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01/02/10

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ELA FAZ CORRER OS HOMENS

Mário Martins

A máquina a vapor de Watt



(…) O género humano ficara, portanto, desprovido, e Epimeteu não sabia que fazer. Nesse momento, chegou Prometeu para verificar a distribuição e viu que os outros seres vivos estavam munidos de tudo o que lhes era necessário enquanto o homem estava nu e descalço, sem leito nem armas. Chegara já o dia fatal em que também o homem teria de vir à luz. E, não sabendo que meios de salvação poderia dar ao homem, Prometeu roubou a Héfaistos e a Atena o saber técnico e o fogo, pois sem o fogo era impossível praticar as artes, e deu-os ao homem.


O mito de Prometeu, in Protágoras, de Platão


Segundo a investigadora italiana Luísa Dolza * "a tecnologia (…) ocupa uma posição cada vez mais fulcral: não só nas aplicações práticas do saber científico mas também na própria orientação dos grandes empreendimentos sociais".

De acordo com a sua tese, "sem a técnica como meio de salvação, os seres humanos teriam desaparecido do nosso planeta. O engenho e a capacidade de produzir objectos técnicos são indispensáveis para que o ser humano, biologicamente fraco, possa sobreviver e praticar feitos de outro modo impensáveis. Mas essas 'novidades' (…) introduzem também novos riscos. Não há maquinismo ou expediente, adaptação ou melhoramento, que não altere a natureza e os equilíbrios existentes, e até quando se actua com habilidade e prudência. Deste incindível nexo entre a exigência de uma vida melhor e o perigo de ruptura ou modificação dos equilíbrios da natureza provém a ambivalência, antiga e moderna, da tecnologia: ela é, ao mesmo tempo, filha da necessidade de sustentar a vida e expressão de autonomia - e, por vezes, também de rebelião contra os deuses e a natureza."

Dolza sublinha, no entanto, que se "as sociedades sempre estiveram conscientes da importância da tecnologia e da sua gestão, nem sempre apreciaram o seu contributo para a mudança, nem sempre julgaram positivamente o progresso e nem sempre quiseram a novidade - preferindo antepor-lhe, muitas vezes, a utilidade pública". Por exemplo, ainda no século XVII, em Inglaterra, "o privilégio (ou patente) podia e devia ser concedido (à nova técnica) na ausência de técnicas semelhantes e sempre que de nenhum modo fosse posto em perigo o nível do emprego".

A invenção da máquina a vapor, a descoberta da electricidade, esse "motor da segunda revolução industrial" ("é necessário mencionar a importância da electricidade, pois tudo essa fadazinha mudou"), a revolução informática, vieram, desde então, mostrar a força tremenda e objectiva da tecnologia.

"Prometeu rasgou um caminho cheio de insídias. Depois da Segunda Guerra Mundial, depois das bombas atómicas que contribuíram para encerrar a 'guerra quente', Albert Einstein, o génio emblemático do século XX, escreveu de Princeton uma carta aberta em que advertia:

"com a libertação da energia atómica, a nossa geração trouxe ao mundo a força mais revolucionária depois do descobrimento do fogo pelo homem pré-histórico. A força fundamental do Universo não pode de modo nenhum ser adaptada ao conceito, doravante suplantado, dos nacionalismos estreitos: contra ela, não há segredo nem defesa. Só poderá ser dominada pela vigilante compreensão e insistência dos cidadãos de todo o mundo".

"Como Sófocles (famoso dramaturgo grego) escrevia há milénios, a técnica é um instrumento do homem, e é no próprio homem que existe a possibilidade do mal: 'muitas e tremendas forças tem a vida, mas vê: nada é mais tremendo que o homem'.

Mas terminemos com a mensagem de esperança de Primo Levi, escritor italiano e prisioneiro em Auschwitz, (para o qual, como Sófocles, a técnica não é "boa ou má em si, mas boa ou má conforme o sujeito social que a usa e orienta em certa direcção"):

"(o homem) fautor de si próprio, inventor e único detentor da razão, saberá parar a tempo no seu caminho para o ocaso".


* In História da Tecnologia, Editorial Teorema, Setembro2009


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IMPERIALISMO E HEGEMONIA

António Mesquita

Antonio Gramsci (1891/1937)


Um artigo de Peter Hallward ("The Guardian", 14/1/2010) vem retirar a tragédia do Haiti do simples domínio telúrico e apresentá-la, concomitantemente, como a consequência dum fenómeno sobretudo político: o do imperialismo.

A essa luz, para além do acto humanitário, os esforços da "comunidade internacional" parecem-se muito com a reparação dum crime em que muitos países se encontram comprometidos e, por outro lado, na medida em que não se reconhecem os efeitos da devastação económica e social provocada pelas mesmas potências que ampliou a catástrofe natural, não se pode deixar de falar em hipocrisia.

Hallward diz que não é por acaso que uma tão grande extensão de Port-au-Prince parece uma zona de guerra e fala dum deliberado empobrecimento e desempoderamento (disempowerment), consequência do "sistema de exploração colonial talvez mais brutal da história do mundo". Teria começado com a invasão e ocupação de 1915 pelos EUA e o sequente bloqueio de qualquer veleidade de passar "da absoluta miséria para uma pobreza digna" (Jean-Bertrand Aristide). "Décadas de 'ajustamento' neo-liberal e a intervenção neo-imperial roubaram ao seu governo qualquer capacidade de investir no seu próprio povo e de regular a sua economia." O "desígnio" de criar uma força de trabalho explorável nas cidades, empurrou os pequenos agricultores para os bairros de lata suburbanos já sobrepovoados. "Estas pessoas, por definição, não se podem dar ao luxo de construir casas resistentes aos terramotos."

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Perante a enormidade dos factos, parece que a questão dos termos perde muito da sua importância. Mas quem pode dizer que um erro de juízo não resulta muitas vezes duma linguagem, deliberadamente ou não, inapropriada? Erros que podem estar na origem da derrocada de mais de um império…

Assim, é este um exemplo do imperialismo, último estádio do capitalismo, tal como o definiu Lenine, ou precisamos dum outro conceito para definir uma outra realidade?

Não há dúvida que o imperialismo no sentido leninista nada tem a ver com um império de facto, como foi o de Roma. Não existe uma administração central e, tirando os teatros de guerra, não se pode falar em ocupação militar (em que medida a base das Lages influencia a nossa política?).

Qual é, por outro lado, o peso que os casos de "neo-colonialismo", como o haitiano, representam na economia dos EUA (Segundo T.Harford: "The Undercover Economist", em 2000, as importações americanas dos países menos desenvolvidos representavam apenas 0,6% do total e para o investimento a história era a mesma, isto é o "imperialismo" explora-se, sobretudo, a si mesmo), quando o domínio económico se faz preferentemente através da penetração cultural, adaptando o mercado local aos interesses americanos, em vez de utilizar os manípulos e as legiões? A liberdade do comércio, que geralmente facilita as outras liberdades (mas não necessariamente) é indispensável para este tipo de influência.

Parece, pois, que se impõe aqui a noção gramsciana de hegemonia, em vez de falarmos esconjuradamente em imperialismo. A hegemonia dá conta do poder efectivo sobre a economia e, indirectamente, sobre a política, sem que tenhamos de recorrer a uma ideia da gestão dos interesses americanos (que aqui, bem entendido, seriam o protótipo do imperialismo) que, num mundo globalizado, parece cada vez mais anacrónica e pressupõe uma estrutura do poder simplificada com expressão directa da força. Não, não é desse modo que os Americanos "levam a água ao seu moinho".

A catástrofe do Haiti vem demonstrar, e aceitando a tese de Hallward, que como imperialista o sistema de dominação foi não só incompetente, desarticulado e, no final, contraproducente, se pusermos de lado, evidentemente, a moral (que consabidamente não tem). O predomínio selvagem dos interesses, num campo onde não há lei nem ordem, como é o campo internacional, é suficiente para explicar o que sucedeu e fazer vislumbrar um princípio de solução, onde o imperialismo não no-lo permitiria.

No entanto, é claro o rendimento ideológico dum conceito como o de imperialismo. Ele possibilita o hipostasiar da coerência e do poder dum sistema imaginário que tornariam dispensável qualquer análise crítica de acontecimentos tão significativos e tão inexplicáveis sem essa "blindagem" como foi o da implosão da URSS.


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