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01/05/08

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50 PALAVRAS

António Mesquita


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"As unhas estão pretas. As palavras mudam pouco, o vocabulário em situações extremas não é composto por mais de 50 elementos."

"Um homem: Klaus Klump" (Gonçalo M. Tavares)



Este jovem autor é oracular, às vezes. Numa frase diz tanto como no melhor dos versos.

Aqui fala da guerra, por excelência, a situação extrema. E podia-se ser mais contundente do que com aquele número terrível?

Mas se a riqueza do vocabulário exprime a complexidade da vida, as nuanças dos sentimentos e o pensamento mais elaborado, não se segue que aquilo a que chamamos de simplicidade não o exprima também, embora com outros meios que não os linguísticos. Esta diferença define talvez uma civilização.

Com os milhares de vocábulos que temos mais do que o camponês da Idade Média a "simplicidade" tem de ser traduzida. Precisamos dessas palavras para compreender um mundo que já nada tem a ver com o do feudalismo.

Porém, a ideia de Gonçalo Tavares não é menos pertinente.

Há também em relação àquele camponês uma experiência que equivale à redução a 50 palavras.

O mundo atrofia-se quando as palavras já não aparecem na boca das pessoas. É a altura das simplificações assassinas, das divisões cismáticas, dos anátemas sem perdão.

As organizações, porque querem ser forças, começam por criar uma língua própria, com pouco mais de 50 elementos.

Mas a tecnologia confronta-nos com outro desafio. Ao mesmo tempo que nos põe a todos em contacto fácil e quase instantâneo, recorre cada vez menos às palavras e menos também à língua materna, em favor do básico internacional.

Por isso o mundo se estreita sob dois impulsos irresistíveis: o da velocidade das comunicações e o da morte das palavras.


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CARTA DA CORCUNDA AO SERRALHEIRO

Texto de Fernando Pessoa, sob o seu único heterónimo feminino, Maria José, escolhido por Dina La-Salette.



"Senhor António:

O senhor nunca há de ver esta carta, nem eu a hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo.

O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer.

Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega.

Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar.

O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que

gostasse de mim como se gostasse das pessoas que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém.

Eu gostava de morrer depois de lhe falar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.

Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Além disso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove anos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.

Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter — e agora menos que nem vida tenho — gostava de saber tudo.

Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vai ler isso, e mesmo que lesse nem sabia que era consigo e não ligava importância em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só à janela, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguém que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a família, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos às avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.

Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim, para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.

Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.

Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver ilustrações e revistas de modas que emprestam à minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquela saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu às vezes me envergonho de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar.

Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distraída.

Ainda me lembro daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.

Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é e não como tinha vontade de ser.

(...)

- e enfim porque lhe estou eu a escrever se lhe não vou mandar esta carta?

O senhor que anda de um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser ninguém. Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.

O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e têm batizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos médicos, e outros partem para as suas casas aqui e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e há artigos assinados por outros e retratos e anúncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da água.

Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.

A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez, que lhe falou torto porque o senhor se meteu com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se alguém connosco é a gente ser mulher, e eu não mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vêm, valha me Deus.

O António (é o mesmo nome que o seu, mas que diferença!) o António da oficina de automóveis disse uma vez a meu pai que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não há direito a viver, que quem não trabalha não come e não há direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar à janela com toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralítica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir à vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso.

Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.

Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.

Aí tem e estou a chorar."


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CIENTOLOGIA ? FCPORTO: SEMPRE !

Mário Faria

“ A Cientologia é uma religião cujo objectivo é "estudar o espírito, entender a relação de cada um consigo mesmo, com o universo e com outras formas de vida. É uma religião, uma sabedoria e uma ciência. Na verdade, trata-se de uma corrente de pensamento filosófico-religioso mesclada a técnicas psicoterápicas e doutrina budista. Segundo o próprio Hubbard, a religião criada por ele deve despertar no discípulo a consciência de que ele é imortal. É uma mistura de conceitos tirados do hinduísmo e das tradições cabalísticas. A Cientologia serve de base para uma série de técnicas como a psicanalítica (Dianética), e promete aos seus adeptos melhorar sua capacidade de comunicação e diminuir seus sofrimentos, ensinando-o a lidar com as pessoas e seu meio"

Parecia-me uma religião à minha medida. Mas, enganei-me. Na última viagem que fiz, o avião passou uma zona de forte turbulência, tremia que nem varas verdes, e lá tive que falar com Ele. Cruise nem me respondeu a uma carta que lhe enderecei, quanto mais valer-me numa situação de aperto. Cheguei são e salvo ao destino e voltei a ser católico não praticante. Explico melhor : só pratico quando estou aflito.

Resolvida a questão religiosa, para já, pude acompanhar de muito perto este período crucial do campeonato. Não posso calar esta alegria. Neste mês de Abril o FCPortoooooooo foi campeão. Força Porto olé, Força Porto olé, Força Porto olé ….. Campeões, Campeões, nós somos Campeões…..

Um campeonato ganho pelo FCP é sempre um momento de euforia para o mundo portista, mas este ano teve um significado muito especial. As permanentes apitadelas, reclamavam uma vitória convincente, gorda e humilhante para os nossos detractores. Um campeão sem mácula e acima de qualquer dúvida. Fomos capazes de provar que o anti-sistema parido no ventre do regime, deu à luz um campeão sem precedentes, a cinco jornadas do fim, que é exactamente o mesmo que é acusado de traficar vitórias a favor de empates, num momento em que tinha uma super equipa, provavelmente a melhor de sempre, que (apenas) chegou a campeã europeia.

Com uma equipa coesa, um treinador sério e competente, um grupo de jogadores equilibrado e uma meia dúzia de qualidade extra, construímos o que parecia impossível, num ambiente permanentemente adverso. Uma vitória esmagadora e que enche de inveja os invejosos do costume. Nem os mais empedernidos adversários se arriscam a pôr em causa a justeza desta vitória, apesar dos dossiers, dos oportunistas habituais, das “sevícias” de alguma Comunicação Social e dos favores do regime, sempre ao serviço dos mesmos.

Campeões, nós somos campeões, façam o que fizerem os tribunais e as justiças federativas. Nada nos pode tirar o prazer desta vitória. Não há roubo de pontos, nem acusações, nem escutas, nem apelos à judiciária que nos tirem o mérito - e o direito - a sermos campeões. Tudo o resto é histeria e a fúria dos predadores/perdedores do costume.

Para o ano há mais. Provavelmente voltarei a repensar o meu posicionamento religioso : há ir e voltar num circuito sem fim. Muito provavelmente, estarei igualmente a festejar o tetra : há ir e vencer num apetite sem fim. Até lá !


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A HIPÓTESE DEUS (3)

Mário Martins

Henri Bergson


“O universo é uma máquina de fazer deuses”
Henry Bergson

1. Antes de concluirmos, passemos, sumariamente, em revista o modo como alguns filósofos (no caso, Nigel Warburton), classificam e criticam os argumentos a favor da existência de Deus:
· Argumento da causa primeira ou argumento cosmológico: todas as coisas foram causadas por qualquer coisa que lhes é anterior. Se seguirmos esta série retrospectivamente, encontraremos uma causa original (Deus).
Crítica: e o que causou Deus? Por que razão os efeitos e as causas não poderiam constituir uma série sem fim a retroceder no tempo e a prolongar-se no futuro?
· Argumento do desígnio ou argumento teleológico (da palavra grega telos, que significa finalidade): se observarmos os seres vivos, não podemos deixar de notar como tudo é apropriado à função que desempenha; tudo mostra sinais de ter sido concebido, tal como, por analogia, um relógio teve que ser concebido por um relojoeiro.
Crítica: a teoria da evolução pela selecção natural, mostra que, pelo processo da sobrevivência do mais apto, os animais e as plantas melhor adaptados ao seu meio ambiente sobrevivem e transmitem os seus genes aos seus descendentes.
· Argumento ontológico (Ontologia: estudo do ser): Deus define-se como o ser mais perfeito que é possível imaginar, como “aquele ser maior do que o qual nada pode ser concebido”. Ora, um ser perfeito não seria perfeito se não existisse. Logo, Deus existe necessariamente.
Crítica: acrescentar a existência como mais uma propriedade essencial de um ser perfeito é cometer o erro de tratar a existência como uma propriedade, em vez de a tratar como a condição de possibilidade para que qualquer coisa possa realmente ter uma propriedade qualquer.
Há ainda o argumento do “Boeing 747, citado por Richard Dawkins, que se baseia numa alegada afirmação do famoso astrónomo Fred Hoyle, de que “a probabilidade de a vida ter tido origem na Terra não é maior do que a possibilidade de um furacão que varresse um parque de ferro-velho ter a sorte de montar um “Boeing 747”.
Crítica: Dawkins defende o “princípio antrópico” como solução, segundo o qual “a Terra deve ser o género de planeta capaz de nos gerar e sustentar, por mais invulgar e até mesmo único que esse planeta possa ser”. E o mesmo se aplica, com as devidas adaptações, ao universo…
2. A crítica filosófica aos principais argumentos a favor da existência de Deus, parece-me superior aos argumentos, salvo no caso do argumento da causa primeira ou argumento cosmológico, já que, a meu ver, não faz sentido perguntar, à maneira da física, o que causou Deus quando, por definição, se trata de uma causa não física, extranatural…Já o argumento do “Boeing 747” apenas defende a baixa probabilidade da emergência da vida na Terra (o que não inviabiliza que tal tenha acontecido, embora aponte para uma origem extraterrestre) e a sua crítica limita-se a concluir que se a vida existe no nosso planeta é porque o mesmo tem condições para isso (o que não prova que tenha tido origem nele).
CONTINUA

O PINTOR DE BATALHAS

Alcino Silva

Há uns meses atrás ao recuperar leituras atrasadas, encontrei uma entrevista do escritor Artur Pérez-Reverte a um jornalista do El País, a propósito de um livro que acabava de ser editado, titulado, “Pintor de Batalhas”. Conforme avançava na leitura sentia que uma certa perturbação crescia em forma de sentimento, uma certa angústia, um mal-estar que me fez procurar esquecer a entrevista quando terminei a leitura. Se a minha memória não se encontrasse tão frágil teria lembrado que umas semanas antes, uma amiga me teria dito que se encontrava a ler a referida obra. Entretanto, há dias essa amiga, ofereceu-me a leitura do livro. Num primeiro momento, não associei o romance que tinha nas mãos à entrevista que lera antes, mas ao olhar com atenção para a capa e ver a reprodução da pintura “O Triunfo da morte” de Brueghel, foi como se as portas da memória se abrissem totalmente. Com uma certa perturbação voltei a ler a entrevista e foi com grande ansiedade que me dediquei à leitura do livro.

È verdade que a morte é uma companhia permanente do ser humano, em certo sentido é o ponto final da vida tal como a conhecemos e a concebemos, mas o que o autor fez na visita ao Museu do Prado foi mostrar ao jornalista que a morte é uma constante da vida, que é a morte e não a vida que compõe os actos dos seres humanos. Quase se chega a entender das suas palavras, que a vida humana é a morte com um curtíssimo intervalo para viver. “o amor, a liberdade, a amizade, o orgulho, o humor, coisas que permitem suportar o horror, tornam agradáveis os 15 minutos da vida”. É ele que o afirma de forma pensada na visita ao Prado e não palavras colocadas no personagem que criou. Espanta e perturba como este ex-correspondente de guerra olha para os quadros de Goya, Brueghel ou outros mestres da pintura e procura nos gestos e nas atitudes dos homens, não sentimentos de vivência colectiva e social, não a vida que levavam, os sonhos que traziam, mas a raiva, a vingança, a ambição, o desejo de matar, a vontade de triunfar com a Morte, matando, esse querer bailar entre a morte como se o ser humano fosse seu companheiro. Artur Pérez-Reverte faz-nos sentir mal. Não por descobrirmos os nossos piores sentimentos, mas por não encontrar uma palavra de esperança, uma saída que permita estancar esses momentos de violência que fazem mergulhar a humanidade nos seus dias mais negros e sangrentos, que modifiquem essa ideia que expressa na frase, “a guerra é o estado normal do homem”. Ao olhar para os Goya, o escritor de língua castelhana o que ressalta, o que salienta aparece expresso na frase, “matar é o gesto mais antigo da humanidade” e apela à atenção do jornalista para a angústia dos homens que aparecem em luta. Não encontra olhares de vida, não vislumbra desejos de um mundo diferente e melhor, não distingue sonhos, desejos de infinito, voos de gaivota sobre as ondas. Não. Prefere ver apenas gargantas cortadas, degoladas, separando o corpo da cabeça que é o mesmo que o separar da mente, do pensamento, da vida. Este escritor ibérico, revela ser um homem perturbado e ao lermos a sua entrevista, faz-nos sentir também a nós abalados e se não conseguirmos parar a ideia para onde nos deseja conduzir parece que quase mergulhamos no abismo.

Entre os 12 e o 14 anos fui trabalhador involuntário de uma funerária. Trabalho simples. Parte da noite, dormia entre caixões e urnas aguardando telefonemas. De morte, naturalmente. Deste ou daquele hospital, ligavam e diziam: morreu alguém, há trabalho para vós. O resto era mais simples. No momento de destinar o corpo a um espaço talvez eterno, entre lágrimas de desespero, havia que manter a serenidade, para despojar as caixas de madeira do que tinham de valioso, cristos e asas de prata que haveriam de compor o próximo. Depois, lanchávamos que a vida continuava. Um dia, coube-nos em destino levar o cadáver de uma anciã do IML para a sua aldeia no concelho de Melgaço. Partimos às 4 da tarde e quando deixamos a EN 13 para um caminho municipal eram já 9 horas da noite de um dia de Outono, negro e escuro como todos aqueles que não têm luar. Uns quilómetros à frente e no cimo de um outeiro, a estrada terminou e das sombras saíram 20 ou 30 pessoas com uns fachos de luz a rasgar a escuridão. Trocadas meia dúzia de palavras, tomaram na noite o caixão e desapareceram em direcção ao interior montanhoso. Enquanto o carro fúnebre invertia a marcha, fiquei a ver aqueles fachos de luz a desaparecerem no interior da noite e, nesse momento, soltaram-se dentro de mim todos os fantasmas que a morte pode colocar em volta da vida. Em mim ficaram., para sempre.

A história que Artur Pérez-Reverte nos traz no seu livro, “O Pintor de Batalhas” é a vida de um homem que sendo fotógrafo em quase todas as guerras do fim do século XX, cansado das mesmas e do que viu nesses campos que chamaria de batalhas, mas a que ele chama, com razão, de morte, decide refugiar-se num castelo em ruínas na costa catalã e dar expressão numa pintura mural a tudo o que os seus olhos viram e fotografaram, mas não puderam intervir, segundo ele, pois defende a ideia do jornalista e do fotógrafo neutrais para melhor reproduzir o que encontra, sobretudo de mau, de violento, nas acções humanas. Na parte final da obra, o personagem criado, coloca em dúvida essa neutralidade, questiona-a e quase a contraria. Essa neutralidade que tantos invocam, assusta-me, sempre me assustou. Acodem-me à memória as palavras cantadas de Patxi Andion, “maldigo la poesia, concebida como um lujo, cultural para los neutrales”. Na verdade, sobretudo no mundo em que vivemos, a neutralidade é como os inocentes, um mito, um mito que é tantas vezes cómodo para fazer, deixar fazer, ou trazer à consciência conforto, pactuando dessa forma com tanta patifaria que o mundo assiste. É que por muito que se tivesse esforçado, o escritor do estado espanhol não deixou de ser parte activa nas guerras que relata e, foi até bem mais longe, pois que, ainda que lhe possamos desculpar as inverdades históricas que menciona – não chega dizer, “eu vi, estive lá”, pois quantas vezes, os nossos olhos vêem de acordo com as imagens que trazemos no pensamento e não aquelas que na realidade olhamos. Mas Artur Pérez-Reverte vai mais além no seu julgamento da história e dos homens, no seu conluio com a Morte, pois entre as muitas guerras que afirma ter presenciado, elegeu uma como perfil das suas descrições e nesse combate mortal, violento, sem sentido e selvático em que se transformou o conflito jugoslavo, não só toma partido, como transforma os carrascos em vítimas, seguindo o curso de um pensamento dominante de diabolização dos sérvios. Ora, a história já demonstrou que nas batalhas da antiga Jugoslávia, todos foram carrascos e vítimas e Pérez-Reverte não poderia ignorá-lo quando escreveu. Pelo que a sua afirmação, “eu vi, estive lá”, perde muito do seu valor e só servirá para engrandecer esse elogio da Morte que parece ressaltar do seu discurso, trazendo-nos à memória esse outro grito tão espalhado no seu território num tempo de violência desmedida, injusta e sem controlo, que berrava, “Viva la Muerte”.

Numa tarde quente e enevoada de fins de Agosto de 1973 chegava a Moscovo e entre as primeiras pessoas que encontrei, havia uma criança, de nome Pablo com cinco anos que em breve regressaria à sua pátria. Não regressou, pois esse excremento da história que deu pelo nome de Augusto Pinochet, transformou esse magnífico país que é o Chile num matadouro, de homens, de ideias, de vida social. Voltei a encontrar Pablo meses depois. Falava já outra língua para além da sua e a infância no seu país estava adiada por mais de 15 anos. Numa noite da primavera seguinte com a visão da neve a tombar para além das janelas, a boliviana Eliana fazia o relato dos mineiros do seu país, descendo da cordilheira e deitando-se nas ruas de La Paz para deterem os carros de combate da injustiça. Não detiveram, pois estes não pararam, prosseguiram a sua marcha por sobre os seus corpos. Chegaram depois, o brasileiro Bezerra, homem de 70 anos arrastado pelas ruas do Recife amarrado a um jipe militar golpista e o grego Christopoulos libertado após 20 anos nas masmorras dos coronéis que mergulharam a Grécia num manto de terror e silêncio onde só falavam as pedras. No regresso e quando o Ilyushin sobrevoava os Cárpatos, notícias diziam que os militares turcos semeavam uma onda de sangue em Chipre. A Morte sempre presente e os meus fantasmas de uma adolescência precoce.

Na verdade, não existem inocentes. De certa forma todos somos culpados, uns por acção, outros por omissão. O escritor em contradições quase imperceptíveis acaba por o reconhecer. Tanto na entrevista, como através do fotógrafo que colocou no romance insiste na inocência de alguns, mas quando este dialoga com o soldado croata, trazido à liça como vítima, este não deixa de lhe lembrar: “Voltou-se ligeiramente. O seu gesto abarcava as pessoas sentadas nas esplanadas ou que passeavam junto ao cais, com o seu bronzeado e os seus calções, com as suas crianças e os seus cães.

- Olhe para eles. Tão civilizados dentro do possível, desde que o esforço não seja muito. Pedindo as coisas por favor, aqueles que ainda o fazem… Meta-os num quarto fechado, prive-os do imprescindível e vê-los-á destruírem-se entre si.” Sendo verdade, tudo isto, não existe por parte do escritor uma leitura crítica, um apontar de caminhos de que existe ainda e também uma outra forma de olhar o mundo e a humanidade, de que o ser humano não está necessariamente condenado a essa mortandade que tanto aborda nos dois momentos de leitura. Talvez, o elemento essencial do conteúdo do livro, e da entrevista, é que Artur Pérez-Reverte menciona os caminhos da Morte como algo intrínseco à humanidade, esquecendo, propositadamente ou não, os mandantes, aqueles que dão ordens, os que são, de facto os senhores do mundo, os senhores da guerra, os donos da Morte. Sim que as guerras não se desencadeiam porque um grupo de homens decide simplesmente guerrear-se combater-se por mero prazer como saudação ou oferecimento à Morte. Esses confrontos que transformaram milenarmente a vida humana num confronto mortal que alimentaram o espaço e o reino da Morte, essas girândolas de sangue que exauriram os povos, tiveram sempre rostos, vontades, ambições na sua retaguarda. Os milhões de seres humanos sacrificados nesse altar de injustiça, podem ter agido, por nome e em defesa da pátria ou de outra qualquer razão patriótica, mas na esmagadora maioria dos casos nunca foram beneficiários ou interessados nesse fogo imenso aceso sobre o planeta. Porque razão, o autor deste romance não menciona este aspecto, preferindo antes encontrar no rosto dos mortos, dos que vão matar e dos que vão morrer sentimentos de desgraça e violência como justificantes do triunfo da Morte, tanto mais que nessa explicação estará o argumento maior para a compreensão de tanto sangue correr de corpos despedaçados por confrontos em guerras, sem lei e sem qualquer sentido, social e humano. É verdade que num momento da obra conduz o seu personagem até a um amigo, tentando que este lhe encontre respostas: “O amigo olhou-o em silêncio por uns segundos. Aristóteles, prosseguiu imperturbável, nunca se limitou a expor o que acontecia, procurando sempre o porquê. Para nos compreendermos, dizia, temos de compreender o universo; e, para compreender o universo, temos de nos compreender a nós próprios. O que acontece é que desde essa altura, muita coisa mudou. Divorciando-se da natureza, os homens perderam a capacidade de consolo face ao horror que espreita aí fora. Quanto mais observamos, menos sentido faz e mais desamparados nos sentimos.” Mas por aqui se fica. Escutado o conselho do amigo, o personagem afasta-se e continua a sua pintura de sangue e violência, não com o sentido de fazer ressaltar a vida, mas para nos conduzir sempre e cada vez mais para o domínio da Morte.

Por vezes, em viagem, detenho o automóvel na berma da estrada e saio para olhar o que se encontra em redor. Não falo, não penso, não reflicto, olho apenas. O verde da paisagem, o castanho-cinza das montanhas ou o azul do mar e do universo diurno. Sossegado, deixo que as lágrimas rolem e me limpem a alma. Não, não choro pela humanidade, sigo apenas as palavras de Hemingway, “não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”.

Artur Pérez-Reverte através deste seu “Pintor de Batalhas” e na entrevista ao jornal ao El País, conduz-nos ao Prado e, sobretudo, a Goya, mas essencialmente realiza a exaltação da Morte. Não sei se essa era a sua intenção, mas sei que essa é a impressão que nos deixa, o mal-estar que resulta da leitura das suas palavras e dos seus comentários. Por muito que a caminhada da humanidade venha deixando um rasto de sangue pelo planeta, necessitamos de outras palavras, de outras reflexões, de outros caminhos e os livros e os escritores também têm um largo papel a desempenhar e não me parece que esta seja a melhor forma, por muito verdadeiras que sejam as imagens transcritas. Apenas, um elemento positivo e de vida aparece na obra do escritor de língua castelhana, a figura feminina por quem o fotógrafo se apaixonou e cujos pensamentos nos traz nos intervalos do pintor a desenhar os cenários macabros dos instantes mais violentos do ser humano. Salientando a beleza que Olvido Ferrara colocava nos gestos e nas fotos que obtinha, dos objectos e da paisagem, da natureza enquanto instante, recusando corpos e rostos destroçados, Pérez-Reverte não deixa, mesmo assim, de lhe colocar diálogos, sem esperança: “Este mundo assusta-me, Faulques. Assusta-me porque me entedia. Não suporto que todos os tontos se proclamem parte da Humanidade e que todos os fracos se escudem na Justiça, que todos os artistas sorriam ou cuspam, que é a mesma coisa, ao marchand e ao crítico que os inventam. Quando os meus pais me baptizaram erraram o nome [Olvido] por milímetros. Hoje, para sobreviver na caverna do ciclope é preciso chamar-se Ninguém.” Por muitas verdades que nos relate, por muito cruéis que sejam as cenas da guerra, necessitamos de dar um passo além e não deixar que seja a Morte a ditar guerras a construir cenários, a galopar sobre os cadáveres como solução vingadora. Manuel Freire deu vida ao poema que entre outras palavras nos contava que “eles sabiam do banco da escola que o último pensamento era para a pátria amada. Lá saber, sabiam, mas veio uma bomba, fulgurante como mil sóis e nem tiveram tempo para serem heróis”. Por muito amada que seja a pátria e talvez deva ser necessário pensar em que se transformou após o domínio do mundo pelos senhores da guerra, não podemos regressar dessas batalhas e fazermos o elogio e a glorificação da Morte sem interrogarmos, procurarmos e identificarmos as causas pelas quais essa mesma Morte continua a triunfar. Artur Pérez-Reverte não o fez por razões que só o autor poderá explicitar e ao não o fazer deixa essa sensação amarga de angústia e tristeza, de um requiem pela humanidade, daí que não seja estranho nem admire o fim que destina ao seu personagem. Não se podia vislumbrar outro que não entrasse em contradição com as ideias com que elaborou o romance. Como positivo da sua leitura resta a personagem feminina, as reflexões de Olvido Ferrara e o incentivo a visitar o Prado e a debruçarmo-nos com atenção sobre as imagens, as figuras, os significados expostos, mas com a visão optimista de que é possível e um dever triunfar sobre a Morte e não o contrário, pois a humanidade pode ter a sensação de não ter futuro, mas ainda necessita de sonhos. Pelos menos estes, ainda não os perdi.


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