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30/10/07

A DEMOCRACIA REAL

Mário Martins

"A Poesia está na rua"


É tentador fazer um paralelismo entre o que se passa hoje com a democracia com o que se passava, ainda há menos de 20 anos, com o socialismo. Até ao fim, não se cansou o regime soviético de propagandear, perante a dúvida, a crítica ou a denúncia, que o socialismo era o que existia, ao qual não havia alternativa. Estabelecida a equivalência socialismo = socialismo real, a crítica e a denúncia do regime eram coisas de idealistas ingénuos ou propaganda anti-soviética ou anti-comunista do inimigo americano e capitalista. Consequentemente, nada de essencial era preciso mudar e o que importava era continuar a governar com mão de ferro. Sabe-se o que foi e no que deu. Apenas acrescentarei que o lado negro do regime não autoriza o seu branqueamento ou absolvição com base nas realizações positivas que produziu.

Os regimes democráticos, a começar pelo americano, são mais subtis. Dada a sua provada superioridade face a regimes totalitários ou ditatoriais não precisam de propagandear que a democracia só pode ser a que existe e de estabelecer a respectiva equivalência democracia = democracia real. Mas a mensagem, implícita, é essa quando propagandeiam as virtudes da democracia. E no entanto só não vê os graves defeitos da democracia real quem não quer ver: os partidos políticos que realmente disputam o poder são instituições onde grassam o carreirismo e o oportunismo no lugar de uma cultura de responsabilidade e respeito pela coisa pública; a liberdade de informação é condicionada pela sujeição dos principais meios ao partido do governo ou ao interesse de grupos económicos; a liberdade de voto é condicionada pelo atraso cultural e educativo e por campanhas de intoxicação política; o poder económico-financeiro dita as suas próprias leis; a riqueza e a pobreza são, em muitos casos, igualmente ostensivas.

A enorme distância entre a realidade destes dois regimes ou sistemas sociais e os ideais que lhes estão associados (no socialista ou comunista “o fim da exploração do homem pelo homem”, no democrático “a liberdade e o poder soberano do povo”), demonstra que não é seguro decidir a nossa adesão em função do seu ideário, mas sim com base na forma concreta como neles se viveu ou vive e, sobretudo, no modo como organizam a nossa vida social.

A experiência mostra a sedução que o perfume do poder, a todos os níveis, exerce nos homens. O nosso comportamento padece de uma evidente tendência dominadora a que não escapam os mais puros idealistas. Os corredores mais sentimentais que físicos do poder operam um corte com a realidade tanto mais profundo quanto maiores forem o âmbito e o grau desse poder. É por isso que o papel institucional da oposição é importante apesar de, tantas vezes, demagógico e que os requisitos centrais que um regime político ou sistema social devem satisfazer são o de divisão e mobilidade orgânicas do poder e o de garantir condições de liberdade política que nos protejam de nós próprios. Este é, parece-me, o melhor palco para essa luta sem fim pela aplicação do princípio de justiça que é imanente ao conceito de igualdade natural entre os seres humanos.


1 comentário:

Anónimo disse...

Este texto trouxe-me á memoria este poema...

Intelectuais apolíticos
Otto Rene Castillo [autor guatemalteco]


Um dia, os intelectuais apolíticos do meu país
serão interrogados pelo homem simples do nosso povo

Serão perguntados sobre o que fizeram quando a pátria se apagava lentamente,
como uma fogueira frágil, pequena e só.
Não serão interrogados sobre os seus trajes,
nem acerca das suas longas sestas após o almoço,
tão pouco sobre os seus estéreis combates com o nada,
nem sobre sua ontológica maneira de chegar às moedas.
Ninguém os interrogará acerca da mitologia grega,
nem sobre o asco que sentiram de si, quando alguém, no seu fundo,
dispunha-se a morrer covardemente.
Ninguém lhes perguntará sobre suas justificações absurdas,
crescidas à sombra de uma mentira rotunda.
Nesse dia virão os homens simples.
Os que nunca couberam nos livros e versos
dos intelectuais apolíticos,
mas que vinham todos os dias trazer-lhes o leite e o pão,
os ovos e as tortilhas, os que costuravam a roupa,
os que manejavam os carros, cuidavam dos seus cães e jardins,
e para eles trabalhavam, e perguntarão,
"Que fizestes quando os pobres sofriam e neles se queimava,
gravemente, a ternura e a vida?"
Intelectuais apolíticos do meu doce país, nada podereis responder.
Um abutre de silêncio vos devorará as entranhas.
Vos roerá a alma vossa própria miséria.
E calareis, envergonhados de vós próprios.

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