Cristina Guerreiro
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Todos os dias passa
por ali.
Todos os dias a
recorda porque todos os dias a vê passar como se as tardes de Verão tivessem
parado encadeadas no reflexo dos vidros das casas, ela a descer a rua, muito
direita, as árvores a lançarem sombras esguias pelo pico do calor, ela empinada
nos saltos, a oficina a meio de portadas abertas e o pessoal aos assobios, ela
a aspirar o cheiro da gasolina.
Tem hora de chegada,
a mesa de bistrot é uma moeda para tantos cotovelos e cigarros e afinal tudo
cabe, tudo se ajeita, mais se agigantam os parceiros, Kant, Freud, Zeca Afonso,
Che vão rodando cadeiras e ela senta-se apertada, cumprimenta de mão, de boca,
tocam-se dedos, pedem-se cafés, capilés que o calor hoje não dá tréguas,
chegou-se aos 32º imagine-se aonde isto vai parar...
Falam-se de amores e
de pudores, não se chora, as lágrimas reservam-se para alegrias a valer, para
dias de Maio ou liberdades impensadas ou mundos sem guerra, deixa-se crescer o
cabelo como promessa de amizade eterna a amigos para sempre e vive-se
permanentemente com uma caneta e um bocado de papel no bolso, não há dinheiro
para comprar máquinas fotográficas, o registo é à mão e já está.
Lembra-se dela.
Todos os dias.
Há-de ter agora rugas
e o cabelo raiado depois de muitas vezes ter sido cortado.
A oficina é agora um
centro de dia para idosos, não há assobios, tem uma rampa e cadeiras de rodas
ou velhos de bengalas.
Cortaram todas as
árvores da rua alegando que eram causa de alergia e substituíram por
estacionamentos pagos. Não há mais reflexos em vidros porque todas as casas são
agora edifícios altos e a custo os raios de sol dominam aquele bocado.
O café Central ainda
é o café Central. Não se fuma lá dentro. Não há mesas de bistrot. Não há
conversas de tertúlia, nem promessas de mundos melhores, nem jovens sentados,
nem ela que não sendo jovem ainda lá entra e sai. Só isso, entra e sai. Ninguém
repara, ninguém a interpela, é invisível, quase perpassável.
Ainda ouve Zeca
Afonso e entende Che, não concorda tanto com Freud e percebe Kant de diferente
modo, alguns de seus amigos já partiram de vez, apenas dois se mantêm na sua
vida, do resto não sabe, mas pensa neles, pensa muito neles. Guarda os pedaços
de papel de cada um, imitação de fotografias instantâneas que se trocaram em
tempos de verdades absolutas. Outras verdades. Verdades diferentes, não
melhores, apenas diferentes, do tamanho que se tinha lá.
Já chorou muito desde
então e a maioria por tristeza profunda mas o tempo a passar levou-lhe também
as lágrimas e já se esqueceu da última vez que sentiu os olhos molhados.
Todos os dias.
Por vezes sente
vergonha de não a alcançar, tocar-lhe os dedos, dizer-lhe o nome.
Mas há coisas que são
mesmo assim, distantes, lembranças, querer estar perto para não chegar,
recordações que se querem guardar junto à memória de tempos muito felizes.
Sempre.
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