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01/03/12

MUROS RELIGIOSOS (9) O TAUISMO

Mário Martins

Yin - Yang (Wikipédia)


“O tauismo não é conhecido”

Marcel Granet (1921)



“(…) O tauismo é uma religião de mistérios. Estamos diante de uma religião popular (…). Difundido universalmente na China, o tauismo continua a ser difícil de conhecer. Para os não-chineses, esta dificuldade é multiplicada pela inacessibilidade, tanto hoje como em tempos passados, da China profunda, e talvez ainda mais pela dificuldade que nós, homens e mulheres da ‘religião do Livro’ (…), temos em apreender o que tão pouco se adequa às nossas ideias sobre o que é uma religião”.

“Ninguém se torna tauista - é tauista, às vezes sem dar por isso. A religião (…) não se tornou na China uma função diferenciada da actividade social (…)”.

Kristofer Shipper (1993)



Se, como vimos, o Hinduísmo contrasta fortemente com as religiões do Livro e o Budismo nos desarma com a sua indiferença metafísica, o Tauismo aprofunda a estranheza de quem está habituado a certezas teológicas positivas.

O tauismo, que sempre viveu à margem do Estado, quer no seio da legalidade, quer fora dela, mergulha as suas raízes na Antiguidade (séculos V e VI antes da nossa era) (…) O facto de o tauismo sobreviver hoje, apesar de tantas perseguições que sobre ele se abateram, é talvez um dos seus aspectos mais notáveis.

O seu culto dos santos, a sua liturgia e as suas peregrinações são inteiramente comparáveis às do Ocidente; o Tau e os seus aspectos, pelo contrário, são conceitos sem contrapartidas nas nossas teologias (…).

Em lugar das verdades reveladas que constituem o fundamento de tantos sistemas religiosos, o tauismo nada propõe, a não ser um paradoxo: toda a gente conhece o Tau (a Via) e contudo ninguém o conhece. Aquilo pelo qual tudo é, tal e qual, espontaneamente, sempre ultrapassará o entendimento humano. “Tau” é apenas um nome: “Pode pensar-se nele como sendo a Mãe de tudo o que está debaixo do céu. O seu verdadeiro nome, não o sei; dá-se-lhe o nome poético de “a Via”…A Via é regida pelo ‘assim por si mesmo’” (Daode jing, 25).

(…) A Via - o processo - que se manifesta através das transformações perpétuas do universo é por definição indefinível. Não pode ser apreendida a não ser nos seus aspectos, sendo estes evidentemente múltiplos até ao infinito (…).

(…) O que se revela aos nossos sentidos (…) é o universo diferenciado em perpétuo devir, mas este mundo fenoménico não passa da superfície (…) de uma outra realidade permanente, a da grande matriz do caos (…) Este caos que anula a ordem celeste, subverte o curso das coisas, constitui o verdadeiro “além”, impensável absoluto, obscuro, misturado, indiferenciado e mistério (…).

“Uma vez yin, uma vez yang, eis o Tau”, diz o grande tratado de adivinhação e cosmologia, o Yijing. “Uma vez vida, uma vez morte, eis a transformação dos seres”, diz por seu lado Zhuang Zi (Tchuang-tsé), o grande místico do tauismo antigo. Esta alternância, segundo a qual cada coisa ou ser, uma vez atingido o seu apogeu, se transforma no seu contrário, constitui o Grande Princípio, o Taiji (…).

A cosmologia tauista entranhou-se em todos os domínios do pensamento chinês (…) Nem mesmo na época moderna o universo será jamais concebido como obra de um deus criador ou como o resultado de uma intervenção especial; ele é um devir espontâneo, em perpétua mudança “por si mesmo”.

Os primeiros tauistas (…) teriam sido adivinhos. Eram letrados, ao mesmo tempo astrólogos, analistas, arquivistas e escribas da corte dos senhores feudais (…). O seu papel era observar os fenómenos naturais; estudavam os ciclos do céu e da terra, criavam calendários, anotavam os eclipses e outros fenómenos especiais. O seu conhecimento da história ensinava-lhes que, apesar da sua arte, nada era verdadeiramente previsível: as dinastias mudavam, o usurpador de ontem tornava-se o herói fundador de hoje, a legitimidade “por mandato do Céu” nada tinha de inquebrantável, os antepassados reais não eram os antepassados do mundo. Compreenderam assim que o homem ocupa apenas um lugar insignificante num universo em perpétua mutação onde alto e baixo, grande e pequeno, anterior e posterior, não passam de noções relativas. Do mesmo modo, também os deuses não podem deixar de ser muito relativos. A elaboração desta cosmogonia não teológica não é de surpreender uma vez que, para os tauistas, as únicas forças permanentes no universo provêm do poder (de, que significa acção) do Tau, o qual se manifesta nas leis da natureza.

Segundo a lenda, o primeiro tauista foi Lao Zi (Lao-tsé), literalmente “o Velho Mestre”. Teria sido arquivista e astrónomo na corte dos reis da dinastia dos Zhu, no século VI antes da nossa era. Diz-se que teve discípulos, mas que não lhes transmitiu o seu verdadeiro ensino. Só no fim da vida (…) é que Lao Zi foi reconhecido como um verdadeiro sábio pelo guarda do Desfiladeiro, encarregado da passagem que separa o mundo do além. Este obrigou Lao Zi a deixar-lhe o seu testamento espiritual: foi o Daode jing.

Para Lao Zi a verdade não se encontra nos preceitos ou nas construções do espírito, mas na vida física. No pensamento tauista, o corpo é dado como o único momento de unidade, o único lugar onde é possível a harmonia dos elementos múltiplos e às vezes opostos que formam o mundo. A sabedoria não pode pois encontrar-se nos discursos, mas na maneira como se trata da saúde própria. Esta preocupação permaneceu mesmo no centro da mentalidade chinesa. O sábio preocupa-se em primeiro lugar com o interior: assumir-se enquanto ser humano consiste em primeiro lugar em pôr em ordem a sua existência, em nada dever aos outros - homens ou deuses. Uma vez realizada esta condição, o resto far-se-á espontaneamente, sem agir nem intervir no mundo.

O tauismo forma um todo, quer do ponto de vista da sua doutrina, quer do das suas instituições. A sua preocupação essencial é a procura da “imortalidade”. Os caminhos para esse domínio do tempo são múltiplos. Para o místico, a união com o Tau encontra-se no termo de exercícios espirituais e fisiológicos: meditação ataráxica que leva ao êxtase, práticas da respiração, ginástica e dietética, alquimia operatória e espiritual, artes da caligrafia e da pintura.

No povo, os “Imortais” são objecto de cultos fervorosos. São as grandes figuras lendárias ou históricas do tauismo, o Velho Mestre, o Mestre Celeste, os espíritos das montanhas sagradas, e toda uma multidão de santos populares, homens e mulheres, cujas lendas maravilhosas alimentam desde sempre o teatro e os romances.

A história oficial ignora, ou quase, o facto tauista (…). Depois de ter conservado uma certa influência na Corte durante o primeiro século da época imperial, o tauismo torna-se vítima do absolutismo do imperador Wu (de 141 a 87 a. C.), que estabelece o confucionismo como ideologia do Estado. Opera-se então uma clivagem profunda que, com variações, irá permanecer constante na história da China: de um lado, o Estado com a sua administração, o país oficial que invoca a tradição “confucionista” (bem afastada do ensino do próprio Confúcio); e, do outro, o país real, as comunidades locais que se exprimem nas estruturas litúrgicas de uma religião não-oficial (…).

O tauismo tornou-se assim a grande religião popular da China. Foi ele que forneceu as suas estruturas litúrgicas (as comunidades, os seus templos e as suas associações, guildas e corporações, o clero, as alianças e peregrinações, a arte religiosa sob todas as suas formas, as lendas e os preceitos morais) às massas da China, tanto nos campos como nas cidades. Sob muitos aspectos, ele encarnou a continuidade da cultura chinesa graças às suas notáveis capacidades de adaptação.

Que se passa actualmente com o tauismo? O tauismo continua omnipresente, mesmo onde os templos e os mosteiros - como acontece hoje em dia no continente chinês - estão em grande parte destruídos. Reimprimiu-se recentemente o Cânone Tauista de 1442, que conta mil e quinhentas obras. Sobretudo, o tauismo continua a ser o guardião de uma moral que tanto estimula a liberdade como a responsabilidade individual.

É (…) por força de um paradoxo que o tauismo é ao mesmo tempo uma das maiores religiões do mundo e a menos bem conhecida. É vítima de uma das taras do mundo moderno: as estatísticas. Por razões que têm que ver com a própria história e com a própria natureza da sociedade chinesa, não é possível, sobretudo relativamente à China moderna, falar de uma Igreja tauista. Os fiéis estão ligados aos cultos dos templos locais, que são fundações laicas, federadas entre si mas independentes (…).
Tudo depende evidentemente da definição que se queira dar do tauismo. Não deveremos contar como tauistas os devotos dos cultos dos santos que, obrigatoriamente, recorrem de tempos a tempos aos serviços de um mestre - tanto comos os praticantes confirmados dos exercícios místicos individuais (…), que, com muita frequência, se organizam em grupos informais em torno de um mestre? Haverá então que admitir que a quase totalidade da população rural e uma boa parte da das cidades são tauistas; isto é, perto de um quarto da humanidade (…).


Todas as citações (em itálico) são da obra “As grandes religiões do mundo”, Kristofer Schipper, Direcção de Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.

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