01/12/19
NO CORRER DOS DIAS
Marques da Silva
Outubro. Soube sempre que nos haveríamos de voltar a encontrar. Era uma certeza que advinha da minha vontade e da ideia que construí ao longo dos anos de que o nosso reencontro seria inevitável. Como poderia não encontrar a pessoa que tantos ensinamentos me deixara. Quando as unidades de elite do Exército Árabe Sírio transportadas por helicópteros russos se deslocaram para Al-Qamishli, não hesitei um momento e segui viagem para a pequena cidade onde te poderia reviver. Tudo está agora muito diferente daquele tempo que um acaso nos fez cruzar os nossos destinos. Tinha atravessado o deserto e pretendia seguir para a Báctria. Tu vinhas da Pérsia pelo Lago Van e atravessaste as montanhas curdas, mas sem destino planeado. Talvez por isso, ficaste vários dias neste lugar próximo da fronteira turca e essa foi a casualidade que fez coincidir os nossos dias em Al-Qamishli. Ao segundo dia, já me levavas pela estrada do aeroporto, não o de hoje, mas aquela pequena pista de areia que se estendia plana. Seguia-te com naturalidade. Atrás das tuas palavras, os meus passos seguiam os teus. Levavas-me a espreitar o deserto, ao fim da tarde quando o sol declinava para os lados de Alepo. Tudo em ti era beleza, dos pensamentos às reflexões, as leituras que fazias da vida, dos acontecimentos, das acções humanas, com a serenidade de quem sabia o que estava para acontecer. Ensinaste-me a escutar o som do silêncio na brisa que arrastava a areia quase de forma imperceptível. E na melodia que se desenhava as tuas palavras tranquilas mostravam-me os factos que se acumulavam na Europa como nuvens negras anunciadoras da tempestade que desabaria sobre a humanidade. Como tinhas razão, como eram tão claros os sinais. Que pena teres morrido dez anos antes de eu nascer. Agora quando volto a percorrer a estrada que dia após dia nos levava até ao deserto, eu embebido pela tua sabedoria e cultura, tu com o desejo de falar com a ideia que alguém te pudesse escutar e conseguisse travar a loucura que vias como um adamastor, e ao lembrar o que então dizias, vejo de novo os mesmos vestígios, os mesmos rastos, a mesma intolerância, os fachos voltam a acender-se pela Europa, as hordas marcham de novo com os seus cânticos, a sua violência, a sua ameaça de mergulhar na escuridão a vida dos povos, e de novo, a complacência dos poderes constituídos, da ordem estabelecida, do sistema instalado. Encerro os olhos e nem a música trazida pelas areias em viagem acalmam o meu temor e a desilusão estende-se infindável na noite que chega.
Novembro. Era uma noite de tempestade. Via a brancura da neve a cair com intensidade na janela que estava atrás de ti. Não te apercebias. O teu rosto tenso relatava com amargura aqueles dias da década de sessenta, dias de combate pela liberdade, pela dignidade, pela justiça. As lágrimas correram pelas tuas faces quando com uma tristeza arrasadora relatavas como os mineiros resistiam nas ruas de El Alto ao avanço dos canalhas montados nos seus carros de combate. «os mineiros deitaram-se no chão para deter a marcha daquela horda, mas continuaram como se os homens fossem bonecos e os mortos acumularam-se após a sua passagem», dizias tu numa comoção sufocada enquanto os teus dedos entrelaçavam um fio imaginário. Tantos anos depois, Eliana, recordo o teu rosto indígena, o teu relato. Não sei onde estarás ou se ainda existes, mas em El Alto, de novo, os bolivianos ocupam as ruas, barram o caminho à bestialidade dos biltres que de novo assumiram o poder, como só eles sabem fazer, pela infâmia, manipulação e violência. A história repete-se, com os seus rios de sangue, os seus cemitérios inundados. De novo voltam a morrer os pobres e os marginalizados enquanto à volta o sistema garante que tudo vai bem.
Michele Bachelet foi por duas vezes presidente do Chile. Em ambos os mandatos, não foi capaz de honrar verdadeiramente, nem a memória do seu pai – brigadeiro-general Alberto Bachelet, preso, torturado e morto pelos energúmenos sediciosos que acompanharam o monte de esterco humano que deu pelo nome de Augusto Pinochet -, nem a do Partido Socialista de Salvador Allende. Em ambos os mandatos, governou com a Constituição deixada pelo ditador e que agora o povo chileno exigiu na rua o seu fim. Como Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, soube falar grosso quando se tratou da Venezuela, mas rastejou quando teve de falar sobre o Chile, a Bolívia, o Equador e até mesmo da Índia a propósito de Cachemira.
A cada vinte anos, a elite que domina o poder, económico, financeiro e político dos EUA monta um carnaval com a intenção de destituir o presidente de turno. É uma espécie de ópera bufa em que os actores são acusados e acusadores e transmitem o espectáculo pela televisão para a plateia assistir. Quando termina a peça, continua tudo na mesma com os mandantes de sempre. Chama-se a isto, democracia e há gente muito respeitável que tece grandes comentários e bate palmas.
A América Latina pariu o segundo presidente auto-proclamado. A rapariga, Jeanine Áñez de sua graça, não teve mãos a medir. Começou por se auto-proclamar presidente do Senado e acto contínuo, presidente da república. O que se estranha é que o inefável Augusto Santos Silva não tenha dado acordo de si a reconhecer de imediato a personagem.
CRONICANDO
Manuel Joaquim
A convite do Tenente-General Vice-Chefe do Estado Maior do Exército, do Major-General da Direcção de História Militar e do Coronel Director do Museu Militar do Porto, realizou-se uma conferência no Museu Militar, no passado dia 25 de Novembro, sobre o tema “O Norte e o 25 de Novembro” que teve o Doutor Adriano da Fonseca Rodrigues e o Coronel José Manuel da Glória Belchior como oradores. O local estava cheio de assistentes, a maior parte militares e ex-militares, muitos das associações de combatentes e de ex-comandos.
A visão muito parcial e deturpada dos acontecimentos, os manifestos preconceitos ideológicos levam-me a constatar que continua a existir uma forte presença de grupos sociais arreigados a valores do antes do 25 de Abril e que exercem influências muito grandes a muitos níveis da sociedade, na comunicação social e nos diversos órgãos de soberania.
O Presidente da República tem às suas ordens e ao seu lado toda a comunicação social. A toda a hora entra nas casas das pessoas falando de tudo. É ele que vem dizer que vai ser preciso meter mais mil milhões no novo banco, que vai ser preciso apoiar a comunicação social, que o orçamento de Estado é positivo e que o salário mínimo aprovado pelo governo está bem. Hoje foi mostrado no Pingo Doce, a escolher esparguete italiano e a mostrar que gastou oitenta e tal euros nas compras para a campanha de recolha de bens alimentares, dizendo que queria factura com o número de contribuinte se não era notícia para o Correio da Manhã. Não sei que papel de muleta ele faz para o governo, se negra, se de outra cor. O Rangel, que esteve na televisão, um dia disse que era capaz de fazer um presidente de um toco de vassoura. O antigo fazedor de factos políticos já o é.
No mesmo caminho vai um partido político que já existe há cerca de seis anos mas que praticamente ninguém deu pela sua existência durante esse tempo. Agora, primeiras páginas de jornais e prime-time das televisões, comentadores de todos os cantos, aparecem a fazer comentários sobre a deputada desse partido na Assembleia da República. Nas entrelinhas da escrita e das palavras denotam-se preconceitos doentios que pretendem condicionar a opinião pública, justificando o afastamento de quem lhes serviu de pau-de-cabeleira, para aparecerem na ribalta os seus verdadeiros mentores, pessoas importantes da área do poder político e não só, e o próprio partido.
Questões fundamentais para os portugueses não são dadas a conhecer. Na 3ª Comissão da ONU, 121 países aprovaram a moção “Combatendo a glorificação do nazismo, do neonazismo e outras práticas que contribuem para alimentar as formas actuais de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância relacionada”. Votaram contra EUA e Ucrânia. Os países da EU, incluindo Portugal, abstiveram-se. O ministro da Defesa anuncia um aumento muito significativo de investimento em equipamento militar ao longo dos próximos anos. A nível do governo há desacatos por não haver dinheiro para a saúde, educação, salários, etc., mas para os militares e Nato não se discute, gasta-se.
A personagem, que dá por ministro, que mandou militares armados para a Venezuela para depor o governo de lá, ainda não disse nada sobre a Bolívia, a Colômbia, o Chile. Certamente ainda não recebeu instruções externas para o fazer.
Há políticos que se deixam embebedar pelo poder e pelos círculos que frequentam. Desconhecem as realidades que muitas das vezes não coincidem com os seus desejos. A roda da História trituram-nos. Arrastam sociedades inteiras para o desastre como aconteceu no século passado. Esperemos que não venha a acontecer nos próximos tempos.
A IDEIA DA INSPIRAÇÃO
António Mesquita
"Nada é mais difícil de entrar no espírito das pessoas, e mesmo no da crítica, do que esta incompetência do autor a respeito da sua obra, uma vez produzida."
(Paul Valéry in "Introduction à la méthode de Léonard de Vinci")
Numa entrevista de há dois anos, José Mário Branco dava expressão a esta ideia, quando dizia que as suas criações passavam através dele, como se fosse o cosmos o verdadeiro autor e que, uma vez produzidas, não lhe pertenciam e ele não poderia impedir que se transformassem em qualquer outra coisa à sua revelia. As suas canções do "processo revolucionário em curso" poderiam até tornar-se num hino nazi...
A opinião de que um autor é a maior autoridade sobre a sua obra, que é o único responsável pelas ideias que lhe ocorrem e pelo seu desenvolvimento e conclusão é cativa, de facto, duma ideologia que poderíamos chamar de individualismo vulgar.
É a mesma distorção que está presente na concepção do homem como, por essência, político. Como diz Hannah Arendt: "(...) Simplesmente, não é assim: o 'homem' é apolítico. A política emerge 'entre homens', e, portanto, claramente no 'exterior do homem'. Não há, portanto, substância política real." ("A Condição Humana")
É na pluralidade, em sociedade, com todas as modalidades do tempo, que a política faz sentido. Não é concebível no indivíduo isolado.
Também a criação literária e artística não é real como produto de um 'criador' enquanto indivíduo. Essa produção é inconcebível sem a linguagem e os símbolos que não lhe pertencem, que emergem num mundo que ultrapassa a duração do indivíduo e entre espíritos de todos os tempos. Recorrer à ideia de inspiração, é isso que quer dizer, não é verdade?
Mesmo no caso dum artista que ostensivamente rompe com a tradição, é óbvio que sem essa tradição não lhe seria possível sequer pensar a ruptura. É o que diz Arendt a propósito daqueles que decidem ignorar a tradição sem poder escapar-lhe.
Tudo isto releva da questão do sujeito no pensamento ocidental, desde Platão. Somos deuses como pretendem alguns laicos na esteira do antigo paganismo? Somos, para além de qualquer possibilidade de demonstração, encarnações do Cosmos?
Seja como for, as ambiguidades da nossa natureza e do nosso destino são-nos essenciais. Se pensarmos que o discurso racional é o que nos distingue e o nosso principal atributo, devemos atentar nas palavras de Paul Valéry: "Não há, certamente, nada em si mais mórbido, nada de mais inimigo da natureza, do "que ver as coisas como elas são." Uma clareza fria e perfeita é um veneno impossível de combater."
É preciso um poeta lembrar-nos de que existem males racionais. Basta perder-se o sentido da proporção e da beleza para incorrermos nas maiores calamidades.
É esse sentido, afinal de contas, que impede o verdadeiro autor de reivindicar o pleno domínio da sua obra, como qualquer artesão o pode fazer do artefacto que sai das suas mãos.
PERIGO À VISTA
Mário Martins
https://www.google.com/search?q=partido+chega |
“Daqui a oito anos seremos o maior partido de Portugal”
André Ventura, líder do Chega
No jornal Expresso de 19 de Outubro passado, Francisco Louçã aconselhava que não se leve a sério o novel deputado André Ventura, líder do partido “Chega”, antes o tratemos como, há muitos anos, a poetisa Natália Correia tratou o colega parlamentar João Morgado, ridicularizando com o célebre poema do “truca-truca”* a sua posição de defesa das relações sexuais exclusivamente para fins de procriação, no quadro da discussão do aborto. A ideia, compreensível, de Louçã, é não fazer o jogo do “emproado carreirista”, dando-lhe importância e publicidade desproporcionadas.
No entanto, se Morgado estava sozinho na sua peregrina cruzada, não é o caso de Ventura, que, em entrevista ao jornal Público, apesar de negar ter recebido financiamento de movimentos ligados a Steve Bannon (ideólogo populista americano) ou a Jair Bolsonaro, reconhece ligações a partidos populistas, se não de extrema-direita, como o espanhol Vox, que recentemente teve uma espectacular subida eleitoral, a Liga italiana e os partidos dos governos “musculados” dos países do Grupo de Visegrado, como a Hungria e a Polónia. E o seu discurso “anti-sistema” fará as delícias dos órgãos de comunicação, sempre ávidos de novidade e escândalo, a bem do negócio. Ventura sabe que quanto mais básico, radical e escandaloso for, maior publicidade e “alertas CM” terá.
O populismo, entretanto, está a ser estudado. Duas semanas antes da edição do jornal Expresso, em que Louçã dava a táctica política para lidar com Ventura, podíamos ler, na revista do mesmo jornal, um excelente artigo sobre o populismo, da autoria de Lourenço Pereira Coutinho, doutorado em História Institucional e Política Contemporânea. Nele, define-se que “populismo e populista são conceitos que partilham uma retórica demagógica, uma visão maniqueísta da sociedade, uma lógica de confronto e, sobretudo, o apelo directo às massas”. Não custa imaginar que Ventura, que ambicionará ser o Salvini português, e o Chega vão seguir esta receita para tentarem atingir o objectivo proclamado de serem o maior partido em duas legislaturas. Para já, e visando seduzir o eleitorado moderado, Ventura diz, na entrevista ao jornal Público, que não gosta de ser intitulado de extrema-direita e afirma defender a democracia liberal.
A ascensão deste partido populista só poderá ser travada de duas maneiras: com uma governação que transmita o sentimento de resolução dos problemas e de diminuição da corrupção e das injustiças, e com uma recuperação da direita institucional. Sobretudo se esta última falhar, o Chega estará nas suas “sete quintas”.
Ventura não aparenta ter convicções políticas sinceras, mas, se as tiver, tanto pior. Salazar foi, indubitavelmente, um político de convicções…
*Truca-Truca
Já que o coito – diz Morgado –
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou – parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o órgão – diz o ditado –
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.
01/11/19
O POVO E A MULTIDÃO
António Mesquita
"Levar uma multidão a pensar é quase tão impossível como levá-la a praticar uma acção inútil - ela está destinada a agir por necessidade, e a sua razão é apenas impulso do inevitável. Mas um povo pode ser apto para se renovar, enquanto que a multidão é apenas apta para sobreviver. Um deve sobrepor-se à outra; a obra dum povo não pode ser considerada acessível a uma multidão."
"Embaixada a Calígula" (Agustina Bessa Luís)
Será que esta moral ficou desactualizada pelas redes sociais e os telemóveis?
Dos tumultos em Hong Kong e das manifestações de massa em Barcelona pode dizer-se que são regidos pela necessidade ou pela lei da sobrevivência? Há aqui algum "impulso do inevitável" ou são antes actos colectivos combinados e deliberados que parecem prescindir duma vanguarda, revolucionária?
Trata-se de movimentos "infiltrados" por organizações oportunistas com os seus fins próprios, como dizem as autoridades da China ou de Espanha, ou antes, serão ambos tropismos duma multidão encandeada por uma ideia de justiça ou uma "fúria de viver", nascidas no pequeno écrã de cada manifestante e que tem uma capacidade inédita de resposta, no terreno, à acção do Estado?
O fenómeno das redes sociais baralha todas as referências. Ele é em si mesmo um princípio de organização muito mais eficaz do que um jornal ou um panfleto, e até a palavra rede evoca o papel político das redes clandestinas.
A comunicação moderna permite ao indivíduo ter a sensação de participar num acto espontâneo com "feedback" imediato de muitos outros, de estar a "fazer história", ou simplesmente a "curtir" o espectáculo da violência.
Alguns observadores falam numa ausência de causa e, nalguns, a "procura da adrenalina" e do perigo excitante, mais do que uma ideia política, qualquer que ela seja, o que vem ao encontro duma corrente actual de "apoliticismo" ou mesmo de abominação da política, sentimento que sem ser exclusivo dos nossos tempos se encontra exacerbado pela volatilidade dos novos meios de comunicação e da perda de credibilidade da missão informativa.
O cinema, com "Fúria de viver" (Rebel without a cause), de Nicholas Ray, de 1958, fez eco duma rebelião da juventude americana que parecia não ter causa nem objectivo. O adolescente representado por James Dean não se conhece a si próprio, não sabe o que quer e é infeliz por isso.
Não é o caso do filme de Tod Philips que conquistou o festival de Veneza deste ano e que tem sido um êxito de bilheteira, apesar de ser uma obra deprimente, penosa de ver e a raiar o niilismo. Alguns filiam-no na tradição de "Taxi driver", o filme de 1976 de Martin Scorcese que acaba numa explosão de violência estética (muito por mérito da música de Bernard Herrmann). A personagem de Joaquin Phoenix que "nunca teve um dia feliz na sua vida," também encontra uma saída violenta para a sua esquizofrenia, mas aqui há um outro sentido de oportunidade, dado o momento que se vive na cultura mediática, que carrega o desfecho desta história com uma simbologia aterradora, de fim do mundo, que explicará o sucesso do filme junto duma juventude que tem na crise climática um paralelo com a Gotham crepuscular de Tod Philips. No meio do caos provocado por uma interminável greve do lixo, a juventude desta Nova Iorque da banda desenhada parece rebelar-se contra tudo e todos replicando, euforicamente, a violência de Joker, o palhaço assassino que mata e ri.
Daí que o interesse deste filme seja ainda mais sociológico do que cinematográfico. Todd Philips mostra-nos a máscara dos tempos que correm. O seu exagero vem, talvez, do facto de na origem estar uma história aos quadradinhos.
O final faz-nos pensar também na espécie de cura pelo caos que eram as festas dionisíacas da Antiga Grécia. E não será que a sociedade moderna está a revelar na violência que vemos aqui e ali, um pouco por todo o lado, que não pode passar sem o histerismo colectivo, como o que se vê nalgumas claques desportivas, como exutório para as suas contradições sociais?
De qualquer modo, isso viria dar razão a Agustina.
AS MULHERES DE LEONARDO
Mário Martins
Pode parecer paradoxal que um homem que preferia amantes masculinos pintasse, sobretudo, mulheres. Para a autora, a pintura de Leonardo é feminina, o que será explicável pela veneração que tinha pelas mulheres, naturais portadoras da função essencial de renovação humana, numa Florença do último quartel de quatrocentos, que perseguia os homossexuais e confinava as mulheres ao exíguo espaço caseiro.
A República de Florença, estreita, barulhenta e malcheirosa, em que uma escassa minoria de ricos se tornara mais rica e os pobres mais pobres, é então uma metrópole da finança e dos têxteis, governada por um clã de banqueiros, os Médicis.
Num gesto artístico revolucionário como, dois mil anos antes, fora a descoberta do escorço, esse atrevimento dos artistas gregos de pintar um pé tal como é visto de frente, foi Leonardo quem, pela primeira vez, voltou para o observador as mulheres que retratava, elas que eram sempre, na pintura italiana, representadas de perfil e com uma aparência casta, sem voz e intelecto. O retrato da poetisa florentina Ginevra de Benci, https://www.leonardodavinci.net/portrait-of-ginevra-de-benci.jsp, é a primeira obra-chave de Leonardo. Nele, ela mostra-se a quem a observa, não esconde o seu ar melancólico de mulher casada alvo de um amor impossível de um diplomata veneziano, igualmente comprometido, que encomenda a obra. “É o primeiro retrato psicológico até então feito e o começo de uma arte nova, tocante e cheia de vida”.
Mais tarde, já em Milão, pinta o retrato da adolescente Cecília Gallerani, https://www.leonardodavinci.net/lady-with-an-ermine.jsp, amante do autocrata Ludovico Sforza, por encomenda deste, a quem Leonardo oferecera as suas ideias de engenharia militar. No retrato, a adolescente e o arminho, ou doninha, estão em movimento, a olhar na mesma direcção, para fora do quadro. É a segunda obra-chave do artista.
É no seu regresso a Florença, quase a fazer 50 anos, que Leonardo encontra a mulher, Lisa del Giocondo, que, possivelmente e no seu começo, dará lugar à pintura em tela mais conhecida de todo o Ocidente: La Gioconda ou Mona Lisa, https://www.leonardodavinci.net/the-mona-lisa.jsp, a terceira obra-chave do Mestre de Vinci. Lisa é casada e já mãe de quatro filhos, e Leonardo representa-a com um vestido de gaze transparente que era usado pelas mulheres grávidas. É uma pintura que demorará vários anos a acabar e que o acompanhará até à morte: “Dos cantos dos olhos escuros, a mulher fita o seu observador, amável, sabedora, tão profundo e tão confiante é o seu olhar. Sorri suavemente pelo canto esquerdo da boca. Corresponde ao nome: giocondo significa jocunda, alegre, consoladora.”
Leonardo pintou igualmente, várias vezes, Maria, mãe de Jesus, o Filho de Deus na mitologia cristã, mas contrariamente à tradição pictórica, no quadro da Anunciação, https://www.leonardodavinci.net/the-annunciation.jsp, ele não curva Maria perante o Anjo que lhe anuncia que ela vai ser a Mãe do Filho de Deus; é o Anjo que se ajoelha perante ela, senhora de si.
O mestre da técnica do sombreado, o sfumato, viveria os dois últimos anos em França, sob a protecção do rei Francisco I, onde acabaria por morrer há exactamente 500 anos, legando ao mundo uma obra que o juízo do tempo, justamente, consagrou.
NO CORRER DOS DIAS
Marques da Silva
Há momentos da vida em que as palavras se esgotam. Resta-nos o silêncio como refúgio da violência e das injustiças do mundo. Na ausência das palavras, recorro a um poema cantado, para homenagear a coragem e a dignidade do povo da Catalunha:
e um mapa, que mostra um Estado cujo poder está nas mãos de criminosos de guerra. Um mapa da infâmia que dá pelo nome de Israel:
O CONTO DO VIGÁRIO
Manuel Joaquim
O Professor Pinto da Costa, no último programa da manhã da RTP, Praça da Alegria, onde participou, falou, entre outras coisas, de “Burlas a idosos”, tema muito antigo, mas muito actual. Lembra-me de quando era menino, meu Pai contar de pessoas vindas de longe, chegarem nos comboios, na estação de S. Bento, serem abordadas por burlões para comprarem um vigésimo (cautela) premiado. Outras eram abordadas para comprarem eléctricos. Os jornais da época noticiavam muitos destes acontecimentos.
https://olhares.sapo.pt/estacao-de-sbento-foto5384426.html |
O Professor Pinto da Costa, no último programa da manhã da RTP, Praça da Alegria, onde participou, falou, entre outras coisas, de “Burlas a idosos”, tema muito antigo, mas muito actual. Lembra-me de quando era menino, meu Pai contar de pessoas vindas de longe, chegarem nos comboios, na estação de S. Bento, serem abordadas por burlões para comprarem um vigésimo (cautela) premiado. Outras eram abordadas para comprarem eléctricos. Os jornais da época noticiavam muitos destes acontecimentos.
O Professor Pinto da Costa comentou que o tema é actual porque, infelizmente, há uma percentagem significativa de população idosa com muitas debilidades.
Ontem, deparei com uma notícia na imprensa, que me levou a pensar nas palavras do Professor Pinto da Costa. O presidente, de um determinado partido, demitiu-se da sua presidência e abandona-o. Segundo ele, dedicou um ano da sua vida a formá-lo, partindo do zero. Elegeu um deputado à Assembleia da República com mais de 65.000 votos.
Como é possível tanta gente confiar o seu voto, do qual pode depender uma vida melhor ou uma vida pior, a paz ou a guerra, a uma organização (?) completamente desconhecida, que simplesmente se ouve falar nas rádios, nas televisões, nos jornais ou se vê algumas figuras em grandes cartazes?
Cá para mim, não é só uma parte da população idosa que cai no conto do vigário, nas burlas. Há muita gente, que, por dificuldades de compreensão e de preconceitos, cai facilmente, pela demagogia, em caminhos que mais tarde verificam ser errados.
O que se passou com a defesa do valor do salário mínimo nacional, com o aumento das pensões, com a aplicação dos novos passes sociais, com os livros escolares, em que alguns, teatralmente, apregoam vitoriosamente, como se fossem de sua iniciativa e responsabilidade, é paradigmático. Quando agora se defende um valor do salário mínimo nacional igual ao que defende a UGT, menor do que já foi falado pelo patronato, é para facilitar a vida ao governo e depois, em bicos de pés, dizerem que foi o valor que defendiam. Votações que se fazem na Assembleia Municipal de Lisboa que contrariam o que defendem posteriormente em artigos publicados é falta de vergonha. Para não falar na cópia de fundamentações de propostas de outros para fundamentar as suas.
Infelizmente, a demagogia, o populismo, o atrevimento, devidamente acompanhados pelos media, permite enganar muita gente, e não são só os idosos enganados.
01/10/19
NO CORRER DOS DIAS
Marques da Silva
O Outono chegou com aquela leveza dos dias com calor diminuído, brisas suaves e chuva com alguma delicadeza. As minhas visitas tornar-se-ão mais raras, pois o que é essencial preservar, o tempo meteorológico substitui-me e suspende as viagens que aqui me trazem. Talvez seja a fragilidade da energia que nos chega da estrela solar e a placidez deste lugar que me incentiva ainda mais à reflexão, enquanto contemplo a ponte e a passagem de comboios sonolentos quase sem ruído. Não direi que é nostalgia, mas o nosso diálogo vai até aos tempos em que viver era uma aventura, os sonhos tinham estrada e cada dia era uma batalha que perseguia uma utopia. Quando olhamos em direcção a esses anos, sentimos a beleza que foi fazer parte de um colectivo, em que cada um, era uma barreira, que somadas, erguiam um muro à passagem da ignomínia. Havia pessoas com muita coragem, outros tinham apenas a suficiente para não se deterem. Outros havia que tinham medo e até havia cobardes, mas todos, cada um à sua maneira, prosseguiam nesse trabalho de fazer regressar a dignidade a uma nação milenar. Nós chegamos naquela época em que o tripa de porco caiu do banco e bateu com os cornos no chão. Ao contrário do que alguns pensavam, o nosso combate tornou-se ainda mais difícil, mais sujeito à violência de um poder infame. Caminhávamos na noite entre as sombras de candeeiros de débil luz, procurando descortinar nas trevas, as silhuetas assassinas de lobos selvagens que saciavam a sede no sangue da liberdade. Olhávamos as montras das lojas como espelho para detectar os vermes que rastejavam por entre a multidão. “Sete flores de limão para lutar até vencer”, lembras-te, quando cantávamos em sussurros palavras que só nós escutávamos? E não deixávamos de amar no meio de tanta podridão faminta da dor que geravam numa nação violentada. Estávamos tão perto, mas ainda não sabíamos, até que naquele Verão começámos a desaparecer, uns atrás dos outros. Ninguém fazia perguntas, pois todos conhecíamos o caminho escolhido. Era um mergulho na noite ainda mais profundo. De certa forma, abdicávamos da nossa liberdade para que ela pudesse chegar para todos. Os esbirros davam conta que estavam a perder e assanhavam-se ainda mais na perseguição daqueles que sonhavam. Que ousadia, sonhar! Em duas ocasiões, perdi-me, fiquei uma ilha sem ligação a terra e lembrei-me que tu poderias fazer com que voltasse à estrada onde havia caixas de correio. Da segunda vez que trouxeste o santo-e-senha, foi a última vez que nos encontramos. Não podíamos saber, mas não nos voltaríamos a ver. Recordo-te sempre com o anoraque azul, os óculos que caíam sobre o nariz, a voz pausada e as palavras serenas em tom de quase silêncio. Os nossos caminhos separaram-se nesse dia, sem que se voltassem a juntar apesar de caminharmos no mesmo sentido. Agora, sabes, quarenta e cinco anos depois, um bastardo de Santa Comba quer-nos ensinar a interpretar o Estado Novo, que foi sempre tão velho como a exploração humana e há um grupo de historiadores, gente séria, pronta para reinterpretar a história, como se não a conhecêssemos. A acreditar no seu propósito ainda têm dúvidas de cinquenta anos de exploração violenta do trabalho, da miséria económica e social da esmagadora maioria da população, de décadas de torturas, privação da liberdade em condições ignominiosas, de perseguições, de exílios, do coartar da liberdade de pensamento e expressão, de terror e de medo. Mas não importa, haverá sempre servidores da indignidade, imitação de gente, capaz de ressuscitar os “mordomos do universo todo, senhores à força, mandadores sem lei”. Para nós, que ainda nos sentimos soldados do exército de Dario, o mais importante é o que a história jamais poderá apagar, aquele dia em que pudemos cantar, “já estremece a tirania, já o sol amanheceu”. O resto, são apenas os dejectos humanos da história.
Rui Rio levava uma campanha criando a ideia de um homem de princípios, de bom rapaz, de seriedade na política. Era com estes argumentos que procurava superar o que o seu programa eleitoral escondia, o benefício de quem tem muito e pretende ainda mais. De um momento para o outro, derrapou, descambou e mostrou o que se esconde por trás daquela face que se pretende amável. Com base numa acusação do Ministério Público, passou a julgar, através de um processo de intenções e com base em afirmações que no âmbito da prova, valem zero. Vir dizer que «é crível», «é admissível», «é suposto», «é indiciador», coloca-o ao nível de um farsante que dá pelo nome de Sérgio Moro. É uma questão política e não jurídica vem argumentar em seu socorro. «É crível que o primeiro-ministro foi informado» e «se não foi, significa que não tem mão no governo». Fazer juízos políticos com base em suposições é a forma mais miserável de fazer política. Rui Rio, desceu a esse nível e não vejo que possa sair desse terreno pantanoso. Tanto mais que o primeiro-ministro não é arguido nem tão pouco faz parte do processo.
Por outro lado, ninguém menciona o essencial, o estado de degradação ética e moral a que chegaram as chefias militares. Não esqueçamos que tudo nasceu e se desenvolveu no seu interior. Quanto ao Ministério Público, mais uma vez tem uma agenda política. Há mais de um ano que instrui um processo que havia de produzir acusação no meio de uma campanha eleitoral em que a Direita vivia num estado comatoso. Acresce que a vida mostrou que grande parte das suas acusações derrete-se à velocidade em que se desmoronam os glaciares do Monte Branco. Um MP que nem sequer consegue guardar o segredo de justiça sem que se conheça qualquer responsável, merece-nos credibilidade zero. Aliás, se existe instituição que merece uma quase unânime reprovação dos cidadãos, é a Justiça.
É interessante que até ao momento, ninguém se preocupou em saber o que diz a Defesa!
Assunção Cristas, passou a falar por metáforas. Diz-nos que a classe média alta é das mais desprotegidas. A classe média alta é, em linguagem popular, os mais ricos. Quanto ao Estado diz-nos que privatizaria tudo, quer dizer, distribuía pelos amigos o que no Estado é lucrativo.
No dia 1 de Outubro faz dois anos que a população da Catalunha enfrentou a barbárie da autoridade colonial e ocupante que no Estado espanhol dá pelo nome de Polícia Nacional e Guardia Civil. Puderam reviver os longos anos do fascismo franquista, um sedicioso e golpista que em nome dos seus interesses espúrios, matou, assassinou e fuzilou milhares e milhares de cidadãos, não só da Espanha como das nações que se encontram expurgadas da sua auto-determinação, numa guerra que contabilizaria 500 mil mortos. Quase desde esse dia 1 de Outubro, mais de uma dezena de políticos e líderes catalães encontram-se em prisão preventiva sem qualquer condenação. Sim, há 2 anos, com o silêncio cúmplice da tão democrática Europa.
A ECONOMIA DA CARNE
Manuel Joaquim
Com a grande polémica que se instalou recentemente sobre a decisão da Universidade de Coimbra proibir nas suas cantinas o consumo de carne de vaca, veio-me ao pensamento o que Friedrich Engels escreveu na sua obra, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, sobre os efeitos no seu desenvolvimento físico e intelectual, do Homem passar a incluir na sua alimentação a carne. Provavelmente seríamos uma civilização muito diferente.
Sabemos que o consumo de carne sem regras não é saudável. Mas a sua total eliminação da alimentação humana também não será muito saudável. São discussões, de carácter científico, muito antigas e permanentes, sem fim à vista.
Sabemos que a nossa civilização está assente na produção de animais destinados à alimentação e ao trabalho, não falando já nos animais ditos de companhia.
Gerações de famílias sobreviveram durante longos anos e continuam a sobreviver, com a criação de animais, destinados à sua própria alimentação e para a sua economia doméstica, obtendo rendimentos. Leite, cabritos, bois, vacas, vitelas, cavalos, ovos, galinhas, galos, coelhos, que pequenos produtores vendem, a maior parte das vezes para alimentar a família e educar filhos e netos.
O abandono desse tipo de economia é provocar o abandono de grande parte do território, a destruição do que ainda resta para habitar. Um Amigo meu referiu-me, por conhecimento de causa, que quem trata dos lameiros, onde existe pasto natural, são os pastores e os guardadores de gado. Se não fossem eles as terras estariam ao abandono e sujeitos aos incêndios destruidores.
Sobre este assunto, não produzir animais, alguém, que visitou os Açores há pouco tempo, referiu que, por esse caminho, as ilhas do arquipélago, tinham de ser todas abandonadas. Toda a sua economia assenta na produção de carne, de leite, de manteiga e queijo.
A Universidade de Coimbra devia fazer pedagogia sobre alimentação saudável, ensinar a população a alimentar-se, fazer jus à dieta mediterrânea. Denunciar o que acontece nos viveiros da sua vizinhança, na produção de frangos. Muitos são lançados no mercado da alimentação humana com 8-10 dias de vida, cheios de produtos químicos. Denunciar o que acontece com a produção de ovos, cujas gemas obtêm cor pela introdução de produtos químicos na alimentação das galinhas. Denunciar a produção intensiva de animais que contribui decisivamente para muitas doenças humanas. Denunciar a poluição produzida pelos navios de cruzeiro que muito alegremente visitam o nosso país, pelos aviões das companhias de low-cost que permanentemente estão no nosso espaço aéreo.
Podia, ainda, denunciar vigorosamente o que mais contribui para destruição das nossas vidas e do próprio planeta, que é a guerra.
ERA UMA VEZ
António Mesquita
O título diz-nos que é uma história. É assim que temos de compreender a reescrita do caso da Família Manson, em que a vítima mais famosa (Sharon Tate) aparece no final como tendo escapado ao massacre.
Para que esta 'liberdade' com os factos seja aceite pelo espectador, seguimos ao longo de quase três horas a vida hollywoodesca, do estúdio para a piscina de um actor de westerns decadente, Rick Dalton (DiCaprio) e do seu duplo (stuntman) Cliff Booth (Brad Pitt) que divide o seu tempo entre fazer de chofer de Rick e dar de comer ao cão na sua caravana.
Algumas cenas movimentadas pontuam este rame-rame, a mais divertida das quais é o duelo com Bruce Lee, em que a basófia deste é posta a ridículo pela competência do 'stuntman'.
Não é dizer nada que não se saiba que a 'fábrica dos sonhos' é também a 'fábrica dos pesadelos'. E, nesse sentido não é a realidade, assuma ela a forma mais anárquica da cultura hippy (de que Charles Manson seria um subproduto) ou as repercussões do assassinato de Kennedy e da guerra do Vietnam, que irrompe no circuito feérico e alienígena da produção do cinema e da televisão em Los Angeles, mas a chacina de 1 de agosto de 1969 é ela própria uma 'produção' de Hollywood, não no estado de 'privação do sono', apenas, mas sob o efeito da droga.
E não é isso que Tarantino nos diz tratando os factos como um cenário alternativo, em que as personagens fictícias de Rick, Cliff e o molosso fazem justiça imediata sobre o gang transado, e a bela Tate (Margot Robbie), que ainda há pouco víramos gozando a eternidade de se ver na tela dum cinema qualquer, surgir de entre os mortos e justiçados como um holograma feliz?
Podemos deplorar que a preparação deste final se tivesse arrastado por cenas que nada acrescentam ao drama (mas não é essa a marca dum autor que gosta de 'esticar a corda' e sabe que pode contar com a benevolência do público? É quase como a extravagãncia na indumentária de Dali, por exemplo.
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"Era uma vez...em Hollywood" não é o filme definitivo sobre a psicose dum tal lugar, mas é um bom candidato.
Depois há aquela despedida de Cliff e Rick na ambulância que salva o filme, pela amizade viril ao gosto dum Hawks ou de um Ford, que salvava o filme se fosse preciso tanto.
NIETZSCHE AO SOM DE WAGNER
Mário Martins
O que é uma biografia? Agustina Bessa-Luís, na sua biografia da pintora Maria Helena Vieira da Silva, “Longos Dias têm Cem Anos”, afirma que “os factos não são importantes numa biografia a não ser como o seu folclore”, afirmação que, sobretudo, se compreende no contexto da escassez de dados da biografada a que teve acesso, daí resultando uma biografia porventura mais imaginada, ainda que comentada e autorizada pela amiga pintora, mas talvez mais exigente na compreensão do sentido essencial de uma vida; afirmação, de resto, corroborada por outra do mesmo jaez, do colega de ofício Mário Cláudio, de que “toda a biografia é um romance”.
No entanto, decerto que os graves padecimentos físicos, que frequentemente o retiam deitado na penumbra de um quarto dias a fio, como repetidos acessos de vómitos, fortes dores de cabeça, progressiva perda de visão e excessiva sensibilidade à luz, que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche sofreu ao longo da sua vida (1844/1900), terão influenciado a sua filosofia, mormente o seu estilo. Os seus conhecidos aforismos, como forma de expressão curta e incisiva, são tanto o resultado directo da sua mente brilhante como da sua quase cegueira, que o impedia de escrever normalmente.
Como também o facto de se ter relacionado e vivido intensos momentos de comunhão espiritual com o célebre compositor operático germânico Richard Wagner (e com sua mulher Cosima Wagner, filha do grande pianista e compositor húngaro, Franz Liszt), que considerava um verdadeiro Mestre e cuja música o punha fora de si, a ele, Nietzsche, que gostava de tocar piano e de compor, e que dizia, num dos seus famosos aforismos, que “sem música, a vida seria um erro”; bem como a ulterior ruptura pessoal e intelectual, terão, certamente, afectado a sua filosofia.
Ambos, Nietzshe e Wagner, partilhavam o desejo de pôr fim ao que consideravam ser a decadência cultural da Alemanha, mas enquanto o compositor era germanófilo e anti-semita, o filósofo não era nacionalista e recusava o ódio aos judeus. Essas diferenças e considerações mútuas nem sempre simpáticas, acabariam por prevalecer sobre o idêntico gosto pela Grécia clássica, conduzindo à separação e inimizade.
Com antecedentes familiares, Nietzsche viveu os últimos doze anos da sua vida no estado de loucura que, todavia, amigos mais chegados tiveram alguma dificuldade em reconhecer, sabendo como sabiam que o filósofo considerava que “todos os homens superiores que eram levados irresistivelmente a livrar-se do jugo de morais banais, se não fossem realmente loucos, não tinham outra opção para além de fingir a loucura”.
Tal como Wagner, mas mais abusivamente dadas as suas diferenças políticas, Nietzsche e a sua obra, simplificada e adulterada, nomeadamente pela sua irmã Elisabeth, uma fervorosa defensora da pureza da raça ariana e admiradora de Hitler, viriam a ser usados, anos depois do falecimento do filósofo, como caução da prática e objectivos do partido nazi. Mas como até um seu proeminente ideólogo sarcasticamente reconhecia, “se não fosse o facto de não ser socialista, nem nacionalista e se opor ao pensamento racista, Nietzsche poderia ter sido um grande pensador nacional-socialista”…
01/09/19
A INCONSTÂNCIA DA VERDADE
https://www.fnac.pt/O-Livro-do-Universo-Joaquim-Fernandes/a735329 |
“Uma vez, num futuro indeterminado, mas certo (sublinhado meu), a natureza humana (ou as suas sucedâneas, seja que formas, estrutura e essência possam assumir…) virá a ser confrontada, pela primeira vez na sua história, com outras existências, realidades e dimensões exógenas, não-humanas, que muito provavelmente tornam anacrónico qualquer tipo de prognóstico ou antecipação das suas características (…)
Joaquim Fernandes
O Livro do Universo
Onde o ilustre autor, doutor em História das Ciências, alicerça esta certeza, é coisa que, estranhamente, não transparece da leitura do seu interessante livro nem, seguramente, da evidência científica que seja do domínio público. Não deixa, pois, de ser irónico que o autor aponte como “prova da inconstância e mutação dos critérios de verdade, ao longo da História, o facto de a crença contemporânea subscritora da hipótese de «não estarmos sós» ter adquirido um estatuto quase religioso, ou de para-religião (…)”
Mas o que interessa aqui, para lá da angústia existencial de não sabermos se estamos ou não sós, é a questão central da “inconstância e mutação dos critérios de verdade”, ao longo de um percurso histórico que, paradoxalmente, conduziu, numa época de consolidação científica, ao advento de um conceito concorrente da verdade: a pós-verdade.
Até que tenhamos provas da existência de seres inteligentes extraterrestres - eventualidade que, contrariamente ao defendido pelo autor, pode ser mais ou menos provável, mas não é certa –, tenho por axioma que a verdade é, e só pode ser, humana, na medida em que todo o conhecimento - sensorial, emocional, e racional - tem origem em nós, com as propriedades que a Natureza nos conferiu.
Não há, com efeito, outra fonte de conhecimento que não seja nós próprios, em relação com os outros e com a realidade circundante, mesmo quando, no foro religioso, idealizamos uma fonte divina. Esta realidade, cuja existência é apreendida pelos nossos sentidos e categorizada pela nossa mente, e a que chamamos objectiva para nos distinguirmos dela, é, e só pode ser, subjectiva, na medida em que passa pelo filtro da nossa experiência e compreensão, individual e grupal, que é sujeito a todo o tipo de influências culturais, e depende da incessante evolução tecnológica. A realidade natural objectiva, independente da nossa leitura, é simplesmente inacessível. Condenados a beber desta única fonte, estranho seria que não houvesse “inconstância e mutação dos critérios de verdade”, ao longo das diferentes épocas históricas.
O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa dá-nos um (entre vários) significado de verdade que, se por um lado me parece o mais ajustado, por outro encerra um problema: “Correspondência, adequação ou harmonia passível de ser estabelecida, por meio de um discurso ou pensamento, entre a subjectividade cognitiva do intelecto humano e os factos, eventos e seres da realidade objectiva”. O problema, evidentemente, é a nossa “subjectividade cognitiva”, e é por este ponto fraco da verdade que se insinua a pós-verdade.
Poderá então a pós-verdade concorrer ou mesmo suceder à verdade? Tendo em conta a definição que, por exemplo, o dicionário on line Priberam da Língua Portuguesa nos dá de pós-verdade: “Conjunto de circunstâncias ou contexto em que é atribuída grande importância, sobretudo social, política e jornalística, a notícias falsas ou a versões verosímeis dos factos, com apelo às emoções e às crenças pessoais, em detrimento de factos apurados ou da verdade objectiva”, não é de augurar grande futuro para conceito tão malicioso, não obstante Agustina, sempre interpelativa, pôr Camilo, em “Fanny Owen”, a afirmar que “neste mundo ou tudo é verdade, ou não há verdade nenhuma”…
Apesar de condenados à “subjectividade cognitiva”, não há alternativa à verdade suportada pela prova, nem, muito menos, à conhecida citação de Carl Sagan, de que “afirmações extraordinárias exigem provas extraordinárias”.
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