António Mesquita
"Levar uma multidão a pensar é quase tão impossível como levá-la a praticar uma acção inútil - ela está destinada a agir por necessidade, e a sua razão é apenas impulso do inevitável. Mas um povo pode ser apto para se renovar, enquanto que a multidão é apenas apta para sobreviver. Um deve sobrepor-se à outra; a obra dum povo não pode ser considerada acessível a uma multidão."
"Embaixada a Calígula" (Agustina Bessa Luís)
Será que esta moral ficou desactualizada pelas redes sociais e os telemóveis?
Dos tumultos em Hong Kong e das manifestações de massa em Barcelona pode dizer-se que são regidos pela necessidade ou pela lei da sobrevivência? Há aqui algum "impulso do inevitável" ou são antes actos colectivos combinados e deliberados que parecem prescindir duma vanguarda, revolucionária?
Trata-se de movimentos "infiltrados" por organizações oportunistas com os seus fins próprios, como dizem as autoridades da China ou de Espanha, ou antes, serão ambos tropismos duma multidão encandeada por uma ideia de justiça ou uma "fúria de viver", nascidas no pequeno écrã de cada manifestante e que tem uma capacidade inédita de resposta, no terreno, à acção do Estado?
O fenómeno das redes sociais baralha todas as referências. Ele é em si mesmo um princípio de organização muito mais eficaz do que um jornal ou um panfleto, e até a palavra rede evoca o papel político das redes clandestinas.
A comunicação moderna permite ao indivíduo ter a sensação de participar num acto espontâneo com "feedback" imediato de muitos outros, de estar a "fazer história", ou simplesmente a "curtir" o espectáculo da violência.
Alguns observadores falam numa ausência de causa e, nalguns, a "procura da adrenalina" e do perigo excitante, mais do que uma ideia política, qualquer que ela seja, o que vem ao encontro duma corrente actual de "apoliticismo" ou mesmo de abominação da política, sentimento que sem ser exclusivo dos nossos tempos se encontra exacerbado pela volatilidade dos novos meios de comunicação e da perda de credibilidade da missão informativa.
O cinema, com "Fúria de viver" (Rebel without a cause), de Nicholas Ray, de 1958, fez eco duma rebelião da juventude americana que parecia não ter causa nem objectivo. O adolescente representado por James Dean não se conhece a si próprio, não sabe o que quer e é infeliz por isso.
Não é o caso do filme de Tod Philips que conquistou o festival de Veneza deste ano e que tem sido um êxito de bilheteira, apesar de ser uma obra deprimente, penosa de ver e a raiar o niilismo. Alguns filiam-no na tradição de "Taxi driver", o filme de 1976 de Martin Scorcese que acaba numa explosão de violência estética (muito por mérito da música de Bernard Herrmann). A personagem de Joaquin Phoenix que "nunca teve um dia feliz na sua vida," também encontra uma saída violenta para a sua esquizofrenia, mas aqui há um outro sentido de oportunidade, dado o momento que se vive na cultura mediática, que carrega o desfecho desta história com uma simbologia aterradora, de fim do mundo, que explicará o sucesso do filme junto duma juventude que tem na crise climática um paralelo com a Gotham crepuscular de Tod Philips. No meio do caos provocado por uma interminável greve do lixo, a juventude desta Nova Iorque da banda desenhada parece rebelar-se contra tudo e todos replicando, euforicamente, a violência de Joker, o palhaço assassino que mata e ri.
Daí que o interesse deste filme seja ainda mais sociológico do que cinematográfico. Todd Philips mostra-nos a máscara dos tempos que correm. O seu exagero vem, talvez, do facto de na origem estar uma história aos quadradinhos.
O final faz-nos pensar também na espécie de cura pelo caos que eram as festas dionisíacas da Antiga Grécia. E não será que a sociedade moderna está a revelar na violência que vemos aqui e ali, um pouco por todo o lado, que não pode passar sem o histerismo colectivo, como o que se vê nalgumas claques desportivas, como exutório para as suas contradições sociais?
De qualquer modo, isso viria dar razão a Agustina.
Sem comentários:
Enviar um comentário