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01/04/25

ESGOTOS

António Mesquita

     

                         
"Disso claramente se aprende quanta estupidez e pouca prudência há em reivindicar uma coisa e dizer logo “Quero com isto fazer o mal”, pois não se deve mostrar a disposição que se tem, mas é preciso tentar obter aquele objectivo de qualquer modo, pois basta pedir as armas a alguém sem dizer “Eu  quero-as para te matar”, podendo, depois que tiveres as armas nas mãos, satisfazer o teu apetite."(Maquiavel)


Vemo-los todos os dias quando nos dirigimos para o trabalho,  quando vamos às compras ou tomar café. Não se pode fugir àquela cara.

Nunca se fez nada assim ou só nos tempos da  ditadura e agora pela força do dinheiro.

Que acção a longo prazo duma tal insídia? Podia ter sido congeminada por um algoritmo, mas é, provavelmente, só preguiça. É um prolongamento de jogo contra todas as regras. É isto ainda liberdade de opinião?

Aquela figura de proa levantada nas nossas praças a prometer a recolha do lixo e a limpeza do espaço público. A prometer uma nova ordem. O que é que significa isto?

Há dias, uma equipa técnico-científica inglesa propôs-se reconstituir os traços fisionómicos do mais celerado dos reis da sua história. Um torto que chegou ao poder para fazer todo o mal possível, para se vingar da deformidade com que o destino o contemplou. Pelo menos é o que o celebrado vate isabelino, nos quis transmitir na sua peça homónima: 'Ricardo III".

Ocorre, talvez, perguntarmo-nos porque precisamos de ter esse hipotético  rosto do século XVI, cuja verosimilhança  é atestada pela tecnologia de ponta. Para quê senão nos apropriarmos  dum novo emoji nas nossas redes omnívoras?

Alguém ou alguma coisa por nós pensou que a insistência num cartaz político para lá de todos os prazos, como uma lição a aprender, um tema subliminarmente a decorar, nos iria predispor para, na hora do voto, pagar o investimento destes novos aprendizes de feiticeiro? Como se todos nós nos fôssemos transformando no Gregor Samsa do conto de Kafka.

Não há, parece, uma lei que proíba esta invasão permanente do quotidiano pelo refrão político, embora ninguém suportasse ouví-lo meses seguidos - a vista permite-nos ter pontos cegos. Não olhar para aquela cara, que podia ser a do vilão de Shakespeare antes de subir  ao poder.

Mas, assim como se ataca uma infecção quando percebemos que o corpo se encontra doente, haverá qualquer dia que pôr termo a este morbo da democracia. Só nos falta acreditar nos princípios e não dizer como Groucho que temos outros se estes não agradarem.

Mas por que não terá um partido qualquer o direito de fazer propaganda todo o tempo e com o mesmo slogan? Uma empresa talvez perdesse com isso,  porque a mensagem se esbateria e deixaria de chamar a atenção. Essa ideia só não funciona assim, supõe-se, na cabeça dos promotores do "carro do lixo" porque justamente é uma experiência política paga por outros. É o lema de que tanto martelar achata e leva a água àquele moinho.

A democracia, como se viu nas últimas eleições americanas, não se sabe defender. Coexiste com a extrema desigualdade, o racismo, o mccarthismo, a guerra imperialista e agora o populismo da "moto-serra" que é o novo conceito de revolução. Não é por acaso que já compararam a convulsão trumpista à Revolução Cultural de Mao.

A "populaça", de que escarnecia Platão, no século V antes de Cristo, contra a opinião dos fundadores da ideia política, seus contemporâneos, pela  instabilidade de humores e a sua ignorância mostrou, mais uma vez, ser igual a si própria. 

Apesar de tudo, a democracia impôs-se como a mitologia do nosso tempo, como diz Alain Brossat (*). As piores ditaduras não dispensam as eleições, se bem que forjadas, para legitimar a força. Mas esse mito é verdade que já teve melhores dias. E a maior ameaça não é a descrença nem os tiranetes da hora, mas a tecnologia que nos pede mais e mais poder sobre as nossas vidas.

Até quando aquele cartaz infame nas nossas praças, com lugar garantido e selo geopolítico?



 (*) "Le sacre de la démocratie"

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