António Mesquita
"Valha-te o diabo, vilão! — interrompeu Dom Quixote. — Que coisas dizes tu às vezes! Até parece que as estudaste!
— Pois juro que nem sei ler — respondeu Sancho."
("Dom Quixote" de Cervantes)
Nas "Mil e uma noites", o truque para motivar o califa a adiar a execução é sempre o mesmo. Sherazade deixa a peripécia a meio porque o tempo se esgotou. Conseguida a trégua, enlaça-se com o amante uma noite mais.
A narração começa com a metamorfose do filho do sheik num vitelo e duma escrava da família numa vaca, por artes duma prima do sheik, por sua vez transformada em gazela. Estamos num conto com mais de mil anos e aceita-se a magia, sem pedir explicações.
No "Sonho de uma Noite de Verão", Shakespeare recorre a uma arte que tal. Bottom, um actor de comédia, é igualmente convertido num burro por Puck, um duende, e Titânia, a rainha das fadas interessa-se por ele.
Freud, numa carta de 1938 a Setfan Zweig, refere-se a essa personagem para lamentar que os Alemães tenham eleito um Bottom, que outra magia fazia parecer um homem vociferante.
Mais de oitenta anos depois, os tiques gestuais dessa criatura são timidamente (por ora) ensaiados por acólitos e ideólogos improvisados.
É caso para dizer que a democracia se tornou tão instável como o clima e que a história se repete - esperemos que como farsa, segundo o "mot" de Marx.
Pacheco Pereira, no Público de 22 passado, dizia que a democracia não são só eleições, mesmo livres na aparência. "Pode haver eleições livres e controladas, e existir legitimidade eleitoral, e não haver democracia, pela falta de outros elementos constitutivos do que é uma democracia, em particular dois: o primado da lei e o respeito pelos procedimentos que garantem os direitos, garantias e liberdades.". Mas quando os vigilantes da lei são eles próprios fanáticos...
Retomando o tema do intróito, podia dizer-se que o "povo", formado por milhões de vontades "sob influência", elegeu Bottom e que os mágicos voltaram como no conto árabe ou na peça isabelina. Por isso tudo deve ser lido com uma chave que não é a da verdade dos factos, mas a das projecções mitológicas e o magnetismo estudado dum palco televisivo.
Em "The Art of the Deal", o novo Bottom já disse ao que vinha. Tudo é dolarizável e, dos moradores do bairro aos arranha-céus da metrópole e do fulano e sicrano com que nos cruzamos todos os dias ao "dono de todas as estepes", há sempre um negócio a fechar para contento dos mesmos. É uma espécie que se rege
pelos ‘espíritos animais’, de que falava Keynes, como alguém já citou.
Só saímos disto com o despertar e a deposição das máscaras. O homem da motoserra, em entrevista recente, diz que não quer despertar ovelhas. É de lobos que fala: "homo homini lupus" diziam os latinos com alguma razão. Os milénios que nos separam dessa sentença de Plutarco significariam então que não houve "progresso". Progresso é, aliás, um outro termo da magia moderna.
Estamos, talvez, prontos para a Inteligência Artificial. Essa criatura humana a quem demos tudo o que tínhamos para dar e guardar e que aprendeu, por si só, a melhorar e a fazer com mais eficácia aquilo que sabe fazer. A ponto de Bill Gates admitir, numa série da Netflix, que ele, o humanista e idealista, com várias actividades que, sem dúvida, considera filantrópicas, se verá, qualquer dia, interrogado pela criatura com a estocada definitiva: - "Por que te metes nisso? Eu posso fazer melhor. Vai, em vez disso, jogar golfe, por exemplo."
O pior é se Bottom recebe também o mesmo convite...
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