Mário Faria
http://olhares.sapo.pt/jardim-de-arca-dagua (Dario Fernando) |
Apesar do vento do
norte, o tempo estava ameno e o sol convidava o corpo a desfrutar o suave calor
que irradiava. Com o jornal de baixo do braço, fui passear para o meu parque de
eleição : o Jardim da Arca de Água. Roteiro : caminhar, ler, observar e tomar
nota dos pormenores. Enfim, viver o momento de forma saudável : sem computador,
TV e longe dos shoppings.
O ambiente do jardim
estava calmo. Na gruta, os homens da sueca jogavam segundo os melhores códigos de
carteio e que tive a oportunidade de observar atentamente, nesse dia. Num
escaparate, estava anunciado o torneio de S. João que iria decidir o campeão da
época que acaba em 30 de Junho.
Depois da
espreitadela que dei à volta das mesas da sueca, resolvi dar corda aos pés e fazer o primeiro
reconhecimento ao local. No lado oriental, um banhista aproveitava o sol como
se estivesse na praia, no banco ao lado, idosos de um lar próximo conversavam melancolicamente
entre si, enquanto uma jovem sentada sobre o relvado teclava no seu telemóvel à
velocidade do som, o que fez durante largos minutos com visível satisfação. Mesmo
ao lado, uma avó passava um ralhete ao neto : “estás um ranhoso, hoje, vai
jogar a bola e cala-te”. Aliás, crianças e avós eram dominantes: com boa ou má
disposição aturavam-se uns aos outros, na maioria dos casos num convívio cativante.
Sentei-me para ler as
notícias. Nem uma novidade : só
desgraças. Uns miúdos invadiram o jardim, em alta velocidade, montados em
bicicletas de gama alta. Pararam e julguei que o sossego voltasse. Mas, não : os
miúdos passaram a fazer contra relógios individuais, indiferentes aos sinais de desagrado
generalizado que a maioria calava e poucos manifestavam com acrimónia.
Preparava-me para uma retirada estratégica quando apareceu, em passo de corrida, o Karaté Kid de aspecto
muito saudável, comparativamente ao que exibiu antes do internamento a que foi
sujeito. Trocámos cumprimentos com frases de ocasião, e contou-me como lhe foi
retirado o SRS e as dificuldades de se manter à tona, pois vivia com a avó e
dependiam exclusivamente da parca reforma da idosa senhora. Valiam-lhe as
ajudas dos amigos (pequenos comerciantes e moradores) da zona e de alguns
familiares e vizinhos mais solidários.
Os rapazes das
bicicletas pararam com as corridas e passaram para as acrobacias, misturadas
com malandrices provocadoras dirigidas aos
transeuntes que circulavam no jardim. Aproximaram-se
de nós e já perto ensaiaram uma gracinha. Karaté Kid reagiu : colocou-se em
posição de combate, e com as mãos em sinal de defesa, e o pé pronto para o
ataque, ou vice-versa, deu um urro colossal quando passaram. Os rapazotes
reagiram : sprintaram e saíram mais depressa do que tinham entrado. A paz
voltou e Karaté Kid ao despedir-se confessou-me que estava com um ratinho a
morder-lhe a cabeça do estomago. Dei-lhe os cinco Euros da praxe, abraçou-me, e
lá foi beber uma cervejinha e comer uma sande, como costume.
De regresso a casa,
passei pela USF para marcar uma consulta (aberta? ou urgente ?) para o médico
de família avaliar os exames que me mandou fazer. Tirei a senha. Sentei-me numa
sala cheia – predominantemente com mulheres – com as cadeiras viradas para a recepção, (tipo escola primária), onde
operava uma única funcionária. “Azul C35” gritou : era a minha vez. Expliquei ao que
vinha e pedi a marcação de uma consulta. Disse-me que não. A regra era deixar
os exames para o doutor ver e só depois de os avaliar decidiria o passo
seguinte. Aceitei, que remédio. Passou o talão : tive de pagar 3€. “Amanhã venho levantar os exames e saber o
parecer médico do doutor”, disse. “Não, não, só daqui a uma semana é que poderá
levantar os resultados”, avisou a
funcionária de forma austera. “Uma semana? Está a brincar, comigo!”. Trocámos
argumentos, discutimos e quando me
preparava para abandonar a sala, ditando ameaças, a pequena abriu uma janela conciliadora : “Passe cá na próxima sexta-feira. Talvez
possa ter os seus resultados”. Assim fiz: voltei no dia aprazado e
devolveram-me os exames, tal como os tinha entregue. Nem uma palavra, uma
explicação ou recomendação. Nem um sinal, uma rubrica, um carimbo ou um simples
ok. Nada. O médico disse nada. Como é
possível que aquilo que titulam como Consulta Sem Presença do Utente seja muda
e não mereça um comentário e uma assinatura do responsável, por escrito. A
culpa não pode ser remetida exclusivamente ao Governo e ao ministro da tutela. As
USF impõem regras e não definem os compromissos que (os médicos) deveriam ter (nestas
circunstâncias) para com os utentes. Uma
boa parte dos doutos senhores não presta um serviço a quem o consulta: faz um
frete. Posiciona-se num patamar superior e duvida, fica indiferente ou não gosta da clientela. Provavelmente, não
merecemos mais. A resignação dá nisto. Se o poder incomoda muita gente, os
poderzinhos seguem o mesmo rumo e tendem a afligir os do costume : os mais
fracos (ou menos fortes). Vou protestar, até que a voz me doa. Tenho esse
dever.
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