Mário Martins
Pode parecer paradoxal que um homem que preferia amantes masculinos pintasse, sobretudo, mulheres. Para a autora, a pintura de Leonardo é feminina, o que será explicável pela veneração que tinha pelas mulheres, naturais portadoras da função essencial de renovação humana, numa Florença do último quartel de quatrocentos, que perseguia os homossexuais e confinava as mulheres ao exíguo espaço caseiro.
A República de Florença, estreita, barulhenta e malcheirosa, em que uma escassa minoria de ricos se tornara mais rica e os pobres mais pobres, é então uma metrópole da finança e dos têxteis, governada por um clã de banqueiros, os Médicis.
Num gesto artístico revolucionário como, dois mil anos antes, fora a descoberta do escorço, esse atrevimento dos artistas gregos de pintar um pé tal como é visto de frente, foi Leonardo quem, pela primeira vez, voltou para o observador as mulheres que retratava, elas que eram sempre, na pintura italiana, representadas de perfil e com uma aparência casta, sem voz e intelecto. O retrato da poetisa florentina Ginevra de Benci, https://www.leonardodavinci.net/portrait-of-ginevra-de-benci.jsp, é a primeira obra-chave de Leonardo. Nele, ela mostra-se a quem a observa, não esconde o seu ar melancólico de mulher casada alvo de um amor impossível de um diplomata veneziano, igualmente comprometido, que encomenda a obra. “É o primeiro retrato psicológico até então feito e o começo de uma arte nova, tocante e cheia de vida”.
Mais tarde, já em Milão, pinta o retrato da adolescente Cecília Gallerani, https://www.leonardodavinci.net/lady-with-an-ermine.jsp, amante do autocrata Ludovico Sforza, por encomenda deste, a quem Leonardo oferecera as suas ideias de engenharia militar. No retrato, a adolescente e o arminho, ou doninha, estão em movimento, a olhar na mesma direcção, para fora do quadro. É a segunda obra-chave do artista.
É no seu regresso a Florença, quase a fazer 50 anos, que Leonardo encontra a mulher, Lisa del Giocondo, que, possivelmente e no seu começo, dará lugar à pintura em tela mais conhecida de todo o Ocidente: La Gioconda ou Mona Lisa, https://www.leonardodavinci.net/the-mona-lisa.jsp, a terceira obra-chave do Mestre de Vinci. Lisa é casada e já mãe de quatro filhos, e Leonardo representa-a com um vestido de gaze transparente que era usado pelas mulheres grávidas. É uma pintura que demorará vários anos a acabar e que o acompanhará até à morte: “Dos cantos dos olhos escuros, a mulher fita o seu observador, amável, sabedora, tão profundo e tão confiante é o seu olhar. Sorri suavemente pelo canto esquerdo da boca. Corresponde ao nome: giocondo significa jocunda, alegre, consoladora.”
Leonardo pintou igualmente, várias vezes, Maria, mãe de Jesus, o Filho de Deus na mitologia cristã, mas contrariamente à tradição pictórica, no quadro da Anunciação, https://www.leonardodavinci.net/the-annunciation.jsp, ele não curva Maria perante o Anjo que lhe anuncia que ela vai ser a Mãe do Filho de Deus; é o Anjo que se ajoelha perante ela, senhora de si.
O mestre da técnica do sombreado, o sfumato, viveria os dois últimos anos em França, sob a protecção do rei Francisco I, onde acabaria por morrer há exactamente 500 anos, legando ao mundo uma obra que o juízo do tempo, justamente, consagrou.
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