Mário Faria
Mercado Ferreira Borges (1976) |
Tinha conseguido um receita de Ben-u-ron para a minha Mãe
(tem 92 anos) e tive que ir à Farmácia para o comprar. Já anoitecia e as
milícias preparavam-se para montar o posto de controlo. O movimento era
diminuto, os carros passavam a alta velocidade e não respeitavam a sinalização.
Estava frio, um vento cortante de leste fazia estremecer o corpo e a alma. Como
sempre, saí armado: a pistola, bem “colada” ao corpo, transmitia-me uma (falsa) segurança
de que não prescindia. Chegado à farmácia, encontrei-a fechada, como
habitualmente. Bati, espreitaram pelo visor. Miraram-me minuciosamente. Coloquei
o BI no receptáculo que se abriu para o receber e prontamente o recolheram para
verificar a sua legalidade. Depois de confirmada a sua validade, abriram
novamente o receptáculo: devolveram-me o BI e introduzi a receita médica.
Esperei largos minutos. Pelo comunicador informaram-me que tinha de pagar
500$00 por apenas duas pastilhas. O racionamento não permitia vender maior porção.
Depois desta despesa, pouco sobrava para as restantes compras do mês. Não tinha
alternativa: àquela hora seria extremamente perigoso tentar recorrer ao mercado
paralelo, onde poderia obter o produto ou outro analgésico, mais pílulas e, com
sorte, a preço mais conveniente. Enviei o dinheiro pelo receptáculo e só depois
recebi o medicamento que vinha embrulhado num papel amarrotado que terá tido
outras serventias, muito provavelmente. Toda a operação foi feita com a máxima
cautela, pois morria-se e matava-se por um naco de pão, uma cerveja ou uma qualquer
droga que servisse para mitigar a dor. Tinha que me apressar. O recolher obrigatório era às 22
horas e a partir dessa hora a iluminação púbica era desligada e, apenas nos
múltiplos controlos pela cidade, havia alguns holofotes iluminados, através de
motores recuperados do tempo da guerra colonial. Passei pelo controlo, depois
de me ter identificado e fui falar com o chefe das milícias (antigo mercenário com
um curriculum excepcional) que andava num blindado a fazer ronda por toda a
zona sujeita à sua intervenção (toda a área que compunha a antiga freguesia de
Paranhos) vestido a rigor, num camuflado impecável, botas reluzentes e com as
insígnias de general. Falámos da
situação e pedi-lhe contactos, pois
precisava de uma série de produtos que
só conseguiria arranjar no mercado negro ou no mercado de trocas, a funcionar no antigo Ferreira Borges. O homem
comandava tudo, e disso bom proveito tirava. É um tirano com aspecto
prazenteiro, e a população que controla obedece-lhe cegamente. O Governo central é fraco. Portugal vive numa indefinição
que se perpetua depois da saída, primeiro do Euro e depois da UE. Os ricos fugiram,
os que puderam debandaram, a Europa ostracizou-nos e vivemos isolados, nesta
ilha em que Portugal se transformou. O país “regionalizou-se” e nas regiões,
que foram sendo formadas segundo as relações de força que se iam constituindo,
mandam os comandantes militares ou das milícias. O povo age de forma resignada.
A sobrevivência é quem mais ordena. A economia segue o mesmo rumo: há um tímido
regresso à agricultura e às pescas, enquanto se tenta reanimar as estruturas
industriais existentes para as fazer funcionar e ocorrer à satisfação das
necessidades básicas. O comércio reanima-se, apesar do mercado negro, e as
nossas relações exteriores estão praticamente reduzidas aos países de língua
portuguesa, a alguns poucos da América do Sul e, de forma privilegiada, com a
China que nos apoia e vota contra todas as decisões do Conselho de Segurança da ONU que visem o bloqueio do país ou uma
intervenção militar da Nato. O Governo é curto, escolhido pelo Conselho Superior dos Comandantes
Militares, e cabe-lhe cumprir, basicamente, todos os actos de representação do País e do
Estado. Regressei a casa. A TV funciona durante 4 horas e os
conteúdos resumem-se aos enlatados que passam o crivo da censura. Fui-me deitar
à luz da vela. Tenho saudades dos filhos e dos netos de quem não tenho notícias
há algumas semanas. Adormeci a pensar na estratégia para obter alguns
alimentos, para os quais já não dispunha de senhas para os adquirir. Um estranho estrondo acordou-me, vindo não sei de onde.
Pensei que era um ataque do gang da Pasteleira, muito temido pela violência e
temeridade nos ataques que ousam cometer sobre os cidadãos e as próprias
milícias, a estes em sinal de represália pelas usuais sevícias que praticam
sobre os que caem na situação de prisioneiros. Levantei-me. O dia raiava.
Espreitei e nada detectei de estranho. As pessoas moviam-se serenamente.
Parecia um dia, como antigamente. Só alguns minutos depois, conclui que tinha
acabado de sair de mais um pesadelo, o que ultimamente tem acontecido com
frequência. A minha mulher já se tinha levantado e tomava o pequeno almoço. Mais
um dia normal. Banhei-me, vesti-me, e telefonei de imediato aos meus filhos
para confirmar que estava tudo bem. Tudo OK. Fiquei mais sossegado. Desci ao
café e encontrei as pessoas de sempre, discutindo o tema dominante do momento,
o SLB/FCP, tendo como som de fundo o “ai se eu te pego” que um canal cabo
transmitia. As notícias eram boas: Portugal sai aprovado pela troika, o
Governo garante que o programa de ajuda evita a austeridade selvagem e o Moedas
afirma que, dentro de dois anos, o país estará em condições de produzir e criar
riqueza, pois as novas estruturas, que a austeridade vai parindo, estarão
preparadas para romper com esta imobilidade secular e a nossa falta de
competitividade endémica.
Bandidos ! E não podem ser desactivados?
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