Alcino Silva
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“quem
entra em Santa Sofia tem a vista imediatamente atraída pela cúpula, imagem da
esfera celeste. A sensação mistura o esmagamento que decorre da finitude humana
e a elevação progressiva do olhar e da alma para o Reino de Deus. Além disso, a
iluminação vem do alto (…). Vinda do cimo, a claridade é ao mesmo tempo um
símbolo da luz celeste e um convite a olhar o Céu.”1
Ao
longo da vida alimentamos fascínios e percorremos caminhos viajantes ao seu
encontro ou na sua procura. Nunca os encontramos de todo, é certo, mas vamos
erguendo construções em torno da sua demanda. Debruçamo-nos sobre a ética, ou
sobre os valores, ou ainda na defesa dos princípios que delimitam as avenidas
da nossa vivência social, ou mesmo dos sentimentos através dos quais se
manifestam os nossos gestos. Quantas vezes, estremecemos face ao fascínio da
beleza, mesmo quando esta se revela nas expressões monumentais que a humanidade
erige. Nalgumas destas, espreitam, a mitologia, o sentido da vida, noutras, o
sagrado e noutras ainda o profano. Por mim, procuro o Deus que os crentes ainda
não encontraram. Dizem escutá-lo, crêem até ler as suas palavras, em desenhos
concebem o seu rosto, veneram-no como se o vissem, mas na verdade, não o topam.
A mim, Georges Duby ensinou que “Deus é luz”2 e desde então
habituei-me a procurar o silêncio no interior das grandes catedrais. Entro,
deixo o olhar aventurar-se em longos passeios pelas paredes, pela abside, pela
cúpula, pelos vitrais e vivo essa solidão no meio dos crentes e deparo com essa
luz que descreveu o eminente historiador francês. Entra a jorros pelas cores
harmoniosas que vivem no interior desses vitrais esplendorosos e visita-me
nessa ternura do pensamento, da razão, da verdade reflectida. Serve de correio
entre o que eu penso e o que a humanidade acumulou em sabedoria e a troca que
gera mais saber, provém dessa luz que chega ao interior dessas catedrais, onde
repouso em reflexão, enquanto os crentes se mortificam, rezando. Sim, é assim
mesmo, os crentes rezam e eu penso. Rezam pelos pecados que cometeram perante o
Deus que acreditam e não encontram, castigam-se a si próprios, esbanjam-se em
promessas que não cumprem e ajoelham-se prosternados. Por mim, dialogo com o Deus
que eles não encontram e que acredito não existir mas que sempre me acha. Que
estranha incompatibilidade esta de encontrar o que sei não existir e de eles
não conseguirem alcançar em quem tanto acreditam. Interrogo-me nesse diálogo
com a luz, essa luz de Deus e regresso às palavras do historiador, «Deus é
luz (…). Luz absoluta. Deus está mais ou menos velado em cada criatura,
consoante ela é mais ou menos refractária à sua iluminação; mas cada criatura o
desvenda à sua medida, pois liberta diante, de quem a observar com amor, a
parte da luz que tem em si.”2 Compreendo melhor agora, cada um
desvenda à sua medida e liberta a parte da luz que tem em si. Sentado, na
imponência interior daquela casa dedicada ao Deus dos crentes, observo-os de
novo e percebo que não podem libertar o que não trazem, o seu pensamento
escurece perante o Deus que imaginam, os olha, mas na verdade não os vê pelo
simples facto de não existir, mas existe na luz que entra em roldões de
claridade e penetra naqueles que o aguardam no interior da nave, os que vêem
mas não rezam. Não os compreendo, oram afanosa e seriamente, concentrados,
rostos martirizados dirigidos a um altar, ao seu Deus crendo que se guarda no
interior de um sacrário e a luz penetra em luminosidade de intensas cores pelos
amplos e límpidos vitrais e procura-me sem cansaço, sem sacrifício e
conversamos na serenidade intemporal do prazer de estar e pensar. A mim, não
autorizam a proximidade do altar, o qual reservam para si, para as empenhadas súplicas
que lhe dedicam em cerimónia colectiva ou em sacrifício pessoal. Mas concedem-me
o espaço da abóbada ou das modelares janelas vitralinas, nas quais o arco-íris
se representa de figuras entre a mitologia e a santificação. “Deus é um
estremecimento das águas, um corpo que irrompe”3, mas os crentes
não sabem, nem reparam. Fixos num lugar escurecido não vêem a luz nem as
palavras que lhes dizem que “Deus borbulha, primitivo, incandescente, um
nome desconhecido, mais semelhante a um sopro pela imprecisão das gramáticas,
um fulgor ilimitado”3. Mas os crentes insistem em não ver o que
encontro eu sem martírios, a luz de Deus, daí que tantas vezes não consigam
distinguir o céu da terra, o mar da praia, o finito do infinito, nem conseguem
mergulhar no sonho da humanidade. Os seus olhos permanecem presos no altar e o
pensamento ocupa-se da oração memorizada, soletrada, cantada até, mas não
conseguem erguer os olhos à procura da luz, razão pela qual, não sabem como
distinguir o dia da noite, esquecendo até a história rabínica que dizia, “Quando,
a meio de uma estrada, olhares um rosto, um rosto qualquer, e o amares tanto
como o rosto do pai, da amada, do amigo mais querido, a noite acabou e o dia
começou”3. É por esta e outras razões que me sento nas catedrais
e deixo que o olhar e o pensamento me escapem à procura da luz que vem do Deus,
que os crentes não encontram, fixos que estão, na sua procura no fundo de um
lugar escuro e denso onde nunca o acharão.
1 – “A
Idade Média no Oriente”, Alain Ducellier, Michel Kaplan, Bernardette
Martin, Publicações D. Quixote, Lisboa, Março de 1994.
2 – “O
Tempo das Catedrais”, Georges Duby, Editorial Estampa, Lisboa, 1979
3 – José
Tolentino de Mendonça, Jornal de Letras, nº 1076, de 28 de Dezembro de
2011 a 10 de Janeiro de 2012.
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