António Mesquita
" O ser, diz o Tao, dá as possibilidades, é pelo não-ser que as utilizamos".
Rolland Barthes
"A Conspiração do Cairo", de Tarek Saleh, um egípcio nascido em Estocolmo, tem, em inglês, um outro título: "Boy from Heaven" que traduz melhor a história. Adam, filho de pescadores, é escolhido porque é, na verdade, um anjo que o poder corrupto vai lançar no ninho de víboras que é, no filme, a universidade mais prestigiada do Islão sunita, desde 970 AD, sediada no Cairo. O imã acaba de morrer e assiste-se a uma luta pela sua sucessão, em que a Segurança do Estado disputa o lugar com os religiosos.
O argumento inspira-se na literatura policial e de espionagem, em que figuram grandes nomes como John Grisham e John Le Carré, mas sobretudo no romance "O Nome da Rosa" de Umberto Eco. É daí que vem o ambiente conspiratório e medieval da universidade de Al-Azhar que, por Tarek não poder filmar no Egipto, é substituída pelos enquadramentos da Mesquita de Süleymaniye, em Istambul.
Temos de aderir à ficção proposta por Tarek Sulah, com a noção de que o cinema não é a realidade. Tudo é efabulação e drama shakespeareano. Apesar de, desde Nasser, em 1961, a mesquita se ter tornado uma universidade pública, ensinando matérias seculares, para a economia do filme, o que é relevante é a sageza religiosa, melhor revelando as ambições e a incoerência dos comportamentos individuais. O imã Darin é afastado da corrida da sucessão por ter engravidado uma sua serviçal e gostar dos hamburgers da Mc Donalds. É Adam que denuncia esta situação porque sabe. Ele foi colocado pelo coronel Ibrahim da Segurança do Estado junto do imã, substituíndo o seu antigo secretário, assassinado.
O religioso que se seguiria na ordem da sucessão é o imã cego, tão seguro da doutrina a ponto de citar o judeu Karl Marx, mas é feito prisioneiro para o afastarem da eleição e ele dispõe-se a assumir o assassínio do espião de Ibrahim para esclarecer a verdade no julgamento.
A polícia que planeava livrar-se de Adam, por ser "uma ponta solta", acaba por lhe dar um outro uso sugerido por Ibrahim que, entretanto, descobre através do "anjo" uma alternativa ao seu cinismo, quando este rebate uma citação conveninente do militar, e a alegação de que tinha sido escolhido por Allah, o jovem lhe lembra que foi ele, o homem da Segurança do Estado, que o escolheu.
Adam é, então, industriado a convencer o imã cego a desistir do seu propósito no julgamento, contrapondo que é ele, Adam, que vai ser acusado do crime. A entrevista na cela é seguida por vídeo pelos polícias e o pelo ministro. O imã aceita e Adam escapa ao seu destino, mas, como diz Tarek para guardar esse segredo para toda a vida. O ministro comenta depois deste resultado, que o poder tem dois gumes. O filho dos pescadores foi o obreiro duma solução melhor do que a da própria polìcia. Depois da "conspiração terrorista" da Irmandade Muçulmana e do massacre da Praça Tahrir, de que toda a gente se recorda, a última coisa desejada pelo poder seria vitimar alguém em odor de santidade, como o imã cego.
Vêmos Adam, no final regressar ao mar com o velho pai e a pergunta do imã da aldeia sobre o que aprendeu em Al-Azhar, fica sem resposta.
A aprendizagem de Adam não é de índole religiosa, nem nada que se pareça. Foi antes um curso acelerado em ciência social. O anjo perdeu as asas para ficar com a verdade para si, no segredo do seu coração.
Toda a ficção borgesiana, parabólica que é a matéria do filme deixa, no fim, aparecer a verdade sobre a sociedade egípcia. Al-Siss e a sua polícia não se enganaram ao proibir este estupendo realizador de filmar no país. A ficção conta o essencial.
Sem comentários:
Enviar um comentário