Lago Karakul, Pamir. Desconheço
quando te chegará às mãos este postal. Por agora, estamos no final do Verão. O
calor tende a esmorecer e os cumes brancos que resistiram, verão em breve o seu
domínio de alvura aumentar e estender-se pelos vales planálticos. Quando esse
tempo chegar quase nada se distingue para além da branquidão luminosa e sedosa
e das pedras escurecidas da cordilheira que tombam quase na vertical e nem a
neve consegue colar os seus tentáculos. Será a época desse vento que nos rasga
a pele quando a expomos a esse ar onde rareia o oxigénio. Mas por agora, o sol
domina a paisagem de terra seca amarelada onde não vemos ponta de erva ou flor.
Quando nos encontramos do lado Norte deste lago formado pelo degelo, o nosso
horizonte aparece coberto de um azul límpido e luzente de água imobilizada. No
fundo desta plateia, os grandes picos da cordilheira cobertos de neve acima dos
sete mil metros. Não existe um sonido que perturbe estes momentos, estas horas
em que nos limitamos a observar e caminhar em pequenos passos. Quando nos
sentamos, quedamo-nos nessa mudez que nos faz viajar na interiorização do belo
e sentimos essa recusa de pensar no mundo. Percebemos que nos encontramos
noutro patamar da vida, da existência, em que qualquer som soaria como um grito
ou o arranhar de chapa em pedra dura. Seria uma dessas maldades que aqui não
podem ter lugar. Neste lugar perde qualquer razoabilidade a velocidade das
grandes urbes, as maldades e as ganâncias dos «mordomos do universo todo» e
quando tentamos construir na alma do pensamento as terras do Tibre ao Nilo, o
registo apaga-se pela incompatibilidade do inferno com a magia. Dobram-se os
séculos e os milénios e a carcaça pôdre dos resíduos imundos em que se
transformam os mandantes do planeta, não desaparece. Por vezes, como neste
tempo em que vivemos, espalham-se como lama sobre os povos e as terras, semeiam
violência na impunidade que lhes é garantida pelas guardas pretorianas do
dinheiro e do cacete. Restam-nos estes lugares como refúgio protector das
sanhas musgosas de serpentes sem moral e sem ética. As montanhas que olho na
distância quase infinita do Karakul mais parecem um altar sagrado de pureza e
letícia. Podemos imaginar tudo que os sonhos permitem com a quase certeza que
se cumprirão. Estamos perante o soberbo e o irreal, e quando procuramos
palavras que tornem esta realidade compreensível, constatamos que desapareceram
ou ainda não foram criadas. A aldeia está a 20 kms, um misto de pequenas casas
de quatro paredes e iurtas de abrigo numa espécie de parque de campismo se é
que esta definição faz aqui algum sentido. Não faz, na verdade, mas ainda não
conseguimos despir a memória dos termos que trouxemos. Não sei como vou
regressar, mas pouco importa neste lugar. Se nos esquecermos do frio que desce
na companhia da noite, podemos dizer que tudo é possível. Há momentos que vemos
ao longe, na estrada de terra, passar motociclos, quase sempre europeus. De
seguida podem decorrer horas ou dias até vermos alguém de novo. Há quem se
aventure no rigor do Inverno, mesmo sabendo que a natureza nos pode engolir.
Esta terra dura e amarela que os pés calcam, na Primavera enche-se de verde e
por vezes a coragem de algumas plantas pode gerar flores. É o tempo dos pastos
e dos rebanhos. Mas se de dia os olhos se repartem entre o azul da água, o
castanho das montanhas, a neve dos cumes e o amarelo da terra, a noite traz-nos
um galaxial universo que nos derrete em espanto. Ainda existem espaços terrenos
onde podemos soltar os sonhos que nos fazem acreditar na humanidade e num mundo
sem donos nem palhaços fardados de sátrapas. Caminho agora ao longo do lago.
Não sei quando regresso. Cansada de ouvir tocar os tambores da guerra, vou
continuar a fugir. Levo o postal comigo. Sigo para Norte para as montanhas do
Altai.
01/02/25
NO CORRER DOS DIAS
Marques da Silva
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