StatCounter

View My Stats

01/05/23

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva







As estradas unem distâncias, lugares, culturas, estendem-se por territórios quantas vezes infindáveis. Existem como necessidade imperiosa desde que o uso da roda permitiu a construção do primeiro veículo revocado pela força cavalar. Com o aparecimento do automóvel, cresceram, alargaram, tornaram-se mais sólidas. No nosso século XX vivido maioritariamente nos anos de chumbo, o tempo imobilizou-se, tal como as estradas que não saíram do seu traçado medieval. Quase havia mais peregrinações na estrada do que automóveis e as regras eram simples. As estradas estruturantes receberam a numeração de 1 a 99 e eram prioritárias sobre as restantes. As secundárias contavam-se de 100 a 299 e tinham prioridade sobre as subalternas, as 300 e as 400 e todas as restantes que se seguiam que já não eram muitas. Assim sendo, esta N222 que me leva os passos era secundária, o que se compreende. Que importância, tinham concelhos como Resende ou S. João da Pesqueira e todos os seus irmãos da margem esquerda do Douro, no seu isolamento histórico, geográfico, económico e social para um regime que só conhecia a capital do Tejo senhora de um império e onde os biltres do regime pontuavam? Quando a democracia amanheceu, surgiram os primeiros projectos e estas estradas tão sedutoras como perigosas viram aparecer variantes, como esta que se me depara logo à saída de Avintes. Porém, procuro as velhinhas rotas, as iniciais, as que nos levavam na infância e na adolescência e entro pela Rua Central do Olival agora toda industrializada. Mas não vou longe, desvio em direcção ao rio, ao pequeno lugar de Arnelas, pendurado em socalcos escorregadios sobre o Douro, vielas estreitas e ruas que podemos amparar com os braços estendidos. Ali está sossegado este espaço em frente a Zebreiros, com a sua praia e protegido pela capela de S. Mateus. Apetece ficar nesta quietude com a corrente mansa, mas o destino ainda está longe e regressamos à nossa estrada. O traçado é bom, suave e melhorado, mas por poucos quilómetros. Quando chega a velhinha estrada, estreita, sem passeios e sem bermas, não resistimos a novo desvio. É a atracção do rio e dos lugares que parecem pendurados sobre a água. Descemos, descemos até Crestuma. Menos isolamento, maior altitude, mas de novo, a igreja protectora das gentes no seu centro elevado. Estas fugas têm o condão da descida e o labor da subida, mas são parte dos arredores desta Nacional. Reparo agora nos marcos da margem da estrada, Km 11, um pouco adiante informam-nos que estamos a 44 kms de Castelo de Paiva e após o campo dos famosos Dragões Sandinenses a informação é do Km 14. Parece que estamos no mesmo lugar, quase não se nota o movimento. Logo após novo desvio, agora para a direita, seduzidos pela indicação sobre fundo castanho de “Mosteiro”. Quando chegamos não é a pedra vetusta que encontramos, mas paredes brancas, lisas e lavadas. O interior é singelo e luminoso, mas onde está o mosteiro beneditino fundado no século XI que desejávamos ir encontrar? O Mosteiro de Salvador de Vila Cova de Sandim tornou-se feminino no século XII e as monjas no século XVI foram transferidas para o Mosteiro de São Bento da Avé-Maria que acabou no bonito átrio da Estação de São Bento. Um pórtico manuelino deste convento, encontra-se no cemitério do Prado de Repouso. Regressados ao nosso caminho, passamos o km 18 e logo de seguida encontramos a N223, cruzamos a A32 e vamos em direcção à Rota do Românico. Pouco depois, mudamos o rumo de novo em direcção ao rio. Procuramos outro lugar desses que não vemos. Estamos no distrito de Aveiro que aqui alcança o Douro numa extensão de dois quilómetros e meio. É nessa faixa que encontramos Porto Carvoeiro. De novo, gostávamos de ficar, sentarmo-nos e deixar o olhar perder-se no tempo que por ali corre com suavidade. Subimos à procura da N222 que deixamos, atravessamos o Inha, um desses afluentes menores do Douro que não vêm na história e do miradouro de Labercos apreciamos este Douro num dos seus cotovelos mais salientes. Novo desvio retira-nos ainda uma vez mais da nossa estrada para satisfazer um desejo antigo, visitar a Lomba, esse território de Gondomar preso na margem esquerda, numa língua de terra prolongada, um dedo estendido como em Tourém. Percorro os cerca de cinco quilómetros até à sua praia, onde o Douro desenha um U, belo e deslizante, bonito de se ver quando viajamos na N108. O cansaço começa a dar sinais de impaciência e sentados na areia como se estivéssemos para ficar acode-nos à memória aquele canto do Pedro Barroso que nos diz, “pus-me à noite a ouvir o mar, sentado na pedra, sentado na areia, e vi uma barcarola chegar devagar, nesta melodia” e ocorreu-nos pensar que a vida é como o curso de um rio. Brota pequenina de uma nascente que escorre pela pedra da montanha e vai deslizando, encontrando outras águas e crescendo. Ao longo do percurso encontra pessoas como lugares, aldeias, cidades. Em algumas detém-se, alarga as suas águas e deixa-se ficar. Noutras é mais breve. Em momentos do seu caminho, poucos, por vezes, únicos, encontra um lugar de onde não deseja sair, cidades com beleza acrescida, deslumbrante. Nesses espaços, o seu curso entra por entre as avenidas, o murmurar do lugar, os seus espaços verdes, dá voltas, rodopia, como quem não deseja continuar, quer ficar por ali. Mas como o rio, a corrente da vida prossegue, novas águas, substituem as antigas e assim parece que não saem do lugar. Por fim, encontra o mar e entrega as suas águas doces no sal marítimo do oceano. Amanhã regressamos à N222. 

Sem comentários:

View My Stats