"Dormia desolada. O ventre magoado. Vendia milagres.
És uma puta, dizia ao espelho. Depois adormecia,
as secreções aconchegadas em redundâncias
afectivas, a vida inteira ou algo mais puro ainda
que se afeiçoasse ao seu corpo pousado, ao modo solitário
com que depois removia os afectos. Algo insólito
a enchia de graça por esses dias, dir-se-ia grávida
do Messias, assim na terra como em qualquer outro lugar,
nem que fosse no silêncio obscuro de um homem
depois de ejacular, no modo distante
como adormece ao seu lado e a condena ao abandono."
José Rui Teixeira, in “Assim na terra”
Confesso o meu fascínio por marginais (ou excluídos da sociedade, como quiserem). Uma vez aceitei o convite de um manifesto tóxico-dependente para me pagar um café porque ardia de curiosidade por saber alguma coisa sobre aquele homem ainda jovem, visivelmente destruído por todos os flagelos sociais, físicos e psicológicos, assustadoramente belo, olhos desoladamente claros e dóceis.
Contou-me que se chamava Arlindo e que a mãe se tinha suicidado quando ele tinha 13 anos. Parecia não ter muitas mais recordações, aos 33 anos. Contou-me também que tinha tido uma “namorada” de quarenta e tal anos que o deixara por não lhe ter perdoado quando soube que ele se deixava enrabar por 10 euros. “Mas eu não queria que ela me andasse sempre a dar dinheiro” – tentava ele justificar-se perante mim imaginando talvez que também eu o reprovava por tal acto ou que isso era importante para mim.
E o Júlio Allen Vidal, 52 anos, desengonçado como um rapaz, desdentado como um velho, lançado na rua aos 17 pela família abastada e bem burguesa, porque se recusara a ingressar no Colégio Militar, heroinómano assumido, grande viajante na juventude, desde sempre sonhador com uma “carreira” de poeta revolucionário.
E o Miguel, 27 anos, sem saber ler nem escrever, seropositivo, sempre à beira de morrer de fome, não da sida, filho de Teresa a prostituta gorda, proibida pelo chulo de lhe dar abrigo ou sequer uma côdea de pão, e que agora está preso em Custóias porque “andava a assaltar miúdos para lhes roubar os telemóveis. “Lá é que ele está bem, está bem gordo” – disse-me uma colega da mãe.
E o Fernando, fácies e barba de Jesus Cristo, enquanto teve forças fazia uns malabarismos pindéricos na rua de Cedofeita, integrado num grupo de “okupas” e os respectivos cães. Pedia “uma moeda”, tímido e desajeitado. Um dia começou a crescer-lhe um papo na testa, que foi aumentando até lhe pesar tanto que deixou de se manter de pé. Passou a pedir sentado numa soleira e depois deixei de o ver. “Morreu” – disse-me o Miguel encolhendo os ombros.
E Kirla – nome de guerra – irremediavelmente alcoólica, mãe desnaturada, prostituta para todo o sempre.
De vez em quando via-a a ler os poemas escritos nas folhas A4 afixadas no painel de granito polido da montra da livraria. Fazia a sua escolha: Neruda, Yeats, Sena, e copiava-os para um caderno, também A4, com lombada em espiral de plástico. Chegou a entrar e a pedir-me que lhe vendesse uma daquelas folhas. Eu imprimia e dava-lhe as folhas que ela escolhia, com os poemas. Mais tarde soube que ela os reescrevia, adaptando-os à sua própria vivência e condição, e depois assinava-os: Anabela Moreira.
Dos três filhos (um de cada pai), não falava muito. Estavam espalhados por aí. Tinha sido casada e o ainda marido era pescador no Algarve. Dizia que o que lhe custava mais nele não eram as tareias mas as “más palavras”, os insultos e não se cansava de dizer que tinha o 9ºano e vários cursos tirados no “Espaço Pessoa”: informática, manualidades… E que estava a deixar o álcool…
Anabela, o verdadeiro nome, 41 anos, alta, olhos azuis, enormes e obviamente tristes e mortos. No corpo ainda eram visíveis vestígios da beleza do tempo em que fizera streap-tease em bares ocasionais, época aliás em que contraíra o vício do álcool.
Quando aparecia, entrava na livraria exuberante, raramente sóbria, rosto inchado e rubro, às vezes cheio de papos e nódoas negras ou vermelho escuro, e punha-se com lamúrias: as “outras” estragavam-lhe o negócio: “Isto a gente somos as duas mulheres e vou-lhe dizer, elas levam 5 euros pelos três pratos. Sabe o que é, não sabe?”. E sem esperar a minha resposta, esclarecia no mesmo tom de voz: “É cona, cu e broche. Vou p’ra outro lado”.
Depois desaparecia. E quando reaparecia, via-a passar de braço dado com um “mânfio” qualquer, a quem passava a chamar “meu marido”. Até à próxima tareia, seguida de nova ruptura, novo abandono, nova queda, nova partida para a mesma velha vida.
Anabela tinha um sonho, ou antes, dois, aliás, três: arranjar um homem que tomasse conta dela, ter uma quinta em Santarém, a sua terra natal, com galinhas, patos, cães e gatos, e ter um jeep. “E sair dessa vida?” – perguntava eu. “Não, nisso já não penso” – respondia ela.
Dina La-Salette
2 comentários:
Olá Julião, sou de Vila Franca de Xira, e juntos criámos "O BEM E O MAL", no liceu, que foi exibido no CineTeatro dessa cidade,lembras-te do que se trata? Fui músico com discos editados, somos amigos, e gostaria de saber de ti. a primeira era tua e dizia assim: queimem archotes, pensem em nós, já somos muitos, não estamos sós... abraço, M.P.
Nme sujo, nem porco, nem mau(desmentindo falsidades).
Jesus não é maçonico nem um espirita. É um espirito de vida, de luz, de bem-querer a todos os seus irmãos e amigos. A Dona La-Sallete que me acusou de ser sujo e porco, enganou-se redondamente. Se fui heroinómado assumido há mais de 12 anos que deixei de o ser sem qualquer recaída até agora. Uma benemérita(?) como a Dona LA-Sallete é, devia abster-se de fazer juizos tão baixos como o que fez contra mim. Só por acaso via internet desobri esta acusação-comentário, indigna da pessoa que sou, que embora beneficiando, como pobre materialmente, da alimentação do coração da cidade, juro que nunca fui porco, nem indigno do que lá como e comi. Em momentos de dificuldades, defendi o coração da cidade com duas intervenções na página do leitor do Jornal de Noticias. Não merecia nem mereço a designação de porco e sujo de quem lá me dá de comer.
Júlio Alberto Allen Vidal
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