Iáiliu, Lago Teletskoie, Altai. Quando deixamos a longa cordilheira do Pamir e seguimos para Norte em paralelo com a fronteira chinesa, a paisagem planáltica que nos acolhe permanece de terra e pedra seca que a altitude e a neve não deixam flor ou erva medrar. Mas o silêncio e o sossego compensam. Há ausência de sons que provocam a sensação da não existência de vida. Quando alcançamos o desfiladeiro por um deslizam as águas do Rio Katun, tudo em redor está em mudança. As montanhas comprimem-se e o verde domina agora o cenário. Surgem os sons do interior de florestas alpinas, das águas que ressaltam nas pedras em cada recanto, tudo nos aparece como um renascimento e percebemos que chegamos às Montanhas Altai ou Douradas como são localmente conhecidas e declaradas Património da Humanidade. Penetro neste mundo de verdes vivos e húmidos e quando subimos ainda podemos olhar à distância o pico do Vielurra, ou Belukha como por vezes vemos escrito, nos seus mais de quatro mil metros. Há uma espécie de oposição entre este verde terreno e o branco das alturas nevadas que ao derreterem-se dão origem aos lagos de cores irrepetíveis, que vamos encontrando. Como são os lagos que procuro, assim cheguei a este Teletskoie. É uma espécie de L invertido o que o alonga por cerca de 60 quilómetros. Chega a ter larguras de três quilómetros e meio, comprimidas entre montanhas em cujas encostas as árvores descem até às águas. Nesta espécie de pé com um pouco de perna, escapa-se pelos seus dedos o Rio Biiá que aqui nasce e juntamente com o Katun irão confluir para o Rio Obi que recebe como afluente, o Irtich. São os grandes rios siberianos, juntamente com o Ienissei, descem da cordilheira do Altai e navegam em grande caudal, para o Árctico. Tudo nos aparece numa escala de grandeza que aparenta esmagar-nos se não soubermos dosear a escala do que vemos. Procurei parar numa pequena aldeia na sola do pé gerada pela geografia do Teletskoie. Iáiliu, digamos que tem três ruas, chamemos-lhes assim e não ultrapassa os duzentos habitantes. Da aldeia posso olhar para os dois braços deste poderoso lago com uma reentrância pelo calcanhar para acolher o pequeno Rio Ilanda. Para quem chega do Pamir, fica rodeado por um mundo de água. Tal como no caminho que me trouxe, também aqui reparto o tempo entre o vazio do pensamento, como se fechasse uma câmara frigorífica, e a reflexão da vivência humana. E caminho, pela margem do lago até onde as sendas me permitem. Quando alcanço a foz do Ilanda, sento-me e deixo a memória adormecida, como se apagasse a luz dos sons e do movimento. Fica apenas o olhar e o tempo a passar. Mas há momentos em que a porta não fecha, por mais que tentemos, como se um obstáculo se interpusesse e impedisse o trinco de baixar. Nesses dias e momentos, o que recordo e todos nós vemos, impressiona pela miséria e pela grandeza. Por um lado, temos a beleza natural em todo o perímetro planetário, lugares que nos cativam e nos imobilizam pela impossibilidade de os descrevermos e vivenciarmos em toda a plenitude. O mesmo podemos dizer de algumas acções humanas. Nos lugares mais improváveis encontramos pessoas de grande nobreza que arriscam a sua vida para salvar um animal que se afoga. E quando esta pulcritude nos enriquece a alma e nos deixa serenados, surge-nos como um rio sangrento, algumas cabeças humanas como fossas sépticas que escoam para o exterior a lama da maldade sem tratamento. Os palhaços são hoje os actores principais, mas os donos do circo, escondem atrás do palco o perigo da sua maldade insaciável e permitem que o palhaço prometa a limpeza de um povo em directo, como qualquer banalidade normalizada. E assistimos a toda esta demência, paralisados e impotentes perante o crime hediondo que se desenrola perante nós. É difícil encontrar na história da humanidade, Estado mais infame do que o chamado Estado de Israel, um verdadeiro antro de loucura que inunda o planeta de escória apodrecida para satisfação das suas mitologias irracionais. Amarrados e estarrecidos assistimos a um dos momentos mais negros, senão mesmo o mais degradante, da história humana. Hoje está um dia bonito, a luminosidade dos raios solares desce por entre a folhagem, sente-se um rumor de vida como um sussurro longínquo, escutamos movimento e sons de acções que não vemos. Passaram já vários dias e não apetece sair da leveza deste lugar. Amanhã, prossigo para Norte, como se fugisse. Vou ao encontro do transiberiano. O postal segue comigo.
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