retirado o adjectivo, brilhante e um outro, ou seja, nomeava-se o escritor, não por ser brilhante, mas pelo contrário. Perturbou-me a notícia, numa cidade que tanta ênfase tem dado à literatura e que todos os anos celebra esse acontecimento áureo que são as Correntes D'Escritas. É verdade que não é um simples Costa que faz história. Aliás, creio que o horizonte deste Costa não chega a atravessar a Av. dos Banhos.

Dias mais tarde, a crónica de Manuel António Pina dava-nos conta que Rui Rio e o seu Partido se opuseram a que a cidade do Porto ostentasse na sua toponímia o nome de José Saramago. Desconheço os argumentos, apenas me vou apercebendo que este Rui Rio não consegue sair desse papel de contabilista. Soma o IVA, o IRS e tudo o mais são questões supérfluas e não sei porquê criei essa ideia de que puxaria da pistola – caso a usasse – quando lhe falam em cultura.

Esta sucessão de notícias fez-me lembrar uma pergunta há meses atrás de um jovem escandinavo à saída do aeroporto de Pedras Rubras: «quem é ou foi, Francisco Sá Carneiro?». Parei para pensar quem foi este personagem que enche as ruas, travessas, largos, praças, avenidas, becos e calçadas do nosso país. Quiseram até roubar-nos o nome do aeroporto e da Praça Velasquez. Curioso, fui à procura para que não fosse a memória enganar-me. Encontrei-o nos finais da década de 60 como membro da União Nacional, o Partido do fascismo português e como seu membro, eleito deputado da Assembleia Nacional desse próprio fascismo, ou seja, um jovem da absoluta confiança do terror reinante. Lá se encontrava com outros amigos como, o respeitável João Bosco Soares da Mota Amaral, Francisco Pinto Balsemão, Joaquim Magalhães Mota e Miller Guerra. Encontraram-se todos após a revolução na fundação do PPD/PSD como gosta de dizer esse inefável, Pedro Santana Lopes. A Internet não é muito pródiga em informação. Ministro sem Pasta nos governos provisórios, este antigo advogado, foi eleito deputado à Constituinte e à Assembleia da República, abandonou a chefia do Partido durante um ano, criou a Aliança Democrática e foi primeiro-ministro oito meses. É pois esta figura que caso não tivesse falecido da forma dramática que todos conhecemos, já ninguém se lembraria dele, com excepção do Pedro Santana Lopes, que aparece na toponímia de todas as cidades, vilas e aldeias deste país. Não se conhece qualquer acção deste homem que mereça referência, estudo, ser exaltada, nomeada, reconhecida, lembrada. E contudo…

Gabriela Mistral e Pablo Neruda foram os dois Prémios Nobel da Literatura do Chile. O último foi reconhecidamente membro do Partido Comunista, senador eleito e candidato à presidência da república e nem esse excremento da história que deu pelo nome de Augusto Pinochet ousou manchar-lhe a morte ou a obra. Contudo, em Portugal, ao único Prémio Nobel da Literatura, não se reconhece o direito a figurar com o nome de rua e só se homenageia se não for brilhante. É o esplendor a que vão chegando os herdeiros de alguns que foram os últimos deputados do regime ditatorial. Esperar mais deles, seria não conhecer a história. Mas compreende-se. Germinam numa pátria que deu nome de rua a um treinador de futebol e uma criatura com a ignorância de um Manuel Pinho, já leva duas na colecção. Continuamos a assistir a estes ensaios sobre a cegueira. Pobre da pátria e de mim, que vou asfixiando com ela.


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MAR ADENTRO

António Mesquita

"Mar adentro" (2004-Alejandro Amenábar)




Ramón é um tetraplégico que vive há 28 anos dependente de alguns familiares para tudo, menos para pensar. Acha que é tempo de pôr fim à sua tortura e procura alguém que o ajude a morrer.

Apesar da sua situação, Ramón tem uma personalidade forte e sedutora e podemos verificar ao longo do filme que a dependência não é só num sentido. Duma certa maneira, aquele grupo é o corpo e o espírito de Ramón. Mas é evidente que ele considera a liberdade, sem a qual não deseja viver, também como uma liberdade de movimentos. É verdade que a sua prisão é o próprio corpo e a sua alma alada, em vez de mostrar a sua independência, parece duplamente encerrada.

Talvez que a força que emana de Ramón seja, em casos destes, muito rara. Não é possível que a permanente humilhação não afecte o carácter e a personalidade. Ao ouvir este homem parece que foi no dia anterior que bateu com a cabeça no fundo de areia e que ainda não se apercebeu bem até que ponto ficou limitado. Não é que ele não tenha um discurso consciente e realista, mas a sua alma, contra toda a probabilidade, é a de um homem livre (em todos os sentidos).

Rosa, uma mulher do Boiro, enamora-se dessa força encadeada e rende-se ao argumento de que se o ama verdadeiramente só pode ajudá-lo a matar-se.

Não se deve tirar da história uma moral, porque a opção do suicídio, contra tantas razões, apesar de tudo, para viver, é de Ramón Sampedro e não tem valor noutros casos. Embora ele, com os seus amigos da Associação, não se prive de tornar o seu caso numa espécie de bandeira, e ao fazer-se filmar no momento do cianeto, é como se indicasse um caminho.

Mas não podíamos exigir que o seu cálice só guardasse toda a solidão do seu gesto… e é como o momento na cruz do "Eli, Eli, lama azavtani?"

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UM TESTEMUNHO

Mário Faria



Falar da nossa experiência profissional não valida que se possa retirar duma pequena parte a (quase) totalidade do que se passa nas mais diversificadas actividades. Fala-se sempre muito do sector público, e normalmente para minimizar o profissionalismo e a competência de quem nele trabalha, sem cuidar que há muita injustiça nesses juízos definitivos e generalizados.

Todos clamam por reformas. Reformas, talvez ? Mas reformas de quê ? No sector da saúde, da justiça ou do ensino, talvez ? Qualquer organização pública é passível de ser melhorada. É desejável que o seja e que o laxismo e o corporativismo não o impeçam.

E sobre a dívida da banca, os maus investimentos no estrangeiro, a desvalorização das empresas na bolsa, a falta de notoriedade dos produtos, marcas e serviços nacionais, mais as bolhas que infectaram as finanças e a economia, que fazer ? Reformar ? O capitalismo ? Quando, como e com quem ? Ou a solução é rever o código laboral, aumentar a precariedade, liberalizar os despedimentos e baixar os salários até onde for necessário para se poder concorrer com o dumping social que domina nalguns mercados emergentes ?

E como acreditar que as empresas que hoje fecham e lançam para o desemprego milhares de trabalhadores, o fazem sempre porque o Estado os enche de impostos, e nunca porque encheram dolosamente os bolsos, antes de declarada a falência.

Do sector privado pouco se fala, embora seja a paixão de quase todos os partidos, pelo menos no que toca às pequenas e médias empresas. Insisto : vou falar da experiência que vivi nos últimos quinze anos (antes de ser reformado) em que trabalhei no sector da publicidade. É uma leitura pessoal como não podia deixar de ser. Vale o que vale, e pode muito bem ser arrumada no "caixote do lixo" em que normalmente se arrumam estes testemunhos.

Trabalhei numa multinacional americana, numa agência de meios portuguesa e mais tarde com os espanhóis que a adquiriram. Havia gente competente, mas fiquei com a ideia, pelos múltiplos contactos que mantive com clientes e fornecedores dos mais diversificados sectores, que as nossas empresas eram geridas em função do perfil dos seus quadros superiores, quando não exclusivamente de um só homem com o poder que só a um deus é atribuído, e bastante menos em função duma prestação de serviço qualificado e virado para responder às necessidades reais dos Clientes. Havia muita burocracia, muita improdutividade pela repetição de rotinas, insuficiente trabalho de equipa, muito vedetismo, pouca transparência, embora se jurasse o contrário, muita negociação, muitas horas ao telefone, muitas deslocações, demasiadas reuniões e extrema dependência do lobbying.

Quando o negócio corria abaixo do orçamentado em termos de receitas (as despesas eram bem mais fáceis de controlar), corria-se a fabricar excelentes planos com novos negócios de possíveis novos clientes, que funcionavam como uma promessa para sossegar os patrões : o exercício iria acabar com um final feliz, se as perspectivas que se estavam a trabalhar fossem concretizadas. O plano era um paliativo, mas dava muito jeito. Não raras vezes fomos salvos por termos sido capazes de captar bons negócios, quase sem esforço. Caíam. Oficialmente, tratávamos essas conquistas de forma gloriosa.

Perdia-se imenso tempo a negociar. Os portugueses adoram negociar. Mas, tinha que ser. Na actividade publicitária, por aquela altura, trabalhava-se com margens muito baixas. Nos dias que correm deve ser bem pior. Deve ser extremamente difícil manter a porta aberta, e fora de Lisboa um calvário. Não há contas novas e os "novos" clientes são "velhas" empresas que rodam pelas agências com renovadas exigências. É o ciclo da sobrevivência.

Nem tudo está mal e nos últimos anos crescemos muito em termos de recursos materiais e humanos. Falta saber o que não se sabe, que ainda é muito . Saber fingir que se sabe o que não se sabe, somos razoáveis. Não chega tirar cursos superiores. É preciso estar preparado para a batalha no terreno e capacidade para enfrentar os "inimigos" : a concorrência, os clientes e os fornecedores. No mercado não há amigos.

Da direita à esquerda, numa coisa todos parecem estar de acordo : a salvação está nas MPME e o Estado só tem que criar condições para que se constituam, cresçam, consolidem, avancem, multipliquem, floresçam, germinem, prosperem, garantam lucros e criem postos de trabalho. É só isso. Parece fácil.

E tal desígnio deve ser encarado como prioridade máxima. É preciso baixar os impostos, o que não é tragédia nenhuma uma vez que se reconhece quão raramente são cobrados. José Morgado Henriques tem lutado para manter a Papelaria Fernandes (PF) de portas abertas. Eis algumas das suas declarações ao jornal Público : "A dívida aumenta porque existem locações financeiras e impostos que não estão a ser pagos, nomeadamente as contribuições à Segurança Social. Neste momento, a dívida total é superior a 70 milhões de Euros. E, se isto durar muito mais tempo , qualquer dia não haverá dinheiro para pagar a quem quer que seja ….. Sentimos falta de apoio do Governo em todas as questões. Foi insensível aos problemas. A empresa tinha 380 trabalhadores quando cheguei. Mandámos 380 pessoas para a rua, quando se dizia que podíamos ficar com 150. Os custos sociais que o Estado vai ter de suportar com isto tudo, desde o fundo de garantia salarial ao subsídio de desemprego, são muito superiores ás dívidas contraídas pela PF."

O capitalismo está podre, logo há que rever a constituição e o pacote laboral. E reformas, não esqueçam as reformas, pela vossa rica saúde !


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TURISMO NA CIDADE

Mário Martins
Ponte de D. Luís



Um destes dias, máquina de filmar a tiracolo, fui enganar turistas para a Ribeira de Gaia. Entenda-se, eles não podiam imaginar que eu era nascido, criado e fundeado naquele Porto. Como na bela Toledo, é preciso atravessar o rio para fruir o quadro pictórico que é hoje património do mundo. Grande bulício, pessoas e carros para cá e para lá, constantes poses fotográficas, barcos cheios de gente para cima e para baixo, o rio e a luz só para baixo, a ponte de D. Luis, cheia de vida, sempre a meter-se pelos olhos dentro, um grupo de italianos pede-me para lhes tirar uma foto contra o recorte do casario fixo que Vasco Graça Moura1 descreve muito melhor do que eu poderia fazer:


visto da margem sul do rio o porto não explode

sob a tarde de verão. a água reflecte

renques de casario humilde a encastelar-se

irregular em ocres e granito, manchas, vãos, recatos.


além uma arcadas, um cais, o traço grosso a carvão

dos encaixes da ponte armada em ferro, a muralha,

o deslizar da luz para poente, tudo

uma dramática placidez escurecendo a ribeira...


Apenas acrescentarei, parafraseando outro poeta, Jorge de Sousa Braga2,


Com água no bico

aves marinhas combatem

o incêndio do crepúsculo


que o sol se preparava para incendiar o crepúsculo antes de ser tragado pelo mar da Foz. Antes, na Ribeira do Porto, tinha reencontrado o meu passado antigo de ir ver os meninos a mergulharem, intrépidos, no rio, agora, ainda mais intrépidos, a atirarem-se também, eles e elas, do tabuleiro inferior da ponte D. Luís, uns mesmo de cima do varandim, alguns a benzerem-se antes, encenando naturalmente um espectáculo que não custa dinheiro, para deleite dos turistas. Das coisas que fazem a identidade do Porto contam-se certamente as Escadas do Codeçal que vão a serpentear por ali acima desde a ponte de baixo, à beira do elevador dos Guindais, até ao Aljube e à Igreja de Santa Clara, no Largo 1º. de Dezembro, à Batalha. São umas escadas largas, com corrimão central em ferro e casas dos dois lados, logo na primeira curva estava uma moradora cá fora, sentada numa cadeira, a ler o jornal, mais adiante uma dona de casa esfregava roupa numa pia de lavar à sua porta, enquanto uma jovem, meia-dúzia de degraus acima, dependurava roupa a secar numa corda suspensa de um pau oblíquo, o filme espectacular da paisagem do rio e das pontes vai mudando à medida da subida ou descida das escadas, lá em cima passa-se mesmo debaixo do tabuleiro da ponte enquanto se espreita a muralha fernandina, outro poeta, Luís Veiga Leitão3, diz o que o velho burgo dá ao visitante:


Entrego-te as chaves da cidade

A chave da torre que do alto nos abre

O voo das aves e os pórticos do mar

A chave das muralhas do burgo antigo

Que nos abre os mistérios do rio

A chave viva dos arcos da ribeira

Na livre explosão das falas do povo

E a chave de cais, senhora zelando

Os tesouros do sol no ouro do vinho


1 Do poema VISTO DA MARGEM SUL DO RIO O PORTO

2 Do poema FOZ

3 Poema AO VISITANTE


PS: No meu artigo de Agosto escrevi “que o presidente e poeta do Senegal Léopold Senghor identificou (Lagos, no Algarve) com a sua Lagos, “Un jour à Lagos ouverte sur la mer comme l’autre Lagos”, mas seguramente que se queria referir a Lagos, na Nigéria.


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