https://www.wook.pt/livro/mario-soares-joaquim-vieira
Ler esta biografia não autorizada
de Mário Soares, com mais de 1000 páginas, baseada, entre outras fontes, em 16
longas conversas com o biografado, da autoria do jornalista, ensaísta e
documentarista, Joaquim Vieira, é não só acompanhar 70 anos de vida política
activa no combate denodado à ditadura do Estado Novo, e depois, na luta pelo
estabelecimento e consolidação da democracia, tal como ele a via, como também,
por essa via, revisitar muitos dos acontecimentos políticos marcantes de um e
outro tempo.
O mesmo, aliás, se poderia dizer
da biografia, igualmente não autorizada, de Álvaro Cunhal, com mais de 2600
páginas distribuídas por quatro volumes, publicada há uns anos, da autoria do
professor, historiador e arquivista, Pacheco Pereira, esta mais sociopolítica, que
relata a resistência heróica à ditadura salazarista e, depois, a luta, não pela
consolidação da democracia liberal, mas pela implantação de um regime
socialista inspirado na experiência soviética.
A formação do jovem Mário Soares
decorreu num ambiente familiar de certo desafogo financeiro, mercê da
exploração de um colégio de ensino, e de permanente conspiração política contra
a ditadura do Estado Novo. O pai, João Soares, um homem corajoso, era uma
figura do reviralho, participante em diversas conspirações para derrubar o
ditador Salazar, sofrendo com isso a clandestinidade, a prisão, a deportação e
o exílio.
Mário Soares tinha uma grande
admiração e respeito pelo pai, dele herdando a coragem e o sentido de
intolerância à ditadura (o que lhe acarretaria a prisão por 12 vezes, a
deportação para S. Tomé e o exílio em França para não voltar a ser preso), além
do sucesso no relacionamento com o sexo feminino.
Um aspecto que impressiona quem
não anda nestas andanças, é o que se passa nos bastidores da política que é
servida no espaço público, em que o tratamento informal e não raras vezes
agressivo entre os principais actores se substitui à pose mediática, como neste
exemplo ilustrativo:
Soares dava-se bem com o
professor Mota Pinto, então presidente do PSD, com quem se coligara em 1983
para constituir o governo do “bloco central”, mas isso não o impediu, na
sequência da decisão de propor a despenalização do aborto em certas condições, tomada
por grande maioria em congresso do PS (decisão a que não era contrário mas considerava
inoportuna), de em pleno Conselho de Ministros vituperar Mota Pinto (que o
avisara antes “que o seu partido estava em pé de guerra e que o tinha de
seguir, votando contra”): “Ó Mota Pinto, você o que é é um hipócrita. Responda
aqui a estes senhores (…) quantos abortos é que já pagou às gajas com quem se
meteu.” Mota Pinto dá uma gargalhada: “Essas coisas nem se dizem nem se falam.
Vamos lá a tratar de coisas sérias, temos que nos entender.”, salvando assim a
situação. Nas palavras de um correligionário, Bernardino Gomes, “Soares gosta(va)
muito de senhoras e de boa vida, e Mota Pinto também. Eram iguais. Tinham uma
cumplicidade enorme (…)”
As referências biográficas a
aventuras extraconjugais (e também ao processo de alegada corrupção, conhecido
pelo “fax de Macau”, que levou o governador Carlos Melancia à barra do Tribunal
onde, no entanto, seria absolvido) desagradaram profundamente a Mário Soares,
que descarregou as suas costumadas fúrias no biógrafo, para quem, ainda assim, o
comentário que a sua mulher, Maria Barroso, terá feito em telefonema a
agradecer o envio da biografia, de que “É um livro escrito com muita
honestidade.”, serviu, certamente, de bálsamo.
Um episódio menos conhecido
demonstra que uma mensagem formal, sem alicerce prático convincente, corre o
risco de ser interpretada ao contrário. No debate parlamentar do programa do
novo governo PS/CDS (assim considerado pela opinião pública embora,
oficialmente, designado como acordo parlamentar de incidência governamental), que
viria a ser empossado em Janeiro de 1978, Soares, intuindo as implicações
políticas de uma aliança com o CDS, declarou que “Não quer isto dizer que
estejamos aqui para meter o nosso socialismo (fosse isso o que fosse) na
gaveta.” Para a opinião pública, porém, Soares metera o socialismo na gaveta…
Curiosamente, foi um jovem do
CDS, que preferia Mário Soares a Freitas do Amaral nas presidenciais de 1986, que
propôs o slogan “Soares é fixe”. De facto, Soares foi melhor Presidente
da República do que Primeiro-Ministro. Preferia ler livros a estudar dossiês.
Bateu-se sempre pelo figurino europeu ocidental de liberdade política,
existência de partidos, e expressão do voto popular em eleições periódicas. O
seu espírito intuitivo e impulsivo despertou paixões. Foi amado e odiado, o que,
sem dúvida, justifica que coloquemos o seu “porreirismo” na forma
interrogativa.
Sem comentários:
Enviar um comentário