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30/10/07

BASTARDOS

Alcino Silva

Letra de "Os Vampiros" de Zeca Afonso


De quando em quando, em momentos que o rebanho incrédulo parece tresmalhar-se o poder, ou dito de forma mais inteligível, os senhores que através dele se governam, fazem soar o toque plangente do campanário como se uma desgraça pairasse sobre o povoado. Ouvem então longos sermões sobre a democracia, do aproximar o povo do seu exercício, do seu aprofundamento, da necessidade de convívio entre a massa anónima e as paredes onde se pratica a actividade da decisão. Algum tempo passado e esta vontade indómita amaina e tudo retoma a melancolia dos fins de tarde outonais.

A democracia deveria ser um processo evolutivo e em permanente construção, mas aqueles que se apoderaram das suas instituições e a moldaram ao sabor dos seus interesses dizem que não. Afirmam antes que é a perfeição das imperfeições. A partir daqui, tudo o resto, é terra queimada e ponto final.

Nestes diálogos sobre democracia ocorre-me sempre Gabriel Garcia Marquez quando nos conta que tempos houve na Colômbia em que o que distinguia o Partido Liberal do Conservador, que se eternizaram no poder até hoje, é que os liberais iam à missa das cinco para não os verem e os conservadores à das oito para pensarem que eram crentes. Esta lembrança não é tanto pelo cinismo da farsa, mas sobretudo, pela terrível verdade que encerra.

Aquela parte do planeta a que sobranceiramente denominamos de Ocidente é esse espaço o desenvolvimento humano assistiu em primeira plateia ao douramento da burguesia. Primeiro no lombo da nobreza e de seguida, de velas enfunadas, senhora dos mares, nunca antes navegados como ridiculamente afirmam, e que de tanto repetirem, assumem como verdade indesmentível. Não se pense que com esse delírio, chegou de imediato a democracia tal como a dispomos hoje. Não, essa gesta parlamentar conviveu décadas e décadas com o, esclavagismo, a servidão, o colonialismo e todas as formas de discriminação que se conhecem. Ainda hoje, gente bem democrática, invade impunemente países e detêm povos inteiros em enormes campos de concentração. E não fosse a chegada ao poder das instituições, dos malditos que povoam o mundo do trabalho e conversados estaríamos sobre o que seriam hoje os tais Estados democráticos. Do bom e do mau que foi essa experiência humana havemos de conversar num outro espaço.

Mas esta democracia que por aí se instalou, quando aprofundada, não passa de uma ditadura onde quem dirige a orquestra é um único partido bicéfalo. Uma espécie de águia czarina, em que duas cabeças, olhando em direcções opostas, como se não se pudessem ver, alimentam o mesmo corpo. É assim em qualquer um dos países que conhecemos, pese embora as cores com que pintam as máscaras. Ora, são laranjas e rosas, laranjas e negros, negros e rosas, isto e aquilo, o resultado é o mesmo, um corpo e duas cabeças. Por vezes, aparecem em redor pequenas cabeças semeadas pelo corpo da águia. Como tantas coisas na vida, a política também tem os seus homúnculos, mas a essência da questão não se altera. Não se pense que a decisão se encontra na cabeça da ave, pois este animal disforme, tem o cérebro dirigido pelo estômago. Massa encefálica distorcida por interesses há longo tempo semeados, funciona ao sabor de marés que sobem e descem num plano interno e não visível.

Esta ditadura, dita democracia, como qualquer festa pagã, também tem o seu fogo de artifício. São o que chama, os pequenos partidos, os quais como girândolas coloridas, volteiam alguns minutos antes de acabarem em meras faúlhas derretidas pelo vento. Todas as festas têm o seu folclore. Dão cor, animam o festejo, alegram a alma e desaparecem com o desmontar dos enfeites. Vão e vêm com os cenários. Alguns teimam em cantar no intervalo, mas a democracia reserva-lhes o espaço donde os sons da música não cheguem aos corredores do palácio.

Acontece que mesmo esta farsa sofre desequilíbrios. Entusiasmado, por vezes, o corpo da cabeça bicéfala age sem freio e reclama do cérebro a posse de todo o repasto. Que o diga o rapaz com nome de filósofo e voz de música da antena 3. A sensação já longamente escutada, do mundo sou eu, percebem-na os malditos nessa façanha quotidiana de sobreviver.

Autómato dirigido à distância, comanda um concílio de aventureiros que têm por objectivo final, colocar o Estado de joelhos perante os interesses antropófagos dos senhores do dinheiro, hoje mais virtual do que real. Dia-a-dia, desmantelam o Serviço Nacional de Saúde, privatizam as instituições estatais, despovoam o interior, vendem à peça o tecido produtivo que ainda resta, reduzem o emprego a acasos da vida, criam um monstruoso abismo entre os que detêm a riqueza e os que a produzem e lançam o país num destino sem futuro, sentados em cima duma população anestesiada cuja vértices culturais são visíveis nos 50% de iliteracia e num espantoso abandono escolar. Já foram laicos, republicanos e socialistas, hoje, até os mais sérios concordam, que não passam de uma massa amorfa dançando a música que provém dos subterrâneos de poderes invisíveis. Chamei-lhes aventureiros, mas não passam de canalha política. Nas palavras do poeta galego Carlos Oroza, não os odeio, apenas me enojam.

Chamam-lhe democracia. Por mim, podem chamar-lhe o que quiserem que o resultado há-de ser o mesmo, simbolizado nas palavras cantadas do José Afonso.


são os mordomos do universo todo
senhores à força, mandadores sem lei
enchem as tulhas, bebem vinho novo
dançam a ronda no pinhal do rei.



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