StatCounter

View My Stats

01/12/19

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva

Al-Qamishli (Wikipedia)


Outubro. Soube sempre que nos haveríamos de voltar a encontrar. Era uma certeza que advinha da minha vontade e da ideia que construí ao longo dos anos de que o nosso reencontro seria inevitável. Como poderia não encontrar a pessoa que tantos ensinamentos me deixara. Quando as unidades de elite do Exército Árabe Sírio transportadas por helicópteros russos se deslocaram para Al-Qamishli, não hesitei um momento e segui viagem para a pequena cidade onde te poderia reviver. Tudo está agora muito diferente daquele tempo que um acaso nos fez cruzar os nossos destinos. Tinha atravessado o deserto e pretendia seguir para a Báctria. Tu vinhas da Pérsia pelo Lago Van e atravessaste as montanhas curdas, mas sem destino planeado. Talvez por isso, ficaste vários dias neste lugar próximo da fronteira turca e essa foi a casualidade que fez coincidir os nossos dias em Al-Qamishli. Ao segundo dia, já me levavas pela estrada do aeroporto, não o de hoje, mas aquela pequena pista de areia que se estendia plana. Seguia-te com naturalidade. Atrás das tuas palavras, os meus passos seguiam os teus. Levavas-me a espreitar o deserto, ao fim da tarde quando o sol declinava para os lados de Alepo. Tudo em ti era beleza, dos pensamentos às reflexões, as leituras que fazias da vida, dos acontecimentos, das acções humanas, com a serenidade de quem sabia o que estava para acontecer. Ensinaste-me a escutar o som do silêncio na brisa que arrastava a areia quase de forma imperceptível. E na melodia que se desenhava as tuas palavras tranquilas mostravam-me os factos que se acumulavam na Europa como nuvens negras anunciadoras da tempestade que desabaria sobre a humanidade. Como tinhas razão, como eram tão claros os sinais. Que pena teres morrido dez anos antes de eu nascer. Agora quando volto a percorrer a estrada que dia após dia nos levava até ao deserto, eu embebido pela tua sabedoria e cultura, tu com o desejo de falar com a ideia que alguém te pudesse escutar e conseguisse travar a loucura que vias como um adamastor, e ao lembrar o que então dizias, vejo de novo os mesmos vestígios, os mesmos rastos, a mesma intolerância, os fachos voltam a acender-se pela Europa, as hordas marcham de novo com os seus cânticos, a sua violência, a sua ameaça de mergulhar na escuridão a vida dos povos, e de novo, a complacência dos poderes constituídos, da ordem estabelecida, do sistema instalado. Encerro os olhos e nem a música trazida pelas areias em viagem acalmam o meu temor e a desilusão estende-se infindável na noite que chega.

Novembro. Era uma noite de tempestade. Via a brancura da neve a cair com intensidade na janela que estava atrás de ti. Não te apercebias. O teu rosto tenso relatava com amargura aqueles dias da década de sessenta, dias de combate pela liberdade, pela dignidade, pela justiça. As lágrimas correram pelas tuas faces quando com uma tristeza arrasadora relatavas como os mineiros resistiam nas ruas de El Alto ao avanço dos canalhas montados nos seus carros de combate. «os mineiros deitaram-se no chão para deter a marcha daquela horda, mas continuaram como se os homens fossem bonecos e os mortos acumularam-se após a sua passagem», dizias tu numa comoção sufocada enquanto os teus dedos entrelaçavam um fio imaginário. Tantos anos depois, Eliana, recordo o teu rosto indígena, o teu relato. Não sei onde estarás ou se ainda existes, mas em El Alto, de novo, os bolivianos ocupam as ruas, barram o caminho à bestialidade dos biltres que de novo assumiram o poder, como só eles sabem fazer, pela infâmia, manipulação e violência. A história repete-se, com os seus rios de sangue, os seus cemitérios inundados. De novo voltam a morrer os pobres e os marginalizados enquanto à volta o sistema garante que tudo vai bem.

Michele Bachelet foi por duas vezes presidente do Chile. Em ambos os mandatos, não foi capaz de honrar verdadeiramente, nem a memória do seu pai – brigadeiro-general Alberto Bachelet, preso, torturado e morto pelos energúmenos sediciosos que acompanharam o monte de esterco humano que deu pelo nome de Augusto Pinochet -, nem a do Partido Socialista de Salvador Allende. Em ambos os mandatos, governou com a Constituição deixada pelo ditador e que agora o povo chileno exigiu na rua o seu fim. Como Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, soube falar grosso quando se tratou da Venezuela, mas rastejou quando teve de falar sobre o Chile, a Bolívia, o Equador e até mesmo da Índia a propósito de Cachemira.

A cada vinte anos, a elite que domina o poder, económico, financeiro e político dos EUA monta um carnaval com a intenção de destituir o presidente de turno. É uma espécie de ópera bufa em que os actores são acusados e acusadores e transmitem o espectáculo pela televisão para a plateia assistir. Quando termina a peça, continua tudo na mesma com os mandantes de sempre. Chama-se a isto, democracia e há gente muito respeitável que tece grandes comentários e bate palmas.

A América Latina pariu o segundo presidente auto-proclamado. A rapariga, Jeanine Áñez de sua graça, não teve mãos a medir. Começou por se auto-proclamar presidente do Senado e acto contínuo, presidente da república. O que se estranha é que o inefável Augusto Santos Silva não tenha dado acordo de si a reconhecer de imediato a personagem.

Sem comentários:

View My Stats