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01/08/23

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva


O início de cada jornada vê desenhado no rosto um semblante diferente. Umas vezes de alegria e de ânimo, noutras ocasiões, de desânimo e quase desistência, ou ainda com a esperança de que com o evoluir da manhã, a disposição se altere. Porto Antigo deixa sempre uma mágoa quando partimos, como um lugar onde apetecesse chegar e ficar na sonolência das águas e da temperança do lugar. Por outro lado, a melancolia da partida permite sempre acreditar em nova alegria para o dia em que as andanças aqui nos tragam de novo. Atravessadas as casas da pequena aldeia a estrada ergue-se na encosta da montanha afastando-se do rio, mas é breve o caminho até ao miradouro da Carregosa, onde podemos olhar para trás uma última vez e ver o rendilhado alvo da ponte e um recanto de Porto Manso. Mas metros percorridos, outro miradouro nos aconselha a aproximar o olhar da paisagem aquática com este azul de veraneio e agora a uma altura que permite o estender da contemplação. Embora não possa ser pela fadiga, do trajecto que quase não teve início, deixamo-nos parar e pousar num misto de meditação e êxtase. Desde Castelo de Paiva que o desejo premente de alcançar Porto Antigo nos fez esquecer que viajar neste traçado da N222 é o mesmo que pisar a Rota do Românico. Por estas terras mandaram as hostes senhoriais que fundiram os seus interesses no nascimento da pátria e se nem sempre encontramos vestígios do seu poder profano, tropeçamos a cada instante com os valores do sagrado protegidos quase sempre pela dureza granítica da pedra. Compreende-se esta diferença, pois se os poderes terrenos se modificavam, pereciam até, os divinos continuaram nessa perenidade quase eterna, nessa perpetuidade que chegou até aos nossos dias, pese embora a debilidade que hoje parece adquirir. Nas voltas que iludiram a entrada em Castelo de Paiva, encontramos o marmoirar uma pequena peça funerária de pedra algures do século XIII que alguns admitem ver neste monumento um marco na passagem do cortejo fúnebre da rainha Santa Mafalda em direcção ao Mosteiro de Arouca, embora certeza histórica ainda não a haja com essa prova documental que dê garantias. À saída desta vila das terras de Paiva somos avisados que nos vai surgir outra preciosidade, desta vez em Escamarão onde encontramos a igreja de Nossa Senhora da Natividade. Estamos de novo no domínio da pedra dura a moldar a arte tardo-românica. É um pedaço de fé medieval que ali encontramos vindo desde, eventualmente, o final do século XII ou início do século XIII. Vemos ali azulejos possivelmente da arte moçárabe. A aberração da talha dourada que se encontra no retábulo-mor vem da extravagância da luxúria moderna. A N222 por estes espaços para além da paisagem só nos faz topar esta arte românica que protege os espaços sagrados. Quilómetros volvidos, surge-nos do lado direito a Igreja de Santa Maria Maior de Tarouquela. É outra viagem ao românico do século XII. Já nada resta do mosteiro, mas a igreja mostra a beleza do pórtico axial e no interior aparece uma Virgem do Leite, obra flandrina do século XV. A visita constante a este património pode até parecer cansativo, mas não o é se desejarmos tomar contacto com o que estas terras por onde viaja a N222 têm representado ao longo dos séculos e não será por acaso que se quedam nas margens deste rio imenso actualmente tão grávido nas suas albufeiras de águas retidas e mesmo sobre a de Carrapatelo temos a visita à Igreja de São Cristóvão de Nogueira, outra beldade românica nascida entre os séculos XIII e XIV e entregue à Ordem de Cristo aí pelo século XVI. Não entramos para não ter de ver o horror do barroco, deixamos o olhar vadiar pelo exterior onde a riqueza é maior. Não paramos na vila e descemos em direcção ao rio. Primeiro ao Bestança, um dos afluentes menores do rio grande, mas que possui locais confortáveis para nos determos e contemplarmos o ambiente paisagístico. O cansaço e a ânsia de alcançar Porto Antigo não nos permitiram percorrer os 10 kms que nos levariam ao Castro do Monte das Coroas, mas ainda atravessamos a pequena aldeia de Pias. Repensado o caminho da jornada anterior deixamos o miradouro da Trincheira e metemos rumo à estrada. Após Oliveira do Douro, voltamos à esquerda descendo à procura do rio e da Capela de S. Pedro da Ermida do Douro com a curiosidade de ver o que surgia. Não fosse o Douro aparecer no seu fulgor e era uma desilusão completa face ao monte de ruínas em abandono que encontramos. Continuada a descida logo nos surgiu o Cabrum, um irmão do Bestança, ou seja, outro parente pobre da margem esquerda do Douro, com mais uma jóia medieval que é a sua antiga ponte românica. Já com os olhos sobre o destino deste dia, aparecem ainda três apelos do lado direito, a Torre de Linhares da Ilustre Casa de Ramires, a Ponte da Panchorra e o Mosteiro de Cárquere, todo o apogeu do românico nas terras de Cinfães e Resende, um dos segredos desta nacional 222. Não será para hoje. Queremos parar ainda a tempo de observar e reflectir. O Douro está agora mesmo abaixo da estrada e começa a surgir por entre o arvoredo da margem. Entramos na aldeia, aproximamo-nos do rebordo da água, sentamo-nos para descanso do corpo. Este lugar chegou até nós um dia em que circulávamos na irmã gémea desta estrada, a 108 num desses dias em que o fulgor da Primavera inunda a terra e o céu e ao atravessarmos Portela do Gôve deparou-se-nos um cenário inesquecível, a montanha na sua plenitude quase alpina, descendo até ao Douro junto a uma pequena aldeia cujo nome desconhecíamos e a velocidade a que então vivíamos não permitiu esclarecer. Ficou o registo fotográfico até ao dia em que um companheiro olhando para o ecrã do computador, disse: é Caldas de Aregos. Agora, com os olhos quase cerrados, pensamos numa noite longínqua, o rio vogando umas dezenas de metros abaixo, marulhando entre a penedia, um comboio sonolento de fumo detendo a marcha, Jacinto, desamparado procurando quem o conduz, os quilómetros da subida até à Casa de Tormes e olhar aberto pela janela na manhã seguinte a descobrir a pureza da paisagem. O tempo parece não ter viajado muito neste espaço. O rio emprenhou até ao lugar em que nos encontramos. O comboio agora desliza como um fantasma indolente quase sobre as águas, na outra margem. Sentimos esse êxtase dos momentos perfeitos. Ocorre-nos pensar que a humanidade vive actualmente, em termos históricos, momentos exaltantes. Os antigos povos colonizados atravessam aos milhares diariamente o Mediterrâneo e o Rio Grande. Trazem na mão a factura de quatro séculos de colonialismo e não têm desejos de regressar sem terem recebido a parte do espólio que lhes pertence. As democracias coloniais no pedantismo da sua violenta vaidade, acreditando ainda na vitória pírrica de há trinta anos, mergulham no seu próprio abismo do qual não conseguirão libertar-se. É a parte da exaltação da História que arrasta a tragédia. Alimentam a serpente de extrema-direita de ideologia neonazi que governa nas margens do Dniepre acreditando que conseguirão a fuga aos destinos da História como tantas vezes ocorreu. Sem saída e de cabeça perdida não sabemos do que serão ainda capazes, quantos mortos somarão ainda aos 80 milhões que sepultaram no século passado. Abrimos o livro que nos acompanha por estes dias e lemos: “Lembramo-nos por vezes desta ou daquela pessoa, perguntamos a nós mesmos como estará de saúde e, de repente, apercebemo-nos de que ela já não anda pelas ruas da nossa cidade, que a sua voz já não faz parte do concerto de vozes que ecoa à nossa volta, que ela, pura e simplesmente, desapareceu de cena para sempre e se encontra debaixo de terra em alguma parte, fora dos muros da cidade.”[1]A vida parece um absurdo quando pensamos na capacidade da humanidade para se auto-martirizar, sobretudo o martírio em que os senhores que dominam o poder têm a capacidade para torturar os povos sabendo de antemão que um dia, desaparecerão “de cena para sempre”, sem apelo nem agravo e deles se algo restar será a memória da violência que geraram.

[1] Thomas Mann em “Os Buddenbrook”, Publicações D. Quixote, 1ª edição, Abril de 2011

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