Há livros que nos vêm parar à mão, não fomos nós que os escolhemos. A História da Arte, de E. H. Gombrich * foi, recentemente, uma dessas aparições. E que livro extraordinário, a justificar plenamente os tradicionais louvores da contra-capa…Não sei o que apreciar mais, se a escrita clara, elegante e rigorosa, sem palavras a mais, se o evidente domínio da matéria, se o método expositivo, se a selecção de obras de arte. Uma coisa é certa, depois de ler o livro, os meus olhos, como pretendia o autor, estão mais abertos para essa redentora actividade humana.
O Professor Gombrich introduz-nos nesse mundo com uma afirmação forte: "Não existe realmente algo a que se possa chamar Arte. Existem apenas artistas. Outrora, esses homens pegavam num punhado de terra colorida e com ela modelavam toscamente as formas de um bisonte na parede de uma gruta; hoje, eles compram as tintas e pintam cartazes para estações subterrâneas do metro; e muitas outras coisas os artistas fizeram ao longo dos tempos. Não há mal nenhum em designar como arte todas essas actividades, desde que se tenha em mente que tal palavra pode significar coisas muito diversas, em várias épocas e lugares, e que Arte com maiúscula não existe”.
Para, logo a seguir, nos avisar que “Ignoramos como a arte começou, tal como desconhecemos os primórdios da linguagem. Se aceitarmos que arte significa o exercício de actividades como a edificação de templos e casas, a realização de pinturas e esculturas ou a tecelagem de padrões, nenhum povo existe no Mundo sem arte. Se, por outro lado, entendermos por arte alguma espécie de belo artigo de luxo, algo para nos deleitar em museus e exposições, ou uma coisa muito especial para usar como preciosa decoração na sala de visitas, cumpre-nos reconhecer que esse uso da palavra constitui um desenvolvimento bem recente, e que muitos dos maiores construtores, pintores ou escultores do passado nem sequer sonharam com ele.”
Surpreende-nos, ainda, com uma solução de continuidade na história da arte: “Em todas as regiões do globo existem formas de arte, mas a história da arte como um esforço continuado não começa nas grutas do Sul da França ou entre os índios norte-americanos. Não há uma tradição directa que ligue esses estranhos primórdios aos nossos dias, mas existe uma tradição directa, transmitida de mestre a discípulo, e de discípulo a fruidor ou copista, que vincula a arte do nosso tempo, ou uma casa, ou um cartaz, à arte do vale do Nilo, há cerca de cinco mil anos atrás. Pois veremos que os mestres gregos aprenderam com os egípcios, e que todos nós somos discípulos dos gregos. Assim, a arte do Egipto reveste-se de tremenda importância para nós”.
É, no entanto, na antiga civilização grega, que o autor situa o ponto de viragem da história da arte: “Dentre essas cidades-estado gregas, Atenas, na Ática, tornou-se, de longe, a mais famosa e a mais importante na história da arte. Foi aí, sobretudo, que a maior e mais surpreendente revolução em toda a história da arte produziu os seus frutos (...) Quando os artistas gregos começaram a fazer estátuas de pedra, partiram do ponto em que os egípcios e os assírios tinham ficado (…), mas não se limitaram a obedecer a fórmulas fixas, por melhores que elas fossem, e começaram, na prática, as suas próprias experiências (…) Os egípcios tinham baseado a sua arte no conhecimento. Os gregos começaram a usar os próprios olhos. Uma vez iniciada essa revolução, nada mais a deteria (…) Os pintores fizeram a maior de todas as descobertas, a descoberta do escorço. Foi um momento assombroso na história da arte quando, talvez um pouco antes de 500 a. C., os artistas se atreveram pela primeira vez na história a pintar um pé tal como é visto de frente. Nos milhares de obras egípcias e assírias que chegaram até nos, jamais acontecera algo assim”.
Sublinha, entretanto, que “Nunca se acaba de aprender no campo da arte. Há sempre novas coisas a descobrir. As grandes obras artísticas parecem revelar um aspecto diferente de cada vez que nos colocamos diante delas. Parecem ser tão inexauríveis e imprevisíveis quanto seres humanos de carne e osso. É um mundo excitante, com as suas próprias e estranhas leis, as suas próprias aventuras. Ninguém deve pensar que sabe tudo a respeito delas, pois ninguém o sabe. Talvez nada exista mais importante do que isto: que, para nos deleitarmos com essas obras, devemos ter um espírito desprendido, pronto a captar todo e qualquer indício sugestivo e a reagir a todas as harmonias ocultas (…)”
E formula, por fim, um desejo: “Eu gostaria de ajudar a abrir olhos, não a soltar línguas. Falar com argúcia sobre arte não é difícil, porque as palavras que os críticos usam têm sido empregues em tantos contextos diferentes que perderam toda a concisão. Mas olhar um quadro com olhos abertos à novidade e aventurar-se numa viagem de descoberta é uma tarefa muito mais difícil, embora também mais compensadora. É incalculável o que se pode usufruir em semelhante jornada”.
Mário Martins
* Da Phaidon, 1950. Edição portuguesa: Público, 2005
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