António Mesquita
"Nada é mais difícil de entrar no espírito das pessoas, e mesmo no da crítica, do que esta incompetência do autor a respeito da sua obra, uma vez produzida."
(Paul Valéry in "Introduction à la méthode de Léonard de Vinci")
Numa entrevista de há dois anos, José Mário Branco dava expressão a esta ideia, quando dizia que as suas criações passavam através dele, como se fosse o cosmos o verdadeiro autor e que, uma vez produzidas, não lhe pertenciam e ele não poderia impedir que se transformassem em qualquer outra coisa à sua revelia. As suas canções do "processo revolucionário em curso" poderiam até tornar-se num hino nazi...
A opinião de que um autor é a maior autoridade sobre a sua obra, que é o único responsável pelas ideias que lhe ocorrem e pelo seu desenvolvimento e conclusão é cativa, de facto, duma ideologia que poderíamos chamar de individualismo vulgar.
É a mesma distorção que está presente na concepção do homem como, por essência, político. Como diz Hannah Arendt: "(...) Simplesmente, não é assim: o 'homem' é apolítico. A política emerge 'entre homens', e, portanto, claramente no 'exterior do homem'. Não há, portanto, substância política real." ("A Condição Humana")
É na pluralidade, em sociedade, com todas as modalidades do tempo, que a política faz sentido. Não é concebível no indivíduo isolado.
Também a criação literária e artística não é real como produto de um 'criador' enquanto indivíduo. Essa produção é inconcebível sem a linguagem e os símbolos que não lhe pertencem, que emergem num mundo que ultrapassa a duração do indivíduo e entre espíritos de todos os tempos. Recorrer à ideia de inspiração, é isso que quer dizer, não é verdade?
Mesmo no caso dum artista que ostensivamente rompe com a tradição, é óbvio que sem essa tradição não lhe seria possível sequer pensar a ruptura. É o que diz Arendt a propósito daqueles que decidem ignorar a tradição sem poder escapar-lhe.
Tudo isto releva da questão do sujeito no pensamento ocidental, desde Platão. Somos deuses como pretendem alguns laicos na esteira do antigo paganismo? Somos, para além de qualquer possibilidade de demonstração, encarnações do Cosmos?
Seja como for, as ambiguidades da nossa natureza e do nosso destino são-nos essenciais. Se pensarmos que o discurso racional é o que nos distingue e o nosso principal atributo, devemos atentar nas palavras de Paul Valéry: "Não há, certamente, nada em si mais mórbido, nada de mais inimigo da natureza, do "que ver as coisas como elas são." Uma clareza fria e perfeita é um veneno impossível de combater."
É preciso um poeta lembrar-nos de que existem males racionais. Basta perder-se o sentido da proporção e da beleza para incorrermos nas maiores calamidades.
É esse sentido, afinal de contas, que impede o verdadeiro autor de reivindicar o pleno domínio da sua obra, como qualquer artesão o pode fazer do artefacto que sai das suas mãos.
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