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31/08/23

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NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva







Quando saímos de Aregos em direcção a Leste, a estrada eleva-se para nos afastarmos do rio. Ergue-se para um patamar superior sem abandonar a sua presença, a do rio. Ficamos sobranceiros. Separa-nos a vegetação arbórea, aquele verde que se confunde com a cor das águas. Na outra margem aparece-nos bem visível a Casa de Eça, lá no cimo junto à N108 e recordamos o caramanchão que ao lado do edifício nos permite contemplar o vasto horizonte que se abre para Sul num anfiteatro esplendoroso, de beleza e grandiosidade. À esquerda, na estrada que nos leva, surge um portão de acesso residencial e na pedra que o sustenta podemos ler “Casa da Poesia”. Desejamos que assim seja, que a poesia não se quede pela pedra da entrada, mas habite no interior daquele lugar. Nem sequer é difícil se tivermos presente o espaço onde está inserida, entre a estrada e o rio numa cadência de socalcos entre o verde e a cor da terra. Viver ali, é só por si um acto poético, mas a poesia é muito mais do que um lugar e uma paisagem para que não caia naquele pensamento de Paco Ibáñez, de ter que dizer, “maldigo a poesia concebida como um luxo, cultural para os neutrais”. Que a destes habitantes possa conter o amor de Neruda, a ironia de Brecht e o combate de Maiakovski. A manhã está aprazível, convida a viajar, a olhar o que vai surgindo sem que o Douro se afaste. É o esplendor da N222 agora em terras de Resende. Mas quando nos aproximamos da vila algo nos perturba o pensamento, como sobre um céu radiante de azul aparecesse uma pequena nuvem a tapar um pouco o sol, como se fizesse encolher a luz. A N222 rasga o espaço urbano de uma ponta a outra a meio da montanha. O Douro esconde-se no fundo, sem que o possamos apreciar. Quando nos aproximamos da parte final da vila, seguimos em frente, abandonando a estrada que nos leva, dirigimo-nos para a montanha, subindo os cinco quilómetros que nos levam até ao mosteiro de Santa Maria de Cárquere. Ao aproximarmo-nos daquelas pedras medievais, daquela rudeza granítica moldada por séculos quase milenares desenha-se sempre, desde o primeiro momento que ali nos trouxe, na nossa imaginação, a Amélia do padre Amaro. Talvez porque encontramos alguém entrando e saindo, também olhando para nós, um gato que pachorrento descansando sobre um dos muros e estarmos naquele meio da tarde que se inclina para o fim. Aparece-nos na ideia, o lugar para onde Amélia corria nos dias de desejo irrazoável procurando o conforto do corpo junto de Amaro. Este descia para o diabólico pecado divino, sem que lhe tolhessem os sentidos nem as emoções. Nascemos assim, com estes instintos físicos, já vem connosco e Deus só chega depois quando o corpo já procura mundo. Amélia acreditava em tudo o que Amaro lhe sussurrava ao ouvido, com grande probabilidade até sentiria a presença de Deus quando o prazer lhe fazia vencer o medo. As coisas em que acreditamos nesses momentos! Mas a ânsia amorosa da Amélia de olhos “vivos e negros” com “pálpebras de grandes pestanas”, vai conduzi-la a um abismo do qual não consegue sair. Mas o mais perturbador no romance é a forma como Amélia deixa este mundo, entre quase estranhos, sem família e quando a mãe conhece a sua morte já só a pode olhar uma última vez, debaixo da terra, jazendo no cemitério, como se nunca tivesse existido, como se nunca tivesse vivido naquela casa. “Era uma rapariga de vinte e três anos, bonita, forte, muito desejada” e acabou assim. É um desvario nosso que nos ocorre quando chegamos a Santa Maria de Cárquere, mosteiro que vem dos confins da nacionalidade, desse longínquo século XII, época em que as pedras começaram a ser encasteladas até lhe dar forma. Pertenceu aos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, mas a história destes levar-nos-ia longe e não temos esse tempo nesta viagem. A sua existência está também ligada à mitologia envolvendo Egas Moniz e o pequeno Afonso Henriques. Remodelada a igreja na época manuelina deixou marcas do estilo dessa época. É uma preciosidade do românico sem impedir que o gótico se esconda entre as suas formas. É uma viagem retemperadora no tempo. Se já não vínhamos bem, a lembrança de Amélia deixou-nos pior. Necessitávamos de paisagem, de horizonte, de voltar a encontrar o curso do Douro. Rumamos directamente para a outra jóia do românico, a igreja de S. Martinho de Mouros já no caminho para a Régua. É uma fortaleza quase militar sem o ser. Rodeamos aquela pedra encastelada que protege o espaço sagrado e ficamos pelo adro. Necessitávamos de olhar, reflectir sobre a nuvem que ao fim da manhã quase tapara o sol apesar da sua pequenez. Deve ser o mundo à nossa volta. Há algo a ruir, os bárbaros ultrapassaram o limes e invadem o império. Os valores e os princípios do poder estão em decadência, deslizando por uma encosta infindável. “A guerra criou uma atmosfera de mentiras oficiais sem precedentes! Em toda a parte. Pergunto a mim mesmo se os povos poderão algum dia fazer ouvir de novo a sua verdadeira voz e se a Imprensa europeia poderá ainda recuperar…”(1). Impressiona como nos repetimos na história. Agora é o tempo da farsa, a tragédia foi há cem anos, só que a farsa tal como a tragédia caminha sobre uma pilha de cadáveres humanos, da “selva” como o imbecil e inenarrável Borrell classificou. A mentira e as falsas verdades alcançam um patamar que se torna difícil sobreviver, mesmo que nos refugiássemos no interior desta fortaleza sagrada de São Martinho de Mouros. A verdade? “Não, não, a verdade só raríssimas vezes pode ser dita! É indispensável que o inimigo nunca tenha razão e que a causa dos aliados seja a única justa! É indispensável…” (1). Deixamos São Martinho para trás, regressamos à N222 e o Peso da Régua já aparece no nosso horizonte. A estrada agora é aberta, desenvolve-se em várias rectas, desce quase à altura do rio e na abóbada celeste resplendece um azul dulcíssimo. A cidade desenha-se à esquerda, em frente envolve-nos o cenário de três pontes. Uma delas é sinónimo da muita incapacidade deste país, foi construída para uma via-férrea que nunca nasceu. A última é o paradigma das lideranças do território onde existimos, afogamo-nos em auto-estradas que garantem lucros obscenos a uma minoria, enquanto as estruturas de que carecemos definham na poeira do tempo.  

[1] Roger Martin du Gard em “Os Thibault”, Edições, Livros do Brasil, Lisboa, s/d

UMA CRÓNICA

Manuel Joaquim

"Estação dos Líquidos" de João Pedro Mésseder


No passado mês de Julho foram discutidas na Assembleia da República propostas apresentadas pelo PCP para a redução de impostos, diminuindo o IVA na electricidade, no gás e nas telecomunicações e descida do IRS para quem trabalha, além de outras. Tanto o PS como o PSD têm prometido baixar o IVA sobre a electricidade e o gás. Tiveram a oportunidade de o fazerem mas votaram contra juntamente com  IL e o Chega. Tal como acontece muitas vezes a comunicação dita social passou sobre o assunto como os gatos sobre brasas.

Acontece que agora estão na ribalta uns inteligentes a falarem sobre a necessidade de se baixar impostos, não dizendo que as suas propostas não pretendem beneficiar quem trabalha. Porta-vozes da governação, na mesma linha, também dizem que com o próximo orçamento do estado é  agora é que vai haver redução de impostos.

Os rendimentos prediais e de capital são tributados a taxas diferentes das taxas que tributam os rendimentos do trabalho. As taxas de IRC têm diminuído e os benefícios fiscais para as empresas permitem não tributar uma parte substancial dos lucros e efectuar transferências para os chamados paraísos fiscais. As contabilidades criativas e as sobrefacturações e subfacturações permitem branquear e exportar capitais, mesmo por empresas acima de qualquer suspeita, designadamente do sector financeiro.

Em política monetária Portugal perdeu a sua soberania com a adesão à União Europeia. O Banco Central Europeu retirou competências monetárias ao Banco de Portugal que passou a ser uma “dependência” daquele. Em política fiscal Portugal também perdeu a sua soberania quando passou a submeter o Orçamento do Estado a aprovação prévia da Comissão Europeia. 

Esses inteligentes o que pretendem é desviar a atenção dos problemas reais, fazerem demagogia, tentarem beneficiar quem não precisa. Defender o aumento dos salários, das pensões, combater o aumento do custo de vida, reduzir preços dos bens essenciais, travar o aumento das taxas de juros não é com eles. 

Algumas pessoas ficam contentes por terem visto as suas pensões e rendimentos aumentarem no final do mês, ignorando que deve-se fundamentalmente a uma diminuição da retenção na fonte do IRS. Quando for efectuada a respectiva liquidação verificarão que vão pagar mais do que anteriormente. O IRS a pagar ao estado não é só aquele mas terá de ser adicionado ao imposto retido na fonte constante na nota demonstrativa da liquidação do imposto. Outras ficam contentes por receberem IRS, ignorando que estão a receber valores que lhes pertence por terem sido sujeitas a retenções ao longo do ano acima do que era devido. São formas de enganar as pessoas.

Outra forma de enganar é ser anunciado com grande estrondo que a taxa de inflação está a baixar. E as pessoas ficam contentes. Mas quando vão fazer compras ou pagar serviços deparam sempre com os preços a subir. O aumento dos preços da fruta, da carne, do peixe, das bebidas, das refeições, do vestuário e do calçado, dos combustíveis, para não falar nas rendas de casa e nas comunicações, verifica-se todos os dias. 

Neste momento os canais de TV (não só em Portugal) estão a encher chouriços em quase todos os noticiários com a questão de um beijo se foi sexo ou não. A pedofilia dos padres desapareceu dos noticiários. O problema do desemprego crescente no sector industrial, a quebra na actividade económica, a deslocalização de empresas para outras latitudes são questões que não interessa. Os problemas do país são problemas secundários. Não interessa aprofundar. 

Ontem, na Feira do Livro do Porto, foi apresentado um livrinho de poesia pelo autor, João Pedro Mésseder, "Estação dos Líquidos". A contracapa tem o seguinte: “DESERTO – O mais perfeito esconderijo da água”. E lembrei-me da Líbia, em cujo deserto estão grandes mananciais de água doce. E lembrei-me também da França, que parece um grande deserto social neste momento mas que me parece um perfeito esconderijo de uma grande convulsão social.  

GEOESTRATÉGIA

Mário Martins


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“A cooperação na área da defesa será desenvolvida com "todos aqueles que procuram proteger os interesses nacionais e o seu caminho independente de desenvolvimento." (sublinhado meu)
Discurso de Vladimir Putin, na XI Conferência de Moscovo sobre Segurança Internacional.
 15 de Agosto de 2023


Na ordem do dia está a necessidade de formar uma ordem mundial multipolar realmente democrática, baseada nas normas do direito internacional universalmente aceites, sobretudo os princípios da Carta das Nações Unidas, dos quais o essencial é o respeito pela igualdade soberana dos Estados, ou seja, o direito natural e inalienável de cada nação de dispor livremente do seu destino. (sublinhado meu)  

Discurso do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, na mesma Conferência



Um aspecto interessante da invasão da Ucrânia pela Rússia, é a luta aberta pela satisfação de ambições territoriais e por maior influência no mundo, pela via da “continuação da política por outros meios”, frase famosa com que o general prussiano Clausewitz classificou a guerra, relegando para segundo plano (e este é o ponto) a reivindicação de superioridade ideológica que dividiu politicamente o mundo ao meio durante boa parte do século XX. 

Com efeito, se é certo que a China se reclama do socialismo/comunismo, não fazendo, no entanto, alarde disso extramuros, a Rússia navega, convenientemente, em águas ideológicas indefinidas. 

Em países de poder concentrado, com líderes político/militares servidos por conselheiros e órgãos dirigentes da sua confiança, os povos não são para aqui chamados; as eleições que possam ser feitas, de nada valem sem liberdade, porque tudo é feito no “seu interesse”.

Já na democracia liberal americana, apelidada por alguns de “Grande Satã”, cuja ambição de poder mundial se mantém, as eleições periódicas fazem diferença, como se viu no consulado de Trump, e como se espera que aconteça se o mesmo for novamente eleito em 2024, entre outras coisas eventualmente diminuindo ou mesmo acabando com os gastos militares de ajuda à Ucrânia, e reaproximando a América da actual Direcção política russa.

A Rússia invadiu um país soberano, que ela própria reconheceu logo no dia seguinte ao da declaração de independência, já lá vão 32 anos, pelo que as recentes declarações, em epígrafe, do Presidente russo e do seu Ministro dos Negócios Estrangeiros (o inevitável Lavrov, no cargo há 19 anos), não podem deixar de ser vistas como uma triste ironia.  

O RAPAZ QUE VEIO DO CÉU

António Mesquita

A Mesquita de Al-Azhar



" O ser, diz o Tao, dá as possibilidades, é pelo não-ser que as utilizamos".
Rolland Barthes


"A Conspiração do Cairo", de Tarek Saleh, um egípcio nascido em Estocolmo,  tem, em inglês, um outro título: "Boy from Heaven" que traduz melhor a história. Adam, filho de pescadores, é escolhido porque é, na verdade, um anjo que o poder corrupto vai lançar no ninho de víboras que é, no filme, a universidade mais prestigiada do Islão sunita, desde 970 AD,  sediada no Cairo. O imã acaba de morrer e assiste-se a uma luta pela sua sucessão, em que a Segurança do Estado disputa o lugar com os religiosos. 

O argumento inspira-se na literatura policial e de espionagem, em que figuram grandes nomes como John Grisham e John Le Carré, mas sobretudo no romance "O Nome da Rosa" de Umberto Eco. É daí que vem o ambiente conspiratório e medieval da universidade de Al-Azhar que, por Tarek não poder filmar no Egipto, é substituída pelos enquadramentos da Mesquita de Süleymaniye, em Istambul.

Temos de aderir à ficção proposta por Tarek Sulah, com a noção de que o cinema não é a realidade. Tudo é efabulação e drama shakespeareano. Apesar de, desde Nasser, em 1961, a mesquita se ter  tornado uma universidade pública, ensinando matérias seculares, para a economia do filme, o que é relevante é a sageza religiosa, melhor revelando as ambições e a incoerência dos comportamentos individuais. O imã Darin é afastado da corrida da sucessão por ter engravidado uma sua serviçal e gostar dos hamburgers da Mc Donalds. É Adam que denuncia esta situação porque sabe. Ele foi colocado pelo coronel Ibrahim da Segurança do Estado junto do imã, substituíndo o seu antigo secretário, assassinado.

O religioso que se seguiria na ordem da sucessão é o imã cego, tão seguro da doutrina a ponto de citar o judeu Karl Marx, mas é feito prisioneiro para o afastarem da eleição e ele dispõe-se a assumir o assassínio do espião de Ibrahim para esclarecer a verdade no julgamento. 

A polícia que planeava livrar-se de Adam, por ser "uma ponta solta", acaba por lhe dar um outro uso sugerido por Ibrahim que,  entretanto, descobre através do "anjo" uma alternativa ao seu cinismo, quando este rebate uma citação conveninente do militar, e a alegação de que tinha sido escolhido por Allah, o jovem lhe lembra que foi ele, o homem da Segurança do Estado, que o escolheu.

Adam é, então, industriado a convencer o imã cego a desistir do seu propósito no julgamento, contrapondo que é ele, Adam, que vai ser acusado do crime. A entrevista na cela é seguida por vídeo pelos polícias e o pelo ministro. O imã aceita e Adam escapa ao seu destino, mas, como diz Tarek para guardar esse segredo para toda a vida. O ministro comenta depois deste resultado, que o poder tem dois gumes. O filho dos pescadores foi o obreiro duma solução melhor do que a da própria polìcia. Depois da "conspiração terrorista" da Irmandade Muçulmana e do massacre da Praça Tahrir, de que toda a gente se recorda, a última coisa desejada pelo poder seria vitimar alguém em odor de santidade, como o imã cego.

Vêmos Adam,  no final regressar ao mar com o velho pai e a pergunta do imã da aldeia sobre o que aprendeu em Al-Azhar, fica sem resposta.

A aprendizagem de Adam não é de índole religiosa, nem nada que se pareça. Foi antes um curso acelerado em ciência social. O anjo perdeu as asas para ficar com a verdade para si, no segredo do seu coração.

Toda a ficção borgesiana, parabólica que é a matéria do filme deixa, no fim, aparecer a verdade sobre a sociedade egípcia. Al-Siss e a sua polícia não se enganaram ao proibir este estupendo realizador de filmar no país. A ficção conta o essencial.

01/08/23

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NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva


O início de cada jornada vê desenhado no rosto um semblante diferente. Umas vezes de alegria e de ânimo, noutras ocasiões, de desânimo e quase desistência, ou ainda com a esperança de que com o evoluir da manhã, a disposição se altere. Porto Antigo deixa sempre uma mágoa quando partimos, como um lugar onde apetecesse chegar e ficar na sonolência das águas e da temperança do lugar. Por outro lado, a melancolia da partida permite sempre acreditar em nova alegria para o dia em que as andanças aqui nos tragam de novo. Atravessadas as casas da pequena aldeia a estrada ergue-se na encosta da montanha afastando-se do rio, mas é breve o caminho até ao miradouro da Carregosa, onde podemos olhar para trás uma última vez e ver o rendilhado alvo da ponte e um recanto de Porto Manso. Mas metros percorridos, outro miradouro nos aconselha a aproximar o olhar da paisagem aquática com este azul de veraneio e agora a uma altura que permite o estender da contemplação. Embora não possa ser pela fadiga, do trajecto que quase não teve início, deixamo-nos parar e pousar num misto de meditação e êxtase. Desde Castelo de Paiva que o desejo premente de alcançar Porto Antigo nos fez esquecer que viajar neste traçado da N222 é o mesmo que pisar a Rota do Românico. Por estas terras mandaram as hostes senhoriais que fundiram os seus interesses no nascimento da pátria e se nem sempre encontramos vestígios do seu poder profano, tropeçamos a cada instante com os valores do sagrado protegidos quase sempre pela dureza granítica da pedra. Compreende-se esta diferença, pois se os poderes terrenos se modificavam, pereciam até, os divinos continuaram nessa perenidade quase eterna, nessa perpetuidade que chegou até aos nossos dias, pese embora a debilidade que hoje parece adquirir. Nas voltas que iludiram a entrada em Castelo de Paiva, encontramos o marmoirar uma pequena peça funerária de pedra algures do século XIII que alguns admitem ver neste monumento um marco na passagem do cortejo fúnebre da rainha Santa Mafalda em direcção ao Mosteiro de Arouca, embora certeza histórica ainda não a haja com essa prova documental que dê garantias. À saída desta vila das terras de Paiva somos avisados que nos vai surgir outra preciosidade, desta vez em Escamarão onde encontramos a igreja de Nossa Senhora da Natividade. Estamos de novo no domínio da pedra dura a moldar a arte tardo-românica. É um pedaço de fé medieval que ali encontramos vindo desde, eventualmente, o final do século XII ou início do século XIII. Vemos ali azulejos possivelmente da arte moçárabe. A aberração da talha dourada que se encontra no retábulo-mor vem da extravagância da luxúria moderna. A N222 por estes espaços para além da paisagem só nos faz topar esta arte românica que protege os espaços sagrados. Quilómetros volvidos, surge-nos do lado direito a Igreja de Santa Maria Maior de Tarouquela. É outra viagem ao românico do século XII. Já nada resta do mosteiro, mas a igreja mostra a beleza do pórtico axial e no interior aparece uma Virgem do Leite, obra flandrina do século XV. A visita constante a este património pode até parecer cansativo, mas não o é se desejarmos tomar contacto com o que estas terras por onde viaja a N222 têm representado ao longo dos séculos e não será por acaso que se quedam nas margens deste rio imenso actualmente tão grávido nas suas albufeiras de águas retidas e mesmo sobre a de Carrapatelo temos a visita à Igreja de São Cristóvão de Nogueira, outra beldade românica nascida entre os séculos XIII e XIV e entregue à Ordem de Cristo aí pelo século XVI. Não entramos para não ter de ver o horror do barroco, deixamos o olhar vadiar pelo exterior onde a riqueza é maior. Não paramos na vila e descemos em direcção ao rio. Primeiro ao Bestança, um dos afluentes menores do rio grande, mas que possui locais confortáveis para nos determos e contemplarmos o ambiente paisagístico. O cansaço e a ânsia de alcançar Porto Antigo não nos permitiram percorrer os 10 kms que nos levariam ao Castro do Monte das Coroas, mas ainda atravessamos a pequena aldeia de Pias. Repensado o caminho da jornada anterior deixamos o miradouro da Trincheira e metemos rumo à estrada. Após Oliveira do Douro, voltamos à esquerda descendo à procura do rio e da Capela de S. Pedro da Ermida do Douro com a curiosidade de ver o que surgia. Não fosse o Douro aparecer no seu fulgor e era uma desilusão completa face ao monte de ruínas em abandono que encontramos. Continuada a descida logo nos surgiu o Cabrum, um irmão do Bestança, ou seja, outro parente pobre da margem esquerda do Douro, com mais uma jóia medieval que é a sua antiga ponte românica. Já com os olhos sobre o destino deste dia, aparecem ainda três apelos do lado direito, a Torre de Linhares da Ilustre Casa de Ramires, a Ponte da Panchorra e o Mosteiro de Cárquere, todo o apogeu do românico nas terras de Cinfães e Resende, um dos segredos desta nacional 222. Não será para hoje. Queremos parar ainda a tempo de observar e reflectir. O Douro está agora mesmo abaixo da estrada e começa a surgir por entre o arvoredo da margem. Entramos na aldeia, aproximamo-nos do rebordo da água, sentamo-nos para descanso do corpo. Este lugar chegou até nós um dia em que circulávamos na irmã gémea desta estrada, a 108 num desses dias em que o fulgor da Primavera inunda a terra e o céu e ao atravessarmos Portela do Gôve deparou-se-nos um cenário inesquecível, a montanha na sua plenitude quase alpina, descendo até ao Douro junto a uma pequena aldeia cujo nome desconhecíamos e a velocidade a que então vivíamos não permitiu esclarecer. Ficou o registo fotográfico até ao dia em que um companheiro olhando para o ecrã do computador, disse: é Caldas de Aregos. Agora, com os olhos quase cerrados, pensamos numa noite longínqua, o rio vogando umas dezenas de metros abaixo, marulhando entre a penedia, um comboio sonolento de fumo detendo a marcha, Jacinto, desamparado procurando quem o conduz, os quilómetros da subida até à Casa de Tormes e olhar aberto pela janela na manhã seguinte a descobrir a pureza da paisagem. O tempo parece não ter viajado muito neste espaço. O rio emprenhou até ao lugar em que nos encontramos. O comboio agora desliza como um fantasma indolente quase sobre as águas, na outra margem. Sentimos esse êxtase dos momentos perfeitos. Ocorre-nos pensar que a humanidade vive actualmente, em termos históricos, momentos exaltantes. Os antigos povos colonizados atravessam aos milhares diariamente o Mediterrâneo e o Rio Grande. Trazem na mão a factura de quatro séculos de colonialismo e não têm desejos de regressar sem terem recebido a parte do espólio que lhes pertence. As democracias coloniais no pedantismo da sua violenta vaidade, acreditando ainda na vitória pírrica de há trinta anos, mergulham no seu próprio abismo do qual não conseguirão libertar-se. É a parte da exaltação da História que arrasta a tragédia. Alimentam a serpente de extrema-direita de ideologia neonazi que governa nas margens do Dniepre acreditando que conseguirão a fuga aos destinos da História como tantas vezes ocorreu. Sem saída e de cabeça perdida não sabemos do que serão ainda capazes, quantos mortos somarão ainda aos 80 milhões que sepultaram no século passado. Abrimos o livro que nos acompanha por estes dias e lemos: “Lembramo-nos por vezes desta ou daquela pessoa, perguntamos a nós mesmos como estará de saúde e, de repente, apercebemo-nos de que ela já não anda pelas ruas da nossa cidade, que a sua voz já não faz parte do concerto de vozes que ecoa à nossa volta, que ela, pura e simplesmente, desapareceu de cena para sempre e se encontra debaixo de terra em alguma parte, fora dos muros da cidade.”[1]A vida parece um absurdo quando pensamos na capacidade da humanidade para se auto-martirizar, sobretudo o martírio em que os senhores que dominam o poder têm a capacidade para torturar os povos sabendo de antemão que um dia, desaparecerão “de cena para sempre”, sem apelo nem agravo e deles se algo restar será a memória da violência que geraram.

[1] Thomas Mann em “Os Buddenbrook”, Publicações D. Quixote, 1ª edição, Abril de 2011

DESTRUIDOR DE MUNDOS

António Mesquita

(https://images.app.goo.gl/bfmKr2CX22fVzx7T6)


"Now I am become Death, the destroyer of worlds."
 (Robert Oppenheimer, citando a "Bhagavad Gita")

"It is one thing for the human mind to extract from the phenomena of nature the laws which it has itself put into them; it may be a far harder thing to extract laws over which it has no control. It is even possible that laws which have not their origin in the mind may be irrational, and we can never succeed in formulating them."
  (Arthur Eddington)



O filme "Oppenheimer", Christopher Nolan, é inspirado no livro de Kai Bird e Martin Sherwin "American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer" e é a história do físico teórico americano, apaixonado pelos textos sagrados do hinduísmo e pela teoria quântica que "roubou o fogo" aos deuses como o mítico Prometeu, construindo a promeira bomba atómica no deserto do Novo México. O seu castigo não foi no Monte do Cáucaso, com o fígado devorado pela águia, para toda a eternidade, mas a calúnia e a ingratidão do Estado e a sua própria consciência que o fazia sentir sangue nas mãos depois das duas cidades japonesas destruídas supostamente para abreviar a guerra.

Na entrevista com Harry Truman, o presidente que tomou a decisão de largar a carga letal, a má consciência de cada um disputa-se uma questionável primazia. Truman oferece-lhe um lenço para limpar o sangue, chocado com a assunção de responsabilidade do outro.

Outro "responsável", no papel dum simpático velhote observando as flores do parque, é Albert Einstein que não sabemos se sentia também "sangue nas mãos". Quando Oppie procura conselho, refugia-se no seu retiro espiritual, sem dizer sim nem não. Apesar de tudo, é um dissidente da nova física de Max Planck, em que Deus parece "jogar aos dados".

A verdade é que só a guerra e a perspectiva de que Hitler podia ter acesso à bomba, rodeado que estava pelos maiores nomes da física moderna, arrastando o mundo para uma catástrofe inimaginável, convenceu os americanos a criar o "Projecto Manhattan". Depois de vencida a Alemanha Nazi, a ameaça passou a ser o Japão imperial e o seu fanatismo que nunca se renderiam sem uma tal demonstração de força.

Do grupo de Oppenheimer fazia parte Klaus Fuchs,  um cientista alemão que estudara em Inglaterra e passava informações para a União Soviética. Em pleno McCarthysmo, a revelação desse facto e o próprio passado esquerdista de Oppenheimer, tornaram-no alvo de perseguição pelo FBI. 

As cenas da primeira explosão no deserto são de antologia e parece que feitas sem recurso ao computador. Boa parte do filme é ocupada  com a vingança "fria" de Lewis Strauss (magnífico Robert Downey Jr.), presidente da  US Energy Commission que nunca lhe perdoou a humilhação a que foi sujeito numa conferência de imprensa, em que o cientista troçou da posição de Strauss sobre a exportação de isótopos radioactivos. Strauss também o considerava responsável pelo esfriamento nas suas relações com Einstein.

E já que estamos a falar em interpretação, é justo destacar a do protagonista Ciilian Murphy que, mesmo se falhou em expressar-se correctamente em holandês a certa altura do filme, fez história com o seu Oppenheimer. Um tal sucesso só o comparo à divina surpresa de Peter O'Toole, outro irlandês, no filme de David Lean.

A complexidade da personagem é-nos dada em toda a gama de expressões. O filme sofre de alguns pecadilhos que não o prejudicam no cômputo geral,  como as visões "psicadélicas" sobre o mundo quântico que atormentam o físico a certa altura ou algumas cenas íntimas dispensáveis.

A espécie de profecia final nem me parece fora de tom. O que o será, talvez,  é o sentimento de culpa que persegue o cientista, mas que afinal devia ser endossado a toda uma cultura "fora dos gonzos",  como diz o vate de Stratford-upon-Avon. (Arthur Eddington)


A GUERRA DA ENERGIA

Manuel Joaquim
Guerra do Golfo de 1990 




O problema da energia e das matérias-primas sempre existiu e vai continuar a existir. Sem carvão e sem ferro não teria acontecido a revolução industrial e todo o processo de industrialização que carece desses bens em quantidades crescentes. Sem energia não há quaisquer actividades, sendo, por isso, o mais sério factor de constrangimento. Por mais que se invente, sem energia não há nada para ninguém. A disponibilização de energia e de matérias-primas condiciona todo o processo de desenvolvimento económico e social e os seus recursos são cada vez mais escassos e de acesso cada vez mais difícil. Os stocks das fontes naturais de energia, o petróleo, o gás natural, o carvão e o urânio, vão diminuindo em quantidade e qualidade. Os custos para obter energia são crescentes e economicamente cada vez mais incomportáveis O aumento dos preços dos alimentos resulta também do aumento dos preços da energia. As reservas das chamadas terras raras, com metais cada vez mais procurados para a fabricação e desenvolvimento das novas tecnologias são difíceis de obter. A natureza tem limites. E por mais que se diga que pode ser superada pela ciência e pela técnica, existem limites.  

As maiores reservas de hidrocarbonetos do mundo situam-se no Golfo Pérsico e as maiores reservas de gás natural do mundo situam-se na Rússia, no Irão e no Qatar. 

A Guerra no Golfo, 1990, a invasão do Afeganistão, 2001, do Iraque, 2003, a guerra na Líbia, as ameaças ao Irão, intervenções militares em diversos países de África e América Latina tiveram como causas a conquista de reservas de energia e de matérias-primas. Desde o século XIX, para não referir acontecimentos mais antigos, (não podendo ignorar que o trabalho (escravo) é uma fonte natural de energia) que as potências económicas imperialistas dividiram o mundo entre si de acordo os seus interesses e poderes militares, passando por duas guerras mundiais.

A rapina, apesar de continuar, já não se faz com as facilidades que existiram, pois os processos políticos que entretanto se desenvolveram e desenvolvem levaram e levam à libertação e independência dos povos.  

No início deste mês de Julho a China anunciou que irá impor controlos de exportação sobre o gálio e o germânio, metais raros, usados na produção de materiais semicondutores. A decisão foi tomada em retaliação a decisões dos USA e seus aliados contra a indústria de tecnologia da China. A China é o maior produtor mundial destes metais raros. 80% das importações dos USA desses metais raros são da China. Estarão em causa a fabricação de computadores, telemóveis, carros eléctricos e muito mais coisas. Para esta situação já tinha alertado o Jornal de Negócios em 29 de Maio de 2019 e quase todos os jornais nacionais e internacionais. A Rússia impediu a exportação de produtos de aço e titânio, alumínio, cobre e níquel e de determinados equipamentos sensíveis.

Os planos arquitectados durante anos para a destruição de países para rapinarem riquezas essenciais para ultrapassar crises de crescimento económico e recuperarem taxas de remuneração dos capitais podem sair furados em virtude da correlação de forças em termos mundiais se ter alterado.

E vão sair furados.

A SONDAGEM

Mário Martins

(https://www.google.com/search?client=firefox-b-d&q=sondagem+imagens)


“A esmagadora maioria dos portugueses está insatisfeita com a vida no país”
Expresso, 9Junho2023



No Dia de Portugal, comemorado, como habitualmente, em 10 de Junho passado, o Semanário Expresso deu à luz uma sondagem, que decorreu entre 13 e 28 de Maio, sobre o Estado da Nação, tal como é visto pelos portugueses.

No momento em que algumas potências mundiais, na assanhada batalha por uma nova “ordem” global, afirmam o seu desdém pelos regimes democráticos e a liberdade política (sem a qual a democracia é uma farsa), considerando-os anquilosados face aos seus regimes centralizados, cada um à sua maneira, mas todos sem liberdade individual e separação de poderes, supostamente mais funcionais e representativos do “interesse” do povo, é publicada em Portugal, um dos países com “problemas nas articulações”, uma sondagem que dá o “Retrato de um país profundamente insatisfeito”. Em que regimes isto é possível senão nos “anquilosados”?

Os sub-títulos do Expresso são reveladores da percepção do estado das coisas:
Habitação, distribuição da riqueza e impostos lideram descontentamento.
-  Portugueses confiam na Polícia, Forças Armadas, Presidentes de Junta e em Marcelo.
-  Desconfiam mais dos partidos, Governo, Parlamento e Igreja.
-  Pedem mais participação na política e mais referendos.
-   Eleitores de esquerda são os menos pessimistas.

Estas matérias merecem alguns comentários:
Se quanto à habitação e à distribuição da riqueza o descontentamento é perfeitamente compreensível, já quanto aos impostos a questão é mais complexa, sabido que a fuga aos mesmos é um “desporto nacional”, e que, sem eles, o Estado não pode assumir cabalmente o seu papel na Saúde, Educação, Habitação, Justiça e nos diversos serviços públicos. Seria expectável, aliás, uma descida dos impostos se boa parte dos que escapam à malha fiscal fosse apanhada.

E se a percepção é (para variar…) a de um país em crise, é natural que os portugueses queiram mais músculo, corporizado na Polícia e nas Forças Armadas, estas enquanto último reduto dos valores nacionais e tradicional viveiro de “salvadores da Pátria”.

É igualmente compreensível, por outro lado, que os portugueses confiem mais nos Presidentes de Junta, mais próximos das populações, do que nos Presidentes de Câmara, mais sujeitos a processos de corrupção, embora também confiem nestes, mas menos (5 pontos percentuais).

Quanto ao actual Presidente da República a proximidade diária do povo explica tudo, para lá da desconfiança no Governo.

Por seu lado, a nossa partidocracia, que nenhum partido quer alterar, espelha-se num parlamento sem tribunos à altura (como já teve), que dá uma imagem, porventura um tanto distorcida, de pouco ir além de alimentar os noticiários da televisão, para lá de gozar da má fama de o interesse público se encontrar, muitas vezes, ausente da sua produção legislativa. 

E o mínimo que se pode dizer do actual governo de maioria absoluta, é que transmite a imagem de um governo trapalhão, sem timoneiro à altura, o que não quer dizer – sublinhe-se – que se houvesse eleições antecipadas, o actual líder socialista fosse derrotado, tal dependendo, essencialmente, da credibilidade da alternativa.

Quanto à desconfiança na Igreja, esse último baluarte de refúgio, digamos que ela vive o seu calvário pelas razões escandalosas, mas não surpreendentes, de todos conhecidas.

O desejo de mais democracia directa, nomeadamente na forma de referendos, afigura-se, por seu turno, como consequência directa da desconfiança na democracia representativa, tal como está a ser praticada.

Por último, o Expresso subtitula que “Eleitores de esquerda são os menos pessimistas”, mas seria mais correcto, em consonância, aliás, com o que é referido no corpo do artigo, que subtitulasse “Eleitores socialistas são os menos pessimistas”
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