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01/07/12

ATÉ QUE A VOZ ME DOA!

Mário Faria


http://olhares.sapo.pt/jardim-de-arca-dagua (Dario Fernando)


  
Apesar do vento do norte, o tempo estava ameno e o sol convidava o corpo a desfrutar o suave calor que irradiava. Com o jornal de baixo do braço, fui passear para o meu parque de eleição : o Jardim da Arca de Água. Roteiro : caminhar, ler, observar e tomar nota dos pormenores. Enfim, viver o momento de forma saudável : sem computador, TV e longe dos shoppings.

O ambiente do jardim estava calmo. Na gruta, os homens da sueca jogavam segundo os melhores códigos de carteio e que tive a oportunidade de observar atentamente, nesse dia. Num escaparate, estava anunciado o torneio de S. João que iria decidir o campeão da época que acaba em 30 de Junho.

Depois da espreitadela que dei à volta das mesas da sueca, resolvi  dar corda aos pés e fazer o primeiro reconhecimento ao local. No lado oriental, um banhista aproveitava o sol como se estivesse na praia, no banco ao lado, idosos de um lar próximo conversavam melancolicamente entre si, enquanto uma jovem sentada sobre o relvado teclava no seu telemóvel à velocidade do som, o que fez durante largos minutos com visível satisfação. Mesmo ao lado, uma avó passava um ralhete ao neto : “estás um ranhoso, hoje, vai jogar a bola e cala-te”. Aliás, crianças e avós eram dominantes: com boa ou má disposição aturavam-se uns aos outros, na maioria dos casos num  convívio cativante.

Sentei-me para ler as notícias.  Nem uma novidade : só desgraças. Uns miúdos invadiram o jardim, em alta velocidade, montados em bicicletas de gama alta. Pararam e julguei que o sossego voltasse. Mas, não : os miúdos passaram a fazer contra relógios individuais,  indiferentes aos sinais de desagrado generalizado que a maioria calava e poucos manifestavam com acrimónia. Preparava-me para uma retirada estratégica quando apareceu,  em passo de corrida, o Karaté Kid de aspecto muito saudável, comparativamente ao que exibiu antes do internamento a que foi sujeito. Trocámos cumprimentos com frases de ocasião, e contou-me como lhe foi retirado o SRS e as dificuldades de se manter à tona, pois vivia com a avó e dependiam exclusivamente da parca reforma da idosa senhora. Valiam-lhe as ajudas dos amigos (pequenos comerciantes e moradores) da zona e de alguns familiares e vizinhos mais solidários. 

Os rapazes das bicicletas pararam com as corridas e passaram para as acrobacias, misturadas com malandrices provocadoras dirigidas  aos transeuntes que circulavam no jardim.  Aproximaram-se de nós e já perto ensaiaram uma gracinha. Karaté Kid reagiu : colocou-se em posição de combate, e com as mãos em sinal de defesa, e o pé pronto para o ataque, ou vice-versa, deu um urro colossal quando passaram. Os rapazotes reagiram : sprintaram e saíram mais depressa do que tinham entrado. A paz voltou e Karaté Kid ao despedir-se confessou-me que estava com um ratinho a morder-lhe a cabeça do estomago. Dei-lhe os cinco Euros da praxe, abraçou-me, e lá foi beber uma cervejinha e comer uma sande, como costume.

De regresso a casa, passei pela USF para marcar uma consulta (aberta? ou urgente ?) para o médico de família avaliar os exames que me mandou fazer. Tirei a senha. Sentei-me numa sala cheia – predominantemente com mulheres – com as cadeiras viradas  para a recepção, (tipo escola primária), onde operava uma única funcionária. “Azul C35”  gritou : era a minha vez. Expliquei ao que vinha e pedi a marcação de uma consulta. Disse-me que não. A regra era deixar os exames para o doutor ver e só depois de os avaliar decidiria o passo seguinte. Aceitei, que remédio. Passou o talão : tive de pagar 3€.  “Amanhã venho levantar os exames e saber o parecer médico do doutor”, disse. “Não, não, só daqui a uma semana é que poderá levantar os resultados”,  avisou a funcionária de forma austera. “Uma semana? Está a brincar, comigo!”. Trocámos argumentos, discutimos  e quando me preparava para abandonar a sala, ditando ameaças,  a pequena abriu uma janela conciliadora :  “Passe cá na próxima sexta-feira. Talvez possa ter os seus resultados”. Assim fiz: voltei no dia aprazado e devolveram-me os exames, tal como os tinha entregue. Nem uma palavra, uma explicação ou recomendação. Nem um sinal, uma rubrica, um carimbo ou um simples ok. Nada. O médico disse  nada. Como é possível que aquilo que titulam como Consulta Sem Presença do Utente seja muda e não mereça um comentário e uma assinatura do responsável, por escrito. A culpa não pode ser remetida exclusivamente ao Governo e ao ministro da tutela. As USF impõem regras e não definem os compromissos que (os médicos) deveriam ter (nestas circunstâncias)  para com os utentes. Uma boa parte dos doutos senhores não presta um serviço a quem o consulta: faz um frete. Posiciona-se num patamar superior e duvida, fica indiferente  ou não gosta da clientela. Provavelmente, não merecemos mais. A resignação dá nisto. Se o poder incomoda muita gente, os poderzinhos seguem o mesmo rumo e tendem a afligir os do costume : os mais fracos (ou menos fortes). Vou protestar, até que a voz me doa. Tenho esse dever.



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