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01/04/25

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva



(foto de Valéri Arjanov)



Novosibirsk. Quando deixei para trás a aldeia onde me acolhi nos últimos dias invadiu-me uma mistura de tristeza e melancolia, um desses instantes em que as cores da natureza parecem perder brilho. Seguimos na margem direita do Biia para norte rodeados de perímetros florestais que vão saindo do adormecimento invernal. O horizonte é sempre um ponto ínfimo rodeado de árvores, arbustos, zonas boscosas. Perdura o sossego, a luminosidade da manhã alcança-nos com diversos tons de luz, desistimos de pensar, deixamo-nos ir com o olhar a recolher o sabor de viver. Separadas por variadas distâncias, vamos atravessando aldeias siberianas com as suas casas de madeira rodeadas por hortas e jardins como que adormecidas neste espaço temporal. Vê-se e sente-se que recuperam da beleza e da riqueza humana que lhes foi subtraída em nome de uma pretensa liberdade que mergulhou a sociedade num milagre de quarenta milhões de pobres. As casas vão perdendo a decrepitude, os caminhos parecem ter trabalho humano e pequenas diferenças mostram a presença de um labor de ordenamento. Nestes extensos espaços em que apenas a natureza parece existir, a vivência em solitário envolve riscos quase inultrapassáveis. Os pequenos aglomerados humanos parecem desertos, mas sente-se que a vida pulsa no que os olhos não alcançam. O colorido da natureza, saindo do cinza onde se recolheu no rigor do Inverno, surge agora vicejante nos ramos das árvores, por todo o arvoredo, nesse continuado renascer da vida. É um verde que não cansa, antes pelo contrário, alimenta a vontade de olhar, de sentir e até de nos emocionarmos. A estrada faz uma longa trajectória para a esquerda seguindo a curva do rio até à cidade de Biisk. Há longo tempo que não atravessávamos uma urbe de duzentos mil habitantes, mas as ruas e os passeios são amplos e na parte central encontramos os blocos residenciais dos tempos soviéticos. Tudo o mais é baixo e a vegetação abunda. Esta, como todas as cidades siberianas, nasceram na Idade Moderna, construídas quando o império se foi alargando para Leste. Não que em muitos lugares não houvesse assentamentos humanos anteriores ou por ali não tivessem passado as invasões que de Oriente rumavam à Europa, mas a sua existência como cidades é muito mais tardia e crescem com a chegada dos povos do império ou pela construção da linha transiberiana. Desviamo-nos quinze quilómetros para Sul para ver os rios, Biia e Katun juntarem as águas e darem origem ao caudaloso Ob que viajará até ao Árctico. É uma paisagem de fantasia, de consolo, de mansidão, fazendo lembrar a natureza de Dostoievski. Os escritores russos, sobretudo do século XIX, caracterizavam o seu tempo, o fluir da sociedade, muito em função da natureza, mesmo quando nos descrevem as paisagens citadinas, percebe-se a ruralidade da vida, na pobreza e no comportamento dos camponeses, vivendo entre a miséria e a nobreza. Só nestes espaços de silêncio, de pureza, de matizes quase sobrenaturais, se conseguirmos interiorizar o que vemos, poderemos então compreender a vasta extensão da Rússia e dos seus povos. Sente-se palavras de poesia em tudo o que contemplamos. Por ali me aquietei longas horas e a memória trouxe até mim o tempo em que me dizias, «se quiseres partir amanhã, eu paro o mundo». O mundo nunca chegou a parar e eu fui por ele adiante e tu ficaste. Encontramo-nos aqui e ali ou quando te chamo. As lembranças que a natureza nos traz! Segui para Norte, mas com tanta beleza no interior do olhar, evitei a grande cidade de Barnaul. Um aglomerado industrial de seiscentos mil habitantes iria esmorecer o sorriso que me anima desde a nascente do Ob. Retive-me algumas horas junto à foz do Berd para olhar de novo o Ob, o qual, retido por uma central hidroeléctrica forma um reservatório com uma amplitude assombrosa colocando-nos de novo no arrebatamento de um cenário irrepetível. Mas já estou próximo, a grande cidade abre-se no horizonte para onde caminho. Novosibirsk foi um desejo de há muito, uma quase promessa não concretizada, um sonho que se desfez nas areias do deserto de Karakum. Entro vagarosamente na terceira maior cidade da Federação da Rússia, com os olhos abertos na absorção do que encontro. A cidade da ciência com os seus trinta e dois institutos de ensino superior, entre os quais onze universidades, aqui no coração da Sibéria. Procuro a margem do rio junto à ponte ferroviária que me faz lembrar a de Krasnoiarsk sobre o Ienissei e aguardo a passagem do comboio. Vem lento, sem pressa, como se, extenuado, visse o destino a chegar, como se viesse a reconhecer o caminho. Por momentos, uma névoa, traz-me o mundo onde vivemos, onde desalentada a humanidade aparece atropelada por um bando de desmandados que se digladiam na monstruosidade dos seus crimes, das suas atrocidades, plenos de impunidade e de poder. Fecho os olhos para regressar ao movimento da composição que atravessa o Ob. Hoje não escrevo, o postal envio no caminho. Prossigo para Norte.


 

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