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31/08/23

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva







Quando saímos de Aregos em direcção a Leste, a estrada eleva-se para nos afastarmos do rio. Ergue-se para um patamar superior sem abandonar a sua presença, a do rio. Ficamos sobranceiros. Separa-nos a vegetação arbórea, aquele verde que se confunde com a cor das águas. Na outra margem aparece-nos bem visível a Casa de Eça, lá no cimo junto à N108 e recordamos o caramanchão que ao lado do edifício nos permite contemplar o vasto horizonte que se abre para Sul num anfiteatro esplendoroso, de beleza e grandiosidade. À esquerda, na estrada que nos leva, surge um portão de acesso residencial e na pedra que o sustenta podemos ler “Casa da Poesia”. Desejamos que assim seja, que a poesia não se quede pela pedra da entrada, mas habite no interior daquele lugar. Nem sequer é difícil se tivermos presente o espaço onde está inserida, entre a estrada e o rio numa cadência de socalcos entre o verde e a cor da terra. Viver ali, é só por si um acto poético, mas a poesia é muito mais do que um lugar e uma paisagem para que não caia naquele pensamento de Paco Ibáñez, de ter que dizer, “maldigo a poesia concebida como um luxo, cultural para os neutrais”. Que a destes habitantes possa conter o amor de Neruda, a ironia de Brecht e o combate de Maiakovski. A manhã está aprazível, convida a viajar, a olhar o que vai surgindo sem que o Douro se afaste. É o esplendor da N222 agora em terras de Resende. Mas quando nos aproximamos da vila algo nos perturba o pensamento, como sobre um céu radiante de azul aparecesse uma pequena nuvem a tapar um pouco o sol, como se fizesse encolher a luz. A N222 rasga o espaço urbano de uma ponta a outra a meio da montanha. O Douro esconde-se no fundo, sem que o possamos apreciar. Quando nos aproximamos da parte final da vila, seguimos em frente, abandonando a estrada que nos leva, dirigimo-nos para a montanha, subindo os cinco quilómetros que nos levam até ao mosteiro de Santa Maria de Cárquere. Ao aproximarmo-nos daquelas pedras medievais, daquela rudeza granítica moldada por séculos quase milenares desenha-se sempre, desde o primeiro momento que ali nos trouxe, na nossa imaginação, a Amélia do padre Amaro. Talvez porque encontramos alguém entrando e saindo, também olhando para nós, um gato que pachorrento descansando sobre um dos muros e estarmos naquele meio da tarde que se inclina para o fim. Aparece-nos na ideia, o lugar para onde Amélia corria nos dias de desejo irrazoável procurando o conforto do corpo junto de Amaro. Este descia para o diabólico pecado divino, sem que lhe tolhessem os sentidos nem as emoções. Nascemos assim, com estes instintos físicos, já vem connosco e Deus só chega depois quando o corpo já procura mundo. Amélia acreditava em tudo o que Amaro lhe sussurrava ao ouvido, com grande probabilidade até sentiria a presença de Deus quando o prazer lhe fazia vencer o medo. As coisas em que acreditamos nesses momentos! Mas a ânsia amorosa da Amélia de olhos “vivos e negros” com “pálpebras de grandes pestanas”, vai conduzi-la a um abismo do qual não consegue sair. Mas o mais perturbador no romance é a forma como Amélia deixa este mundo, entre quase estranhos, sem família e quando a mãe conhece a sua morte já só a pode olhar uma última vez, debaixo da terra, jazendo no cemitério, como se nunca tivesse existido, como se nunca tivesse vivido naquela casa. “Era uma rapariga de vinte e três anos, bonita, forte, muito desejada” e acabou assim. É um desvario nosso que nos ocorre quando chegamos a Santa Maria de Cárquere, mosteiro que vem dos confins da nacionalidade, desse longínquo século XII, época em que as pedras começaram a ser encasteladas até lhe dar forma. Pertenceu aos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, mas a história destes levar-nos-ia longe e não temos esse tempo nesta viagem. A sua existência está também ligada à mitologia envolvendo Egas Moniz e o pequeno Afonso Henriques. Remodelada a igreja na época manuelina deixou marcas do estilo dessa época. É uma preciosidade do românico sem impedir que o gótico se esconda entre as suas formas. É uma viagem retemperadora no tempo. Se já não vínhamos bem, a lembrança de Amélia deixou-nos pior. Necessitávamos de paisagem, de horizonte, de voltar a encontrar o curso do Douro. Rumamos directamente para a outra jóia do românico, a igreja de S. Martinho de Mouros já no caminho para a Régua. É uma fortaleza quase militar sem o ser. Rodeamos aquela pedra encastelada que protege o espaço sagrado e ficamos pelo adro. Necessitávamos de olhar, reflectir sobre a nuvem que ao fim da manhã quase tapara o sol apesar da sua pequenez. Deve ser o mundo à nossa volta. Há algo a ruir, os bárbaros ultrapassaram o limes e invadem o império. Os valores e os princípios do poder estão em decadência, deslizando por uma encosta infindável. “A guerra criou uma atmosfera de mentiras oficiais sem precedentes! Em toda a parte. Pergunto a mim mesmo se os povos poderão algum dia fazer ouvir de novo a sua verdadeira voz e se a Imprensa europeia poderá ainda recuperar…”(1). Impressiona como nos repetimos na história. Agora é o tempo da farsa, a tragédia foi há cem anos, só que a farsa tal como a tragédia caminha sobre uma pilha de cadáveres humanos, da “selva” como o imbecil e inenarrável Borrell classificou. A mentira e as falsas verdades alcançam um patamar que se torna difícil sobreviver, mesmo que nos refugiássemos no interior desta fortaleza sagrada de São Martinho de Mouros. A verdade? “Não, não, a verdade só raríssimas vezes pode ser dita! É indispensável que o inimigo nunca tenha razão e que a causa dos aliados seja a única justa! É indispensável…” (1). Deixamos São Martinho para trás, regressamos à N222 e o Peso da Régua já aparece no nosso horizonte. A estrada agora é aberta, desenvolve-se em várias rectas, desce quase à altura do rio e na abóbada celeste resplendece um azul dulcíssimo. A cidade desenha-se à esquerda, em frente envolve-nos o cenário de três pontes. Uma delas é sinónimo da muita incapacidade deste país, foi construída para uma via-férrea que nunca nasceu. A última é o paradigma das lideranças do território onde existimos, afogamo-nos em auto-estradas que garantem lucros obscenos a uma minoria, enquanto as estruturas de que carecemos definham na poeira do tempo.  

[1] Roger Martin du Gard em “Os Thibault”, Edições, Livros do Brasil, Lisboa, s/d

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