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01/04/25

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AVES AGOIRENTAS

Manuel Joaquim


https://images.app.goo.gl/tgYQheCzNDUC3N4PA



Os raios de sol da Primavera, apesar de ainda não ter conseguido afastar as aves negras que continuam a pairar sobre as nossas cabeças, dão cada vez mais energia para aparecerem no horizonte pombas brancas sinónimas de PAZ.

As aves negras trabalham desesperadamente para que a primavera dê lugar a um inverno negro e profundo. Sozinhas não conseguem. Precisam do apoio de outras aves com outras cores para conseguirem os seus objectivos. Estas são aliciadas com bons poleiros e passam a piar as mesmas coisas aos ventos para influenciar todos os outros passarinhos para acreditarem que o inverno vem aí. Sentem que o futuro lhes está a escapar.

Em 2024, na Suécia e na Finlândia, foram distribuídos manuais de sobrevivência para as pessoas se defenderem de uma guerra nuclear, aconselhando o armazenamento de alimentos, água, baterias, medicamentos e kits de primeiros socorros para sobrevivência por 72 horas. Outros estão a construir abrigos contra ataques nucleares O general salsicha, aqui há uns dias, defendeu e aconselhou os portugueses a fazerem o mesmo. Parece que alguém está a trabalhar para ser publicado um manual de sobrevivência europeu e, se possível, um Kit de sobrevivência. Será fornecido como foram as vacinas do Covid, que deu chorudas comissões a alguém e que ainda está em investigação a nível europeu? Quem vai pagar?

A população dos países da Europa está a ser incitada ao ódio e ao medo de um suposto inimigo, condicionando a opinião pública, militarizando as consciências para aceitar um clima de guerra.

A estagnação económica e a crise social que alastra nos principais países da Europa, obriga o grande capital para sobreviver a encontrar inimigos externos e internos, é dos livros, e a militarização da economia é também uma das saídas.

O Secretário-geral da Nato quer Portugal a gastar em defesa, já este verão, 2% do PIB. Mais canhões menos manteiga, isto é, menos para a saúde, menos para a educação, menos para a habitação. É o roubo dos recursos para alimentar a indústria do armamento e a corrupção com as vendas/compras do material para o bolso dos mesmos.

Entretanto já há empresários  a contrair empréstimos para investir na indústria de armamento.

A presidente das aves negras da EU apresentou o “Plano de Rearmar a Europa” de 800 mil milhões de euros, a realizar em quatro anos, não dizendo como o vai executar. O financiamento da EU já não vai ser como até aqui que era ir aos EUA pedir emprestado em virtude da porta se ter fechado. Eurobonds é uma possibilidade se for aprovado e subscrito.

Para os grandes números é que a porca torce o rabo. Maria Luís Albuquerque, ave negra, na reunião anual do Banco Europeu de Investimentos, disse que vai ser criado uma União das Poupanças e Investimentos, que vai permitir mobilizar para o rearmamento anunciado o aforro dos cidadãos europeus. As nossas poupanças serão canalizadas para a militarização da EU, mesmo que discordemos disso. As poupanças não utilizadas (contas de poupança, depósitos a prazo?) podem ser desviadas para a defesa colectiva e para o fortalecimento do complexo militar-industrial europeu. É a compra forçada de obrigações de guerra. Há quem já tivesse dito que o exército é a nossa segurança social.

Aquando das invasões francesas, “Napoleão, para obviar as despesas da guerra confiscou a todas as igrejas o seu tesouro, deixando, apenas, as alfaias usadas no dia-a-dia. A Igreja do Corpo Santo, ainda assim, teve que enviar um conjunto de peças, como castiçais, cruzes, galhetas e vaso de lavatório” (in Porto Arte e Religião, Massarelos, de Ernesto Martins Vaz Ribeiro).

É bom lembrar que os portugueses em 1983 ficaram sem o subsídio de Natal quando era 1º Ministro Mário Soares. No orçamento de 2012, o governo pretendia eliminar os subsídios de Natal e de Férias para os funcionários públicos e para as pensões acima de 1000 euros até ao final de 2012.

 Para uma população desinformada e mal formada é possível que à sorrelfa nos roubem, como diz MEC.

AS aves negras estão a criar condições para a guerra? As claras sabotagens das negociações que estão a acontecer neste momento, vão conduzir ao recrudescimento da guerra. França, Inglaterra e Alemanha não querem acordos de Paz.

A luz dos raios do sol está a afastar a escuridão e a afugentar as aves negras para longe, permitindo iluminar os caminhos para a PAZ.


NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva



(foto de Valéri Arjanov)



Novosibirsk. Quando deixei para trás a aldeia onde me acolhi nos últimos dias invadiu-me uma mistura de tristeza e melancolia, um desses instantes em que as cores da natureza parecem perder brilho. Seguimos na margem direita do Biia para norte rodeados de perímetros florestais que vão saindo do adormecimento invernal. O horizonte é sempre um ponto ínfimo rodeado de árvores, arbustos, zonas boscosas. Perdura o sossego, a luminosidade da manhã alcança-nos com diversos tons de luz, desistimos de pensar, deixamo-nos ir com o olhar a recolher o sabor de viver. Separadas por variadas distâncias, vamos atravessando aldeias siberianas com as suas casas de madeira rodeadas por hortas e jardins como que adormecidas neste espaço temporal. Vê-se e sente-se que recuperam da beleza e da riqueza humana que lhes foi subtraída em nome de uma pretensa liberdade que mergulhou a sociedade num milagre de quarenta milhões de pobres. As casas vão perdendo a decrepitude, os caminhos parecem ter trabalho humano e pequenas diferenças mostram a presença de um labor de ordenamento. Nestes extensos espaços em que apenas a natureza parece existir, a vivência em solitário envolve riscos quase inultrapassáveis. Os pequenos aglomerados humanos parecem desertos, mas sente-se que a vida pulsa no que os olhos não alcançam. O colorido da natureza, saindo do cinza onde se recolheu no rigor do Inverno, surge agora vicejante nos ramos das árvores, por todo o arvoredo, nesse continuado renascer da vida. É um verde que não cansa, antes pelo contrário, alimenta a vontade de olhar, de sentir e até de nos emocionarmos. A estrada faz uma longa trajectória para a esquerda seguindo a curva do rio até à cidade de Biisk. Há longo tempo que não atravessávamos uma urbe de duzentos mil habitantes, mas as ruas e os passeios são amplos e na parte central encontramos os blocos residenciais dos tempos soviéticos. Tudo o mais é baixo e a vegetação abunda. Esta, como todas as cidades siberianas, nasceram na Idade Moderna, construídas quando o império se foi alargando para Leste. Não que em muitos lugares não houvesse assentamentos humanos anteriores ou por ali não tivessem passado as invasões que de Oriente rumavam à Europa, mas a sua existência como cidades é muito mais tardia e crescem com a chegada dos povos do império ou pela construção da linha transiberiana. Desviamo-nos quinze quilómetros para Sul para ver os rios, Biia e Katun juntarem as águas e darem origem ao caudaloso Ob que viajará até ao Árctico. É uma paisagem de fantasia, de consolo, de mansidão, fazendo lembrar a natureza de Dostoievski. Os escritores russos, sobretudo do século XIX, caracterizavam o seu tempo, o fluir da sociedade, muito em função da natureza, mesmo quando nos descrevem as paisagens citadinas, percebe-se a ruralidade da vida, na pobreza e no comportamento dos camponeses, vivendo entre a miséria e a nobreza. Só nestes espaços de silêncio, de pureza, de matizes quase sobrenaturais, se conseguirmos interiorizar o que vemos, poderemos então compreender a vasta extensão da Rússia e dos seus povos. Sente-se palavras de poesia em tudo o que contemplamos. Por ali me aquietei longas horas e a memória trouxe até mim o tempo em que me dizias, «se quiseres partir amanhã, eu paro o mundo». O mundo nunca chegou a parar e eu fui por ele adiante e tu ficaste. Encontramo-nos aqui e ali ou quando te chamo. As lembranças que a natureza nos traz! Segui para Norte, mas com tanta beleza no interior do olhar, evitei a grande cidade de Barnaul. Um aglomerado industrial de seiscentos mil habitantes iria esmorecer o sorriso que me anima desde a nascente do Ob. Retive-me algumas horas junto à foz do Berd para olhar de novo o Ob, o qual, retido por uma central hidroeléctrica forma um reservatório com uma amplitude assombrosa colocando-nos de novo no arrebatamento de um cenário irrepetível. Mas já estou próximo, a grande cidade abre-se no horizonte para onde caminho. Novosibirsk foi um desejo de há muito, uma quase promessa não concretizada, um sonho que se desfez nas areias do deserto de Karakum. Entro vagarosamente na terceira maior cidade da Federação da Rússia, com os olhos abertos na absorção do que encontro. A cidade da ciência com os seus trinta e dois institutos de ensino superior, entre os quais onze universidades, aqui no coração da Sibéria. Procuro a margem do rio junto à ponte ferroviária que me faz lembrar a de Krasnoiarsk sobre o Ienissei e aguardo a passagem do comboio. Vem lento, sem pressa, como se, extenuado, visse o destino a chegar, como se viesse a reconhecer o caminho. Por momentos, uma névoa, traz-me o mundo onde vivemos, onde desalentada a humanidade aparece atropelada por um bando de desmandados que se digladiam na monstruosidade dos seus crimes, das suas atrocidades, plenos de impunidade e de poder. Fecho os olhos para regressar ao movimento da composição que atravessa o Ob. Hoje não escrevo, o postal envio no caminho. Prossigo para Norte.


 

ESGOTOS

António Mesquita

     

                         
"Disso claramente se aprende quanta estupidez e pouca prudência há em reivindicar uma coisa e dizer logo “Quero com isto fazer o mal”, pois não se deve mostrar a disposição que se tem, mas é preciso tentar obter aquele objectivo de qualquer modo, pois basta pedir as armas a alguém sem dizer “Eu  quero-as para te matar”, podendo, depois que tiveres as armas nas mãos, satisfazer o teu apetite."(Maquiavel)


Vemo-los todos os dias quando nos dirigimos para o trabalho,  quando vamos às compras ou tomar café. Não se pode fugir àquela cara.

Nunca se fez nada assim ou só nos tempos da  ditadura e agora pela força do dinheiro.

Que acção a longo prazo duma tal insídia? Podia ter sido congeminada por um algoritmo, mas é, provavelmente, só preguiça. É um prolongamento de jogo contra todas as regras. É isto ainda liberdade de opinião?

Aquela figura de proa levantada nas nossas praças a prometer a recolha do lixo e a limpeza do espaço público. A prometer uma nova ordem. O que é que significa isto?

Há dias, uma equipa técnico-científica inglesa propôs-se reconstituir os traços fisionómicos do mais celerado dos reis da sua história. Um torto que chegou ao poder para fazer todo o mal possível, para se vingar da deformidade com que o destino o contemplou. Pelo menos é o que o celebrado vate isabelino, nos quis transmitir na sua peça homónima: 'Ricardo III".

Ocorre, talvez, perguntarmo-nos porque precisamos de ter esse hipotético  rosto do século XVI, cuja verosimilhança  é atestada pela tecnologia de ponta. Para quê senão nos apropriarmos  dum novo emoji nas nossas redes omnívoras?

Alguém ou alguma coisa por nós pensou que a insistência num cartaz político para lá de todos os prazos, como uma lição a aprender, um tema subliminarmente a decorar, nos iria predispor para, na hora do voto, pagar o investimento destes novos aprendizes de feiticeiro? Como se todos nós nos fôssemos transformando no Gregor Samsa do conto de Kafka.

Não há, parece, uma lei que proíba esta invasão permanente do quotidiano pelo refrão político, embora ninguém suportasse ouví-lo meses seguidos - a vista permite-nos ter pontos cegos. Não olhar para aquela cara, que podia ser a do vilão de Shakespeare antes de subir  ao poder.

Mas, assim como se ataca uma infecção quando percebemos que o corpo se encontra doente, haverá qualquer dia que pôr termo a este morbo da democracia. Só nos falta acreditar nos princípios e não dizer como Groucho que temos outros se estes não agradarem.

Mas por que não terá um partido qualquer o direito de fazer propaganda todo o tempo e com o mesmo slogan? Uma empresa talvez perdesse com isso,  porque a mensagem se esbateria e deixaria de chamar a atenção. Essa ideia só não funciona assim, supõe-se, na cabeça dos promotores do "carro do lixo" porque justamente é uma experiência política paga por outros. É o lema de que tanto martelar achata e leva a água àquele moinho.

A democracia, como se viu nas últimas eleições americanas, não se sabe defender. Coexiste com a extrema desigualdade, o racismo, o mccarthismo, a guerra imperialista e agora o populismo da "moto-serra" que é o novo conceito de revolução. Não é por acaso que já compararam a convulsão trumpista à Revolução Cultural de Mao.

A "populaça", de que escarnecia Platão, no século V antes de Cristo, contra a opinião dos fundadores da ideia política, seus contemporâneos, pela  instabilidade de humores e a sua ignorância mostrou, mais uma vez, ser igual a si própria. 

Apesar de tudo, a democracia impôs-se como a mitologia do nosso tempo, como diz Alain Brossat (*). As piores ditaduras não dispensam as eleições, se bem que forjadas, para legitimar a força. Mas esse mito é verdade que já teve melhores dias. E a maior ameaça não é a descrença nem os tiranetes da hora, mas a tecnologia que nos pede mais e mais poder sobre as nossas vidas.

Até quando aquele cartaz infame nas nossas praças, com lugar garantido e selo geopolítico?



 (*) "Le sacre de la démocratie"

POESIA

Helena Serôdio


 

INTERMEZZO

 

Rasgou-se o ventre da noite
E nasceram catadupas de astros!
Magnífica,
Resplendente qual jóia preciosa ,
A lua brilhou entre os seios da noite, alvos como dunas!
A noite era uma planície imensa, orvalhada de estrelas,
Branca de luar e de mistério,
Povoada de visões fantasmagóricas!
O seu corpo virginal,
Intocável,
Envolto em ténues neblinas.
Era um vasto oceano
Interrompido por ilhas desertas,
E cada um dos seus órgãos
Era um mundo independente,
Animado de vida própria ,
Girando em volta de si mesmo!

A noite descerrou as pálpebras,
Sacudiu a longa cabeleira
E despertou para mais uma vigília.

Refugio-me nos braços da noite,
Estreito-a longamente ao peito,
E abraço o vazio e a solidão.
Afago-lhe a face pálida a
Reflectir o espasmo da insónia.

Vejo-me no espelho dos seus olhos
Calmos como plácidos lagos,
Em que a indiferença flutua,
Beijo-lhe a boca gélida,
Muda,
E nela se desprendem, num esgar,
O desdém e a ironia!

Debruço-me na noite fria
Como numa ponte de cristal
Suspensa nas alturas!
Atrai-me a vertigem do abismo
Em que o corpo se lança para dormir sono eterno.
E o espírito paira, enfim, liberto!

Aspiro o perfume da noite,
Inebria-me o prazer do ignoto...

A noite é um cemitério de paz,
Onde jazem sepultados os meus sonhos,
As minhas aspirações,
A intimidade do meu ser...

Siderada nos espaços,
Isenta,
Inviolável,
A alma da noite é uma flor solitária,
Aberta para o silêncio
Em que a minha vida se debate...

Impudica,
A noite revelou-me generosamente a sua nudez.
E eu vi-me nua dentro da noite!...

SOARES É FIXE?

Mário Martins

https://www.wook.pt/livro/mario-soares-joaquim-vieira

 


Ler esta biografia não autorizada de Mário Soares, com mais de 1000 páginas, baseada, entre outras fontes, em 16 longas conversas com o biografado, da autoria do jornalista, ensaísta e documentarista, Joaquim Vieira, é não só acompanhar 70 anos de vida política activa no combate denodado à ditadura do Estado Novo, e depois, na luta pelo estabelecimento e consolidação da democracia, tal como ele a via, como também, por essa via, revisitar muitos dos acontecimentos políticos marcantes de um e outro tempo.

O mesmo, aliás, se poderia dizer da biografia, igualmente não autorizada, de Álvaro Cunhal, com mais de 2600 páginas distribuídas por quatro volumes, publicada há uns anos, da autoria do professor, historiador e arquivista, Pacheco Pereira, esta mais sociopolítica, que relata a resistência heróica à ditadura salazarista e, depois, a luta, não pela consolidação da democracia liberal, mas pela implantação de um regime socialista inspirado na experiência soviética.

A formação do jovem Mário Soares decorreu num ambiente familiar de certo desafogo financeiro, mercê da exploração de um colégio de ensino, e de permanente conspiração política contra a ditadura do Estado Novo. O pai, João Soares, um homem corajoso, era uma figura do reviralho, participante em diversas conspirações para derrubar o ditador Salazar, sofrendo com isso a clandestinidade, a prisão, a deportação e o exílio.

Mário Soares tinha uma grande admiração e respeito pelo pai, dele herdando a coragem e o sentido de intolerância à ditadura (o que lhe acarretaria a prisão por 12 vezes, a deportação para S. Tomé e o exílio em França para não voltar a ser preso), além do sucesso no relacionamento com o sexo feminino.

Um aspecto que impressiona quem não anda nestas andanças, é o que se passa nos bastidores da política que é servida no espaço público, em que o tratamento informal e não raras vezes agressivo entre os principais actores se substitui à pose mediática, como neste exemplo ilustrativo:

Soares dava-se bem com o professor Mota Pinto, então presidente do PSD, com quem se coligara em 1983 para constituir o governo do “bloco central”, mas isso não o impediu, na sequência da decisão de propor a despenalização do aborto em certas condições, tomada por grande maioria em congresso do PS (decisão a que não era contrário mas considerava inoportuna), de em pleno Conselho de Ministros vituperar Mota Pinto (que o avisara antes “que o seu partido estava em pé de guerra e que o tinha de seguir, votando contra”): “Ó Mota Pinto, você o que é é um hipócrita. Responda aqui a estes senhores (…) quantos abortos é que já pagou às gajas com quem se meteu.” Mota Pinto dá uma gargalhada: “Essas coisas nem se dizem nem se falam. Vamos lá a tratar de coisas sérias, temos que nos entender.”, salvando assim a situação. Nas palavras de um correligionário, Bernardino Gomes, “Soares gosta(va) muito de senhoras e de boa vida, e Mota Pinto também. Eram iguais. Tinham uma cumplicidade enorme (…)”

As referências biográficas a aventuras extraconjugais (e também ao processo de alegada corrupção, conhecido pelo “fax de Macau”, que levou o governador Carlos Melancia à barra do Tribunal onde, no entanto, seria absolvido) desagradaram profundamente a Mário Soares, que descarregou as suas costumadas fúrias no biógrafo, para quem, ainda assim, o comentário que a sua mulher, Maria Barroso, terá feito em telefonema a agradecer o envio da biografia, de que “É um livro escrito com muita honestidade.”, serviu, certamente, de bálsamo. 

Um episódio menos conhecido demonstra que uma mensagem formal, sem alicerce prático convincente, corre o risco de ser interpretada ao contrário. No debate parlamentar do programa do novo governo PS/CDS (assim considerado pela opinião pública embora, oficialmente, designado como acordo parlamentar de incidência governamental), que viria a ser empossado em Janeiro de 1978, Soares, intuindo as implicações políticas de uma aliança com o CDS, declarou que “Não quer isto dizer que estejamos aqui para meter o nosso socialismo (fosse isso o que fosse) na gaveta.” Para a opinião pública, porém, Soares metera o socialismo na gaveta…

Curiosamente, foi um jovem do CDS, que preferia Mário Soares a Freitas do Amaral nas presidenciais de 1986, que propôs o sloganSoares é fixe”. De facto, Soares foi melhor Presidente da República do que Primeiro-Ministro. Preferia ler livros a estudar dossiês. Bateu-se sempre pelo figurino europeu ocidental de liberdade política, existência de partidos, e expressão do voto popular em eleições periódicas. O seu espírito intuitivo e impulsivo despertou paixões. Foi amado e odiado, o que, sem dúvida, justifica que coloquemos o seu “porreirismo” na forma interrogativa. 

01/03/25

212


NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva



(Foto de I. Kalmykov)



Iáiliu, Lago Teletskoie, Altai. Quando deixamos a longa cordilheira do Pamir e seguimos para Norte em paralelo com a fronteira chinesa, a paisagem planáltica que nos acolhe permanece de terra e pedra seca que a altitude e a neve não deixam flor ou erva medrar. Mas o silêncio e o sossego compensam. Há ausência de sons que provocam a sensação da não existência de vida. Quando alcançamos o desfiladeiro por um deslizam as águas do Rio Katun, tudo em redor está em mudança. As montanhas comprimem-se e o verde domina agora o cenário. Surgem os sons do interior de florestas alpinas, das águas que ressaltam nas pedras em cada recanto, tudo nos aparece como um renascimento e percebemos que chegamos às Montanhas Altai ou Douradas como são localmente conhecidas e declaradas Património da Humanidade. Penetro neste mundo de verdes vivos e húmidos e quando subimos ainda podemos olhar à distância o pico do Vielurra, ou Belukha como por vezes vemos escrito, nos seus mais de quatro mil metros. Há uma espécie de oposição entre este verde terreno e o branco das alturas nevadas que ao derreterem-se dão origem aos lagos de cores irrepetíveis, que vamos encontrando. Como são os lagos que procuro, assim cheguei a este Teletskoie. É uma espécie de L invertido o que o alonga por cerca de 60 quilómetros. Chega a ter larguras de três quilómetros e meio, comprimidas entre montanhas em cujas encostas as árvores descem até às águas. Nesta espécie de pé com um pouco de perna, escapa-se pelos seus dedos o Rio Biiá que aqui nasce e juntamente com o Katun irão confluir para o Rio Obi que recebe como afluente, o Irtich. São os grandes rios siberianos, juntamente com o Ienissei, descem da cordilheira do Altai e navegam em grande caudal, para o Árctico. Tudo nos aparece numa escala de grandeza que aparenta esmagar-nos se não soubermos dosear a escala do que vemos. Procurei parar numa pequena aldeia na sola do pé gerada pela geografia do Teletskoie. Iáiliu, digamos que tem três ruas, chamemos-lhes assim e não ultrapassa os duzentos habitantes. Da aldeia posso olhar para os dois braços deste poderoso lago com uma reentrância pelo calcanhar para acolher o pequeno Rio Ilanda. Para quem chega do Pamir, fica rodeado por um mundo de água. Tal como no caminho que me trouxe, também aqui reparto o tempo entre o vazio do pensamento, como se fechasse uma câmara frigorífica, e a reflexão da vivência humana. E caminho, pela margem do lago até onde as sendas me permitem. Quando alcanço a foz do Ilanda, sento-me e deixo a memória adormecida, como se apagasse a luz dos sons e do movimento. Fica apenas o olhar e o tempo a passar. Mas há momentos em que a porta não fecha, por mais que tentemos, como se um obstáculo se interpusesse e impedisse o trinco de baixar. Nesses dias e momentos, o que recordo e todos nós vemos, impressiona pela miséria e pela grandeza. Por um lado, temos a beleza natural em todo o perímetro planetário, lugares que nos cativam e nos imobilizam pela impossibilidade de os descrevermos e vivenciarmos em toda a plenitude. O mesmo podemos dizer de algumas acções humanas. Nos lugares mais improváveis encontramos pessoas de grande nobreza que arriscam a sua vida para salvar um animal que se afoga. E quando esta pulcritude nos enriquece a alma e nos deixa serenados, surge-nos como um rio sangrento, algumas cabeças humanas como fossas sépticas que escoam para o exterior a lama da maldade sem tratamento. Os palhaços são hoje os actores principais, mas os donos do circo, escondem atrás do palco o perigo da sua maldade insaciável e permitem que o palhaço prometa a limpeza de um povo em directo, como qualquer banalidade normalizada. E assistimos a toda esta demência, paralisados e impotentes perante o crime hediondo que se desenrola perante nós. É difícil encontrar na história da humanidade, Estado mais infame do que o chamado Estado de Israel, um verdadeiro antro de loucura que inunda o planeta de escória apodrecida para satisfação das suas mitologias irracionais. Amarrados e estarrecidos assistimos a um dos momentos mais negros, senão mesmo o mais degradante, da história humana. Hoje está um dia bonito, a luminosidade dos raios solares desce por entre a folhagem, sente-se um rumor de vida como um sussurro longínquo, escutamos movimento e sons de acções que não vemos. Passaram já vários dias e não apetece sair da leveza deste lugar. Amanhã, prossigo para Norte, como se fugisse. Vou ao encontro do transiberiano. O postal segue comigo.


O ESPAÇO VITAL

Mário Martins

        

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“Toda a sociedade, em um determinado grau de desenvolvimento, deve conquistar territórios onde as pessoas são menos desenvolvidas.

Um Estado deve ser do tamanho da sua capacidade de organização.”

 Friedrich Ratzel (1844-1904)

(Etnólogo e geógrafo alemão; influente pioneiro da geopolítica.)



O que deve prevalecer: a geopolítica das grandes potências ou a soberania dos países?

Se é a geopolítica, os líderes russos têm razão na guerra da Ucrânia. Ainda nos inícios da invasão o Papa citou a opinião de uma pessoa que tinha na conta de muito ponderada, segundo a qual o Ocidente andava a ladrar no quintal dos russos. E já em pleno curso da guerra o antigo “caixeiro-viajante” do presidente americano Nixon, Henry Kissinger, entretanto falecido, alertou que o seu prolongamento redundaria numa indesejável e perigosa guerra Leste/Oeste, quente ou fria.

É da natureza das grandes potências imperiais a busca incessante do que consideram ser o seu “espaço ou interesse vital”, trágica e tresloucadamente perseguido pelo regime nazi. No quadro geopolítico só existe a soberania das grandes potências, submetendo-se os países da respectiva “esfera de influência” ao seu interesse territorial ou económico-financeiro.

É hoje, porém, claro que o imperialismo americano deixou de estar sozinho - para não falar da “esfera de influência” soviética do passado, e da soberania limitada dos países nela contidos - perante a crescente concorrência dos novos imperialismos, russo e chinês, que forçam uma nova ordem mundial visando uma mais favorável partilha do mundo.

Neste contexto, é ancilosada e improdutiva uma análise política baseada na crítica unilateral do imperialismo do “Grande Satã”.

Nenhum país gosta, no entanto, de ser invadido, física ou economicamente, a não ser por corrupção dos seus líderes. Veja-se o caso português, que não se submeteu a Castela nem ao imperialismo napoleónico (com a decisiva ajuda do exército inglês); e se hoje a sua soberania é mitigada, foi porque aceitou ser parte de uma união transnacional, à qual outros almejam pertencer.

A base da geopolítica é a “lei” da força, mas pode dizer-se que perante uma agressão que viola o direito, a soberania só se defende com a mesma “lei” (e o apoio de aliados fortes, entenda-se), ainda que à custa de grandes sacrifícios e sofrimento.  

Passe a ironia, “Dura lex, sede lex”…

PS:

1 - O novo presidente dos Estados Unidos, no seu melhor estilo de agente imobiliário, logo nos primeiros dias, à questão de saber a sua posição sobre o conflito israelo-palestiniano, respondeu cinicamente que é uma guerra deles, como se os americanos estivessem de mãos lavadas e não armassem Israel até aos dentes, não se coibindo mesmo de afirmar que Gaza se encontra praticamente demolida, mas que tem potencial, bom clima, boas águas... Daí à publicitação da ideia de a transformar na “Riviera do Médio-Oriente”, enxotando os actuais residentes palestinianos, foi um pequeno passo.

2 - No seu afã radical de pôr tudo em causa, quer em termos domésticos quer mundiais, a nova administração americana e os seus gurus ocultos, não recorrem exclusivamente à substância política servida por uma maciça campanha ideológica. Também revolucionam a forma: veja-se a substituição da gravitas pelos arremedos de dança do novo inquilino da Casa Branca, ou pelo aspecto casual, com o filho às cavalitas, junto do presidente, a falar para as câmaras não sei o quê, desse génio apalhaçado e podre de rico que dá pelo nome Elon Musk

Assim vai o mundo…humano.

O MOMENTOSO BOTTOM

António Mesquita
https://images.app.goo.gl/efxYgeZW3RS3413X8




"Valha-te o diabo, vilão! — interrompeu Dom Quixote. — Que coisas dizes tu às vezes! Até parece que as estudaste!
 — Pois juro que nem sei ler — respondeu Sancho." 
("Dom Quixote" de Cervantes) 



Nas "Mil e uma noites", o truque para motivar o califa a adiar a execução é sempre o mesmo. Sherazade deixa a peripécia a meio porque o tempo se esgotou.  Conseguida a trégua, enlaça-se com o amante uma noite mais. 

A narração começa com a metamorfose do filho do sheik num vitelo e duma escrava da família numa vaca, por artes duma prima do sheik, por sua vez transformada em gazela.  Estamos num conto com mais de mil anos e aceita-se a magia, sem pedir explicações.  

No "Sonho de uma Noite de Verão", Shakespeare recorre a uma arte que tal. Bottom, um actor de comédia, é igualmente convertido num burro por Puck,  um duende, e Titânia, a rainha das fadas interessa-se por ele.

Freud, numa carta de 1938 a Setfan Zweig, refere-se a essa personagem para lamentar que os Alemães tenham eleito um Bottom, que outra magia fazia parecer um homem vociferante.

Mais de oitenta anos depois, os tiques gestuais dessa criatura são timidamente (por ora) ensaiados por acólitos e ideólogos improvisados.

É caso para dizer que a democracia se tornou tão instável  como o clima e que a história se repete - esperemos que como farsa, segundo o "mot" de Marx. 

Pacheco Pereira, no Público de 22  passado, dizia que a democracia não são só eleições, mesmo livres na aparência. "Pode haver eleições livres e controladas, e existir legitimidade eleitoral, e não haver democracia, pela falta de outros elementos constitutivos do que é uma democracia, em particular dois: o primado da lei e o respeito pelos procedimentos que garantem os direitos, garantias e liberdades.". Mas quando os vigilantes da lei são eles próprios fanáticos...

Retomando o tema do intróito, podia dizer-se que o "povo", formado por milhões de vontades "sob influência", elegeu Bottom e que os  mágicos voltaram como no conto árabe ou na peça isabelina. Por isso tudo deve ser lido com uma chave que não é a da verdade dos factos, mas a das projecções mitológicas e o magnetismo estudado dum palco televisivo. 

Em "The Art of the Deal", o novo Bottom já disse ao que vinha. Tudo é dolarizável e, dos moradores do bairro aos arranha-céus da metrópole e do fulano e sicrano com que nos cruzamos todos os dias ao "dono de todas as estepes", há sempre um negócio a fechar para contento dos mesmos. É uma espécie que se rege 
pelos ‘espíritos animais’, de que falava Keynes, como alguém já citou.

Só saímos disto com o despertar e a deposição das máscaras. O homem da motoserra, em entrevista recente, diz que não quer despertar ovelhas. É de lobos que fala: "homo homini lupus" diziam os latinos com alguma razão. Os milénios que nos separam dessa sentença de Plutarco significariam então que não houve "progresso". Progresso é, aliás, um outro termo da magia moderna.

Estamos, talvez, prontos para a Inteligência Artificial. Essa criatura humana a quem demos tudo o que tínhamos para dar e guardar e que aprendeu, por si só, a melhorar e a fazer com mais eficácia aquilo que sabe fazer. A ponto de Bill Gates admitir, numa série da Netflix, que ele, o humanista e idealista, com várias actividades que, sem dúvida,  considera filantrópicas, se verá, qualquer dia, interrogado pela criatura com a estocada definitiva: - "Por que te metes nisso? Eu posso fazer melhor. Vai, em vez disso, jogar golfe, por exemplo."

O pior é se Bottom recebe também  o mesmo convite...

UMA PRIMAVERA

Manuel Joaquim

"Uma Primavera" de  Gino Severini 
(https://images.app.goo.gl/LVFgCjwqaZTuXLUM9)

 


A Primavera começa a despontar aqui e ali mesmo contra as vontades de aves agoirentas que, em desespero, procuram bloquear os raios de sol para manter a escuridão para melhor saborearem as carnes putrefactas de que se alimentam.

As aves agoirentas que até agora só defendiam o inverno, com ameaças de graves turbulências e que nem sequer queriam ouvir falar na Primavera, já são obrigados a falar nela. O tempo está a mudar e, em desespero, com a ajuda de Prozac receitado por um General que conhece o inverno, essas aves, a seu tempo, mudarão de pouso.

Mónica Baldaque, numa entrevista que deu no passado dia 1 de Fevereiro, diz que “assistimos a um tempo de infantilização do homem. O estado de guerra é isso. Diz-se que se procura alcançar a paz. Mas a paz sem pensamento é um estado frágil e inevitavelmente conduz à guerra”.

Falar de Paz, defender a Paz era motivo para insultos e agressões. Hoje vemos agressores de palavras e de actos a falar de Paz. Palavra que lhes sai sem pensamento. Hoje vi na TV o personagem tira-fotos a falar de Paz, num recado que recebeu para dizer publicamente, mas o seu pensamento estava na guerra.

Os rapinadores e seus sequazes andam muito nervosos e aflitos porque o rapinador- mor quer ficar com quase tudo de valioso e não deixar nada para eles.  Todos eles tentaram rapinar do outro lado do muro mas parece que estão a ser vítimas da sua própria gulodice, habituados à rapinagem noutros mundos, tempos que já lá vão.

Mas a chegada da verdadeira Primavera, infelizmente, ainda vai demorar. Chegou agora à ribalta um alto representante de um dos grandes rapinadores e acérrimo defensor do inverno que pode desencadear grandes tormentas. Esperemos que não tenha grande futuro. Os raios do Sol da Primavera darão certamente energia suficiente para enfrentar todas adversidades.

 


01/02/25

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NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva



Lago Karakul, Pamir. Desconheço quando te chegará às mãos este postal. Por agora, estamos no final do Verão. O calor tende a esmorecer e os cumes brancos que resistiram, verão em breve o seu domínio de alvura aumentar e estender-se pelos vales planálticos. Quando esse tempo chegar quase nada se distingue para além da branquidão luminosa e sedosa e das pedras escurecidas da cordilheira que tombam quase na vertical e nem a neve consegue colar os seus tentáculos. Será a época desse vento que nos rasga a pele quando a expomos a esse ar onde rareia o oxigénio. Mas por agora, o sol domina a paisagem de terra seca amarelada onde não vemos ponta de erva ou flor. Quando nos encontramos do lado Norte deste lago formado pelo degelo, o nosso horizonte aparece coberto de um azul límpido e luzente de água imobilizada. No fundo desta plateia, os grandes picos da cordilheira cobertos de neve acima dos sete mil metros. Não existe um sonido que perturbe estes momentos, estas horas em que nos limitamos a observar e caminhar em pequenos passos. Quando nos sentamos, quedamo-nos nessa mudez que nos faz viajar na interiorização do belo e sentimos essa recusa de pensar no mundo. Percebemos que nos encontramos noutro patamar da vida, da existência, em que qualquer som soaria como um grito ou o arranhar de chapa em pedra dura. Seria uma dessas maldades que aqui não podem ter lugar. Neste lugar perde qualquer razoabilidade a velocidade das grandes urbes, as maldades e as ganâncias dos «mordomos do universo todo» e quando tentamos construir na alma do pensamento as terras do Tibre ao Nilo, o registo apaga-se pela incompatibilidade do inferno com a magia. Dobram-se os séculos e os milénios e a carcaça pôdre dos resíduos imundos em que se transformam os mandantes do planeta, não desaparece. Por vezes, como neste tempo em que vivemos, espalham-se como lama sobre os povos e as terras, semeiam violência na impunidade que lhes é garantida pelas guardas pretorianas do dinheiro e do cacete. Restam-nos estes lugares como refúgio protector das sanhas musgosas de serpentes sem moral e sem ética. As montanhas que olho na distância quase infinita do Karakul mais parecem um altar sagrado de pureza e letícia. Podemos imaginar tudo que os sonhos permitem com a quase certeza que se cumprirão. Estamos perante o soberbo e o irreal, e quando procuramos palavras que tornem esta realidade compreensível, constatamos que desapareceram ou ainda não foram criadas. A aldeia está a 20 kms, um misto de pequenas casas de quatro paredes e iurtas de abrigo numa espécie de parque de campismo se é que esta definição faz aqui algum sentido. Não faz, na verdade, mas ainda não conseguimos despir a memória dos termos que trouxemos. Não sei como vou regressar, mas pouco importa neste lugar. Se nos esquecermos do frio que desce na companhia da noite, podemos dizer que tudo é possível. Há momentos que vemos ao longe, na estrada de terra, passar motociclos, quase sempre europeus. De seguida podem decorrer horas ou dias até vermos alguém de novo. Há quem se aventure no rigor do Inverno, mesmo sabendo que a natureza nos pode engolir. Esta terra dura e amarela que os pés calcam, na Primavera enche-se de verde e por vezes a coragem de algumas plantas pode gerar flores. É o tempo dos pastos e dos rebanhos. Mas se de dia os olhos se repartem entre o azul da água, o castanho das montanhas, a neve dos cumes e o amarelo da terra, a noite traz-nos um galaxial universo que nos derrete em espanto. Ainda existem espaços terrenos onde podemos soltar os sonhos que nos fazem acreditar na humanidade e num mundo sem donos nem palhaços fardados de sátrapas. Caminho agora ao longo do lago. Não sei quando regresso. Cansada de ouvir tocar os tambores da guerra, vou continuar a fugir. Levo o postal comigo. Sigo para Norte para as montanhas do Altai.


 

 

A PERGUNTA

Mário Martins


      Uma ilha antiga do Porto
(https://www.google.com/search?client=firefox-b-d&sca_esv=475fc5fd866ec640&q=ilhas+do+porto)


Porque é que “a condições objectivas de vida e habitação degradadas não corresponde uma acção colectiva de contestação e/ou revolta?”

Eis uma questão social e politicamente central e com plena actualidade, que é abordada segundo as diversas escolas de pensamento no livro “Moradores de bairros populares no Porto e em Braga – Condições objectivas de vida e estratégias de sobrevivência e resistência passiva”, enquanto parte de um projecto coordenado pelo Doutor em Ciências Sociais, Culturais e Políticas, Manuel Carlos da Silva.

No estudo dado à estampa, baseado em mais de 800 inquéritos e realização de entrevistas, são exaustivamente apresentados gráficos estatísticos que quantificam e qualificam a realidade social dos moradores de bairros populares.

Os resultados desta pesquisa mostram que “a quase totalidade dos moradores não conheceu de facto mobilidade social ascendente, e confirmam a tese da reprodução social e a manutenção de situações de pobreza relativa e, por vezes, absoluta.”

Relativamente à ausência de “um movimento social urbano reivindicativo e organizado face a condições de vida severas e de habitação degradada”, que o autor apelida de passividade, são expostas as quatro principais correntes ou modelos explicativos: “o modelo ontológico-moral de cariz funcionalista e culturalista; o sociopsicológico e a teoria da privação relativa; o modelo de poder; e a abordagem materialista histórica.”

No modelo ontológico-moral “os protagonistas sociais teriam tendencialmente uma personalidade-base, ora individualista e calculista, ora comunitarista e solidária, sendo factor determinante a consciência colectiva, a cultura num quadro de diferenciação social, mas complementar (…), (solidariedade mecânica na sociedade tradicional e orgânica na moderna) (…), gratificando os conformistas e cumpridores de normas da ordem estabelecida e penalizando os dissidentes, ‘desviantes’ ou ‘transgressores’.”

Já o modelo sociopsicológico, na sua versão mais recente, “reconhecendo uma maior variabilidade do comportamento humano (…) e partindo do raciocínio subjacente de que o lugar de cada actor social no sistema de estratificação estaria na base da medida de satisfação-insatisfação, apatia-rebeldia, frustração-agressividade”, considera que “quanto mais baixo for o estatuto de determinado indivíduo maior a probabilidade de motivação, (pre)disposição psíquica (…) para a indignação, revolta, protesto ou acção colectiva (…)”

Por sua vez, o modelo de poder “considera (este) como o factor explicativo dos comportamentos sociais, das relações clientelares, da acção sociopolítica das classes sociais, assim como das diferentes configurações políticas a nível local, regional ou nacional. À acção, ora contestatária, revoltosa ou revolucionária, ora resignada, passiva e conformista de determinados grupos/classes sociais, subjaz na arena política uma estratégia de poder consciente (…)”

Na abordagem materialista histórica, “as acções das classes e dos grupos sociais são explicadas a partir do(s) respectivo(s) modo(s) de produção, dos conceitos e categorias daí derivados, nomeadamente do grau de desenvolvimento das forças produtivas, relações de produção e conteúdos das instâncias político-ideológicas (…)”

No balanço crítico do autor “não há uma relação directa de causa-efeito entre pobreza ou privação relativa e revolta ou revolução, nem esta é resultante da soma de indivíduos insatisfeitos, descontentes e ressentidos. Como sustenta Scott, se o ressentimento fosse suficiente para a revolta todo o Terceiro Mundo estaria a arder em chamas (…) Os pobres, privados de recursos e posicionados em situação vulnerável em termos atomicistas e, sobretudo quando não organizados, não conscientemente politizados nem movidos pela utopia transformadora, preferem resguardar-se na esfera pública, quando muito, soltam os seus ‘desabafos’ ou ‘queixas’ num registo familiar ou informal e, amiúde, (semi)oculto, de modo a terem o beneplácito dos detentores de poder e, sobretudo, não sofrer retaliações pela emissão de críticas abertas, frontais ou públicas.”

Depois de criticar “o pressuposto estrutural e economicista na análise tradicional marxista em torno das classes sociais (…), tornando-se (assim) intrigante constatar como, perante a não-coincidência entre o factor de ordem económica e o comportamento político, se aliam na tradicional perspectiva marxista um economicismo apriorístico e a remissão para o campo ideológico como factor explicativo (…), o autor salienta que o modelo ontológico-moral culturalista e o modelo sociopsicológico foram rebatidos pela sua unilateralidade conceptual e/ou generalização não empiricamente comprovada, e que o modelo de poder e o modelo marxista, (embora) apresentando factores explicativos relevantes, foram objecto de crítica pela sua monocausalidade e, por isso, devem ser articulados com a perspectiva da “economia moral” (…) enquanto conjunto de motivações, experiências e sentimentos de (in)justiça partilhados e enraizados nas condições materiais de existência.”



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