01/12/15
A ÁRVORE
Manuel Joaquim
Há uns dias atrás, um Amigo meu, sabendo da minha curiosidade por plantas e árvores, procurou-me para me dizer que no horto das Virtudes, nas traseiras da Cooperativa Árvore, tinha descoberto uma árvore, que neste momento estava a florescer, que valia a pena ir observá-la. No Porto, só conhecia mais um exemplar, no jardim dum prédio que fica junto à esquina da Rua Oliveira Monteiro com a Rua Senhora de Fátima.
A árvore, originária da América do Sul, mais propriamente do Brasil, é conhecida pelo nome de Chorisia Speciosa, os ingleses chamam-lhe Silk Floss Tree, árvore de fio de seda, e os mexicanos Ceiba Palo Borracho.
É, na verdade, uma árvore muito bonita, localizada no Jardim Municipal Horto das Virtudes, sítio maravilhoso para descansar, para ler e apreciar algumas esculturas, a paisagem, o rio e uma outra árvore, muito especial, que é uma Gingko Biloba.
No caminho, eu e o meu Amigo, conversámos sobre diversas coisas, pois, palavras puxam palavras. Ao passarmos em frente a determinado prédio da rua que percorríamos, ele parou, e disse que, quando jovem, quando veio para o Porto, muito antes do 25 de Abril, para trabalhar e estudar, tinha alugado ali um quarto para morar.
Recordando esses tempos, referiu que a senhora da casa vivia com uma filha, adolescente, e com o pai, senhor de idade avançada. Que o marido tinha emigrado para a Alemanha e nunca mais deu notícias. As dificuldades em sustentar a casa eram visíveis e educar a filha, já espigadote e atrevida, reclamando liberdade e independência, não era fácil. O pai da senhora e avô da jovem, apesar de ter trabalhado na cidade durante muitos anos num café a atender clientes, manifestava valores muito retrógrados mesmo para a época, chegando a considerar que dar colo ou tratar de crianças era assunto só para as mulheres. O meu Amigo lembra-se que na altura pensava, de acordo com os seus valores, que o futuro daquela jovem não seria lá muito bom.
Passados largos anos, o meu Amigo, certo dia, teve de ir à escola do seu filho para falar com a professora de História para saber da sua situação escolar. Para seu espanto, a professora de História era aquela jovem que ele conheceu em tempos na casa onde viveu num quarto alugado. Como foi possível aquela jovem, a quem ele não previa grande futuro, formar-se e pelas circunstâncias da vida, vir a ser professora do seu filho.
Depois de várias considerações, concluiu que a falta de confiança na juventude, acarreta, muitas vezes, julgamentos precipitados.
BUCÓLICA
Mário Martins
Neste tempo de Outono as folhas caducas das árvores tingem-se de vermelho e amarelo
antes de entretecerem tapetes nas cidades do ruído ou o húmus no silêncio dos bosques
e descobrirem frutos acesos
As luzes da cidade calada ao longe disputam com as cores do crepúsculo e o latido dos cães a atenção do observador no horizonte desimpedido
Não tardará que Orionte domine os céus iluminados por súbitos fogachos
Um nocturno de Chopin fecha a abóbada celeste
antes de entretecerem tapetes nas cidades do ruído ou o húmus no silêncio dos bosques
e descobrirem frutos acesos
As luzes da cidade calada ao longe disputam com as cores do crepúsculo e o latido dos cães a atenção do observador no horizonte desimpedido
Não tardará que Orionte domine os céus iluminados por súbitos fogachos
Um nocturno de Chopin fecha a abóbada celeste
CARTA DE NATAL
Esta carta é para ti, pequenina Beatriz. Talvez um dia, a possas ler, ou talvez imaginá-la quando souberes juntar as letras que formam palavras. Todos os dias me acode, do fundo da memória, esse lugar onde guardamos os instantes, os mais felizes e os mais trágicos, e por vezes, até os amores perdidos, mas escrevia eu, que todos os dias me visita aquele momento em que nos conhecemos, para ser mais preciso, em que te olhei, pois tu, minha pequenina, nada podias ver. Quando chega esse convívio da memória, contigo, o que sobressai sempre, é o silêncio, o grande silêncio que senti, como se estivesse no palco de um teatro perante uma peça encenada. A ausência de sons e algumas pessoas vagueando incrédulas perante o acontecimento. Lembro-me de caminhar, devagar, suspenso, ainda sem acreditar no que os olhos identificavam e, foi a ti, pequenina Beatriz que primeiro vi. Seis mãos seguravam trémulas o teu pequenino corpo, o que significava que te amparavam como se estivesses deitada. Cruzamo-nos e contornei o primeiro destroço e foi então que vi a mãe, mas compreendi que já não estava, os seus sonhos tinham acabado de nos deixar, viajavam talvez num daqueles grandes navios que tão perto nos olhavam. Não, ainda não sabia que era a mãe, só mais tarde vim a conhecer esse laço que vos unia. O olhar encontrou então a avó e de novo me deparei com outra viagem, outro adeus, alguém que estava prestes a deixar-nos. O que se passou a seguir, a memória já tem alguma névoa, alguém gritava nas minhas mãos e voltamo-nos a encontrar. Ajoelhado, os meus olhos encontraram os teus, azuis, como o mar ali tão perto, ou como o infinito céu daquela tarde de estio acalentador, os olhos azuis, quietos e longínquos e os pequenos novelos aloirados do teu cabelo. Estavas serena, muito direita, como se dormisses um sono longo e terno. O tempo passava, olhava-te e nada compreendia. Falei, lembro-me que falei, entre os gritos de quem permanecia nas minhas mãos, mas continuava a ser o silêncio a rondar-me, a ocupar todo aquele espaço e o movimento sonâmbulo das pessoas, e os automóveis, centenas, mas não se escutava o seu ruído. Quantos minutos passaram não consigo recordar. Por fim, o silêncio parou, e a vida pareceu recomeçar, as sirenes bombardeando o sossego, uma a chegar atrás da outra, e foi para ti, pequenina Beatriz que primeiro correram. Um olhar bastou para compreenderem que toda a atenção deveria recair em ti. O que ocorreu depois, não sei, porque os meus passos me levaram de saída e ainda agora me pergunto, se vim embora ou fugi.
O tempo vai passando e vai deixando essas marcas ponteadas que tendem a encobrir a realidade. Continuo a passar ao quilómetro sete mil e trezentos e de todas as ocasiões em que atravesso aquele espaço, é o silêncio que ouço, aquele grande silêncio, como se olhasse o mundo através de uma campânula. Os aviões continuam a cruzar o céu, descendo vagarosamente. Os navios, outros, permanecem acostados, como se ainda fossem os mesmos, e ao fundo, o mar, o infinito espaço de água. Contudo, desde aquele dia, é como se não encontrasse ali os aviões e os navios, apenas vejo aquele silêncio e os teus olhos azuis, serenos, olhando, interrogando o nada.
Para ti, também o tempo foi caminhando e aos pouquinhos alguma normalidade foi certamente regressando. Voltaste à escola, mas falta algo, só não compreendes ainda com exactidão o quê. Em breve, será Natal e por isso te escrevo esta carta. O velhinho de barbas brancas irá trazer-te muitas prendas, a mesa estará repleta de pessoas que te vão sorrir e cobrir-te de afectos. Ao canto da sala, a árvore coberta de luzes, e o presépio, com muitas personagens, mas este ano e para todo sempre, no teu presépio vão faltar duas rainhas. Ficaram presas naquele silêncio que desde aquele dia viaja comigo.
Afonso Anes Penedo
CAUSAS DA DECADÊNCIA E QUEDA
António Mesquita
Job e os seus amigos |
"A palavra era acção. Levantar-se numa reunião e falar verdade era acção, porque era perigoso. Sair para a praça...era formidável, uma descarga de adrenalina, uma golfada de ar. Extravasa-se tudo nas palavras...Hoje, isso é já inverosímil, hoje é necessário fazer alguma coisa, e não dizer. Pode-se dizer absolutamente tudo, mas a palavra já não tem nenhum poder. Gostaríamos de acreditar, mas não podemos. Todos se estão nas tintas para tudo, e o futuro é uma porcaria."
("O Fim do Homem Soviético" de Svetlana Aleksievitch)
O prémio Nobel da Literatura deste ano é uma formidável recolha de testemunhos vivos. Do 'apparatchik' mais fidelizado ao entusiasta da 'perestroika'. Como eles viveram o passado antes e depois da 'Queda do Império'. De um império que não apresentava, aos olhos dos Ocidentais, os sinais explícitos de uma decadência como a da Antiga Roma. Mas se as religiões orientais tinham dissolvido o paganismo romano e o culto do imperador e das virtudes militares, se a influência dos costumes estrangeiros através da expansão do império enfraquecera o carácter dos cidadãos e apagara a imagem dos antepassados, coisas que nunca poderiam confundir-se com um 'cerco bárbaro', como o 'cerco capitalista' com que os mais doutrinários pretendem explicar a Queda da URSS, há mais do que um paralelo a tirar desta comparação histórica.
Porque há de facto um auto-isolamento e um movimento de auto-preservação num ambiente objectivamente hostil, com recurso à linguagem dupla e à ocultação da realidade que faltam ao modelo romano, talvez por este ser, sem qualquer ambiguidade, o único super-poder do planeta, mas a 'decadência' fez o seu trabalho de destruição nos dois casos e por fim ocorreu o desmoronamento, de uma forma mais ou menos caótica, mas não menos simbólica, com a tomada de Constantinopla, ou, como que auto-programada, pela implosão do sistema.
Contudo, toda a reflexão sobre o fim da URSS do ponto de vista dos historiadores, confronta-se com a experiência humana que, essa, não se deixa interpretar como objecto da história ou de qualquer ciência.
É o mérito maior deste trabalho de Svetlana Aleksievitch o de nos permitir perscrutar essa dimensão 'invisível', mas a mais fundamental.
Como o relato desse membro do partido, empenhado nos grandes ideais da Revolução e fiel ao partido para lá da razão, que foi vítima das purgas de Estaline, nos anos trinta, sem qualquer justificação, que sofreu a prisão e a tortura e que só muito mais tarde foi reabilitado. Afinal, tinha sido um 'erro'. Perdoou ao ditador, viveu o tempo suficiente para assistir à reviravolta de Gorby e de Eltsin, e à anulação de tudo em que acreditava. O seu neto, que assistia à entrevista, calado por respeito ao ancião, quando lhe foi pedida a sua opinião contou algumas anedotas conhecidas sobre os dinossauros como o seu avô. Depois da morte, conta-nos Svetlana, o velho deixou o seu apartamento de três assoalhadas, em Moscovo, não à família, mas ao seu querido partido.
Esta história tem o mesmo significado do Livro de Job. E não é a política que a pode explicar, mas a religião.
TERRORISMO - PARTE I
Mário Faria
Os Estados Unidos iniciarão as operações militares no Golfo nos primeiros dias de Março, tudo estará terminado menos de uma semana depois, e então começará o processo de divisão do Iraque. É esta a previsão de Ali Abdulla Al-Khayat, analista político kuwaitiano, com ascendência iraquiana."Não há um único kuwaitiano que não queira ver Saddam derrubado", diz Al-Khayat, que viveu no país durante a ocupação iraquiana. "Nós só tivemos aqui as forças iraquianas durante nove meses. Imagine no Iraque propriamente dito. Os iraquianos vivem sob aquele regime há décadas. Também lá, não haverá ninguém que defenda Saddam Hussein. Mal comece a guerra, ele estará sozinho com algumas centenas de guardas pessoais". Ali Abdulla Al-Khayat, que estudou em Oxford e é hoje proprietário e gerente de uma empresa de consultadoria e que edita livros sobre o Kuwait, tem uma visão precisa sobre o que vai acontecer. "No Iraque, já ninguém tem dúvidas de que haverá guerra e qual será o resultado", diz ele, que se mantém em contacto com fontes iraquianas dentro e fora do país. "Neste momento, Saddam está num dilema: ou se recusa a destruir os mísseis Al Samoud, e haverá guerra, ou os destrói, e não terá com que se defender, se houver guerra. Mas ele acredita que os americanos farão a guerra em qualquer caso e por isso não destruirá os mísseis". O ataque começará a partir de 3 de Março, mas nessa altura Saddam já não estará em Bagdad. Estará escondido algures onde ninguém saberá, nem mesmo o filho Uday, em quem não confia. Kusay, o outro filho do Presidente, conhecerá o esconderijo, e será ele a conduzir as operações militares. O que é mais uma garantia de que a defesa será desastrosa, continua a previsão de Al-Khayat. Mal as bombas americanas comecem a cair, rebentará uma insurreição geral no Iraque. Vários grupos organizar-se-ão rapidamente para neutralizar as forças fieis ao regime. Em poucos dias, o comandante americano estará no poder em Bagdad e as várias milícias populares ter-se-ão colocado sob as suas ordens. O passo seguinte será a divisão do Iraque. Quando, no início do século XX, as potências coloniais conceberam os futuros países da região, tiveram em conta o potencial perigo do comunismo, que então começava. "Para conter a União Soviética, os estrategos da época acharam que seria conveniente ter grandes países a funcionar como tampão, a que chamaram mesmo cordão de segurança - o Irão, o Iraque, a Turquia", explica Al-Khayat. Segundo a sua teoria, a realidade hoje é diferente, a URSS desapareceu e os grandes países da região tornaram-se, eles mesmos, a ameaça." O Iraque não tem, hoje, armas de destruição maciça nem é um perigo para ninguém. Toda a gente sabe isso. Até nós, no Kuwait, que seríamos as suas principais vítimas. Mas é, mesmo assim, um perigo potencial. Principalmente, e mais directamente, para Israel". A razão é simples de compreender, segundo o analista. O Iraque é o único país árabe que reúne os três factores necessários para se tornar uma potência. "Tem em abundancia território, população e recursos. A Arábia saudita tem território e recursos. O Egipto tem população. Mas os três factores, só o Iraque". Por isso é necessário neutraliza-lo enquanto é tempo. Depor Saddam e dividir o país. Os curdos, acredita Ali Abdulla Al-Khayat, estão cada vez mais fortes, e não se contentarão com nenhuma espécie de federalismo. Se não for imediata, por causa da pressão da Turquia, a divisão do Iraque ocorrerá em breve, com a criação de um estado curdo e o resto dividido entre sunitas e xiitas. "Tudo isto com a 'ajuda' dos EUA, que se terão então posicionado para aquele que é o seu verdadeiro objectivo, na sua autodesignada guerra contra o terrorismo: o Irão". O país dos mullahs está prestes a possuir poder nuclear, acredita Al-Khayat. "Os reactores que está a construir para produzir energia facilmente se poderão converter em bombas atómicas. E se um dia o Hezbollah tiver acesso a essas bombas, vai usá-las, sem hesitação, mesmo sabendo que matará milhões de civis". O Irão é o verdadeiro ponto de encontro entre armas de destruição maciça e terrorismo. Pelo menos na perspectiva de Israel, que, segundo Al-Khayat, domina, com o seu poder financeiro, a política americana. "Esta é a verdadeira motivação dos americanos. Não o petróleo. Porque esse, os iraquianos forneciam-no de bom grado. Mesmo que os tivesse de o comprar. Ora isso é precisamente o que Saddam Hussein mais gostaria de fazer: vender o petróleo, para ganhar dinheiro. Não é preciso uma guerra para isso". Depois do Afeganistão, o Irão é então o verdadeiro objectivo militar dos EUA. O Iraque é apenas um meio. "Se observarmos o mapa, é fácil compreender que o Irão ficará completamente cercado. A Leste tem o Afeganistão e o Paquistão, que os americanos já controlam. A Norte, as repúblicas da Ásia Central, também cada vez mais dependentes dos EUA. A Oeste a Turquia e o único elo que falta... o Iraque".
01/11/15
A BELA E O MONSTRO
Mário Faria
"La Belle et la Bête" (Jean Cocteau) |
Ela tem 22 anos: é uma menina, graciosa e simpática. Ele tem 42 anos: é careca, mal-amanhado e bronco. O tipo seduziu a pequena que parece ter ficado apaixonada. O pai da jovem, resolveu intervir junto dele: ameaçou-o e agrediu-o. O tipo respondeu e deu-lhe uma tareia. Muita correria, gritaria e sangue a rodos. A polícia interveio e impôs a ordem. O irmão que trabalhava com ele emigrou para parte incerta. Passou a dominar a loja com total soberania e tem agora ao seu serviço: a pequena, a mãe e a tia dela. Entretanto, assinou tréguas com o pai dela que se passeia por perto numa de controlo à distância. Apesar da paz estabelecida, o pai continua muito desconfiado das boas intenções dele: um “burgesso”, separado recentemente da mulher e pai de dois filhos que o detestam, não pode ser boa rês, como diz à boca cheia. De vez em quando, na loja, ouve-se uma berraria nas zonas de confecção, para pouco depois sair tudo a rir às gargalhadas. De-quando-em vez, ele aparece ao balcão, com um fato de trabalho pouco limpo, com a barba por fazer e uma mata de pelos em exposição no peito e nas costas, para atender fornecedores ou para dar ordens ao pessoal, quase sempre de forma grosseira. Esta exposição dele, não cai bem na clientela. Apesar disso, a situação parece controlada (o serviço nem por isso) e ela continua gaiata, simpática e dá sinais de se sentir em paz e feliz, no comando repartido com ele. O equilíbrio familiar é frágil, o negócio incerto. O amor é estranho. Ela é bela, ele um bruto. Que tipo detestável!
Pensava no título para esta estória de gente cá do bairro, quando surge na pantalha televisiva o inenarrável Cava Silva para anunciar que iria indigitar Passos Coelho para formar governo e avisar que uma maioria de esquerda vai no Batalha. Tenho seguido o debate com atenção: o clima de ódio parece instalado por parte da direita e alguns senadores passaram-se dos carretos (Vasco Pulido Valente, António Barreto, Manuela Ferreira Leite….) cada um com o seu registo, mas todos eles unidos na condenação da esquerda ao eterno limbo político. A maioria da comunicação social soçobrou aos ditames do TINA, seja por militância ou por conveniência. O processo reacionário em curso está em marcha; a democracia fica suspensa até à vitória eleitoral de quem merece o mandato de governar: a direita domina todos os recursos para o efeito. A luta de classes no auge, apesar da sua recomposição. Vai ser muito bom assistir e, se possível, participar nesta desigual luta pela justiça social. O Monstro totalitário espreita, sob o manto diáfano do capitalismo global. A luta tem de continuar. A direita é de desconfiar, até prova em contrário.
CARTA IMAGINADA
Ao longe numa linha imperceptível que se estende perante os meus olhos, riscos da madrugada começam a rasgar a noite e uma ténue luz principia a descoberta dos pormenores que eram apenas sombras na escuridão nocturna. Com o surgir desses laivos luminosos, aproveito o curto tempo que ainda me resta para escrever estas que podem ser as minhas últimas palavras que te escrevo. Como chegamos até este labirinto da vida, não o sei. O desenrolar temporal da história humana, empurra-nos, por vezes, por essas estradas pedregosas onde um caminhar digno se torna difícil e perigoso. Quando um povo humilhado, desconsiderado, desprezado, na hora de escolher, opta pela servidão, recusando por medo, a liberdade, quase não deixa outra escolha, aos restantes, que não seja a de nos encontrarmos nesta fronteira da dignidade. Do outro lado, para lá daquela linha invisível onde o dia procura romper as trevas, sabemos que se resguarda a maldade humana, pronta a avançar para esmagar como folhas mortas de Outono, aqueles cujo pensamento recusa a cedência ao poder discricionário dos que se julgam senhores do mundo. Foi longa a noite neste árido terreno onde alinhamos a bandeira da nossa alma entregue ao vento da esperança. Nestas horas intermináveis, procuro a lembrança desses momentos irrepetíveis que são a tua presença nos espaços temporais da minha vida, nesse instante único em que nos conhecemos na Estação dos Afectos. Tinha chegado ao teu país num comboio lento esforçando-se por vencer elevadas montanhas e ao sairmos de um longo túnel, apareceu-nos a pequena aldeia do Silêncio, que perdida nas encostas da cordilheira parecia fender a muralha rochosa numa abertura de serenidade no interior da qual cresceu o agrupamento de casas entre pedra bravia e a protecção do vento agreste. Evoluiu como um recanto tranquilo onde nos entardeceres primaveris se escuta o bater das asas das águias, no intervalo do canto dos ribeiros que descem entre as pedras musgosas num correr constante na procura do caminho para o mar. Deambulei pelas estreitas ruas, as suas vielas escondidas, as suas íngremes escadas, e foi na contemplação do povoado, das varandas cobertas de coloridas flores que me aconselharam a prosseguir viagem até ao interior desse teu país que tão poucos conhecem. Tomei de novo o comboio, e deixei que o meu olhar observador descansasse na amenidade das margens que se ofereciam à nossa passagem. Foi encantado que desembarquei na cidade da Ternura, capital deste teu país. Neste espaço curto de terra onde nos encontramos, ouve-se já o rugido dos motores desse inimigo que não vemos, mas sabemos preparar-se para aprisionar aqueles que se recusam a ceder à infâmia da prepotência, da obscenidade política, do assalto da ignomínia, à vida dos que se recusam ajoelhar-se ou intimidar-se perante o despotismo bastardo de um poder insidioso. Alheio-me da ansiedade que nos invade para regressar ao teu país, ao rolar lento da composição ferroviária, descendo a encosta enquanto ao longe aparecia com mais nitidez essa capital onde vives, essa cidade de sentimentos e emoções com o belo nome de Ternura. Quando sem me aperceber o comboio se imobilizou na bonita arquitectura da Estação dos Afectos não tive dúvidas em reconhecer-te, aguardando pela minha chegada. «Bom dia, sou o Sol da Manhã e gostava de lhe mostrar o meu país», disseste enquanto os teus olhos abraçavam os meus. Assim principiou uma nova viagem dentro da outra, que me levou por manhãs e tardes pelas largas avenidas da cidade da Ternura que se abriam em direcção a nascente para que a luz solar as percorresse em cada um dos dias que se eleva no espaço infinito da Via Láctea. O dia já se ergueu neste local onde nos recolhemos aguardando a Besta. São já visíveis o castanho e verde dos blindados que marcham em cadência ritmada sobre a Liberdade. À força da violência dos degenerados só nos é possível oferecer a força da razão, a liberdade do pensamento. Nas longas horas da noite, enquanto aguardávamos o eclodir desta tempestade maldita, validada por tantos votos, senti-me por momentos na terra dessa Persépolis distante. A cidade grandiosa, Dario e os seus Imortais, o cavalgar de Alexandre, o tomar a posse de Roxana, uma noite de bebedeira descontrolada, a loucura dos oficiais macedónios, as chamas fulgurantes destruindo e incinerando tudo na sua passagem, iluminando ao longe as águas pérsicas e, por fim, a poeira da história, zunindo e cobrindo o que restava na sua passagem, deixando apenas o canto magoado da humanidade. Que restará de nós aqui, após a passagem desta horda vingadora cujos contornos já se desenham nos alvores da manhã? Antes de obter a resposta, procuro o conforto da lembrança dos dias na tua cidade da Ternura. Para lá das avenidas abertas e frondosas, escondem-se as velhas ruas, os recantos carinhosos das fontes, a água cantando como descesse escadas íngremes. Há em cada espaço uma beleza tranquila, apaziguadora que nos reclama, nos apela a ficar, nos incita ao abandono sem resistência. Dias depois, um outro comboio, levou-nos para o litoral, dolente no seu andamento para permitir saborear a paisagem que se estendia exuberante. «No meu país há um rio – disseste com voz sussurrante para que apenas os meus ouvidos escutassem -, nasce a montante da aldeia do Silêncio, desce das montanhas e atravessa a cidade da Ternura, encontra o mar abraçado pelas cidades do Olhar e do Sorriso». Nunca havia conhecido um país assim, com tanta quietude e formosura e as tuas palavras desceram em mim como esse rio de água limpa que corria tranquilo paralelo à via férrea. O dia clareou e já não há dúvida sobre as intenções daqueles que pretendem o assalto final à cidadela da dignidade. Avançam, rolam esmagando os campos e as sementes da vida. Trazem as suas bandeiras carregadas do medo, rostos tapados, mãos enlameadas com a podridão secular do poder que sempre exerceram, aproximam-se devastando as flores da esperança que brotavam como pétalas de alegria em terrenos minados pela pérfida malvadez de mordomos corruptos e sorrisos aleivosos, perseguindo a tolerância, a união daqueles que de alma limpa, espalhavam a semente de um amanhã humano, credível e justo. Justiça, ah!, justiça e liberdade, insígnias de poetas erguidas nas madrugadas rebeldes da história. Saltando entre O Sorriso e o Olhar, sem esquecer o sentimento dos dias passados em Ternura, fui vivendo os momentos mais felizes da minha vida. Havia o mar, o oceano eterno que contemplávamos, ora de uma, ora de outra, das cidades litorais do teu país. Foi num desses instantes, enquanto te olhava, que compreendi que o Sorriso, o Olhar e a Ternura formavam o triângulo de um rosto, o rosto do teu país. Se a felicidade é a tranquilidade da alma, então esses dias, foram dias felizes, e ao constatá-lo ocorre-me a frase em que um personagem de romance dizia, “Se um dia vier a acreditar em Deus, não quero relâmpagos e trovões, quero um sorriso delicado como aquele que aparecia no teu rosto”. O estridente barulho dos primeiros confrontos chega até ao local onde me encontro e a viagem ao teu país aparece-me distante e como nos ensinou Ahmed Haim, “Resta-nos o prazer da memória neste mundo que se apaga e escurece”. Já não há equívocos, a batalha desproporcionada a que nos obrigam estende-se a toda a linha do horizonte, dos seus negros carros saltam milhares de medos, os que nos instilam como blasfémias pérfidas, e os seus próprios, e do rosto dos seus mercenários, destila o ódio pegajoso e imundo da vingança, como se desejassem apagar os seus crimes, com novos e ainda mais mortíferos crimes. Esta carta, vai ter de chegar ao fim para que o tempo ainda me permita fechá-la e endereça-la com destino à cidade da Ternura com a promessa de que, quando chegar o momento em que a pureza e a força da nossa razão seja vencida pela contundência imoral destes eunucos inquisitoriais, farei como me disseste para fazer numa outra dessas difíceis despedidas das coisas ou das pessoas que amamos, «agarra-te os meus olhos». Será agarrado a eles que viajarei para o lugar do sonho.
“[…] ele o dono dos bancos, das companhias,
das empresas, das fábricas, ele o dono de tudo
e eu um palhaço entre tantos palhaços, dúzias
de palhaços à sua volta nos jantares, no
escritório, na casa, […]”
António Lobo Antunes, em Da Natureza dos Deuses
Afonso Anes Penedo
PS – Meu Sol da Manhã, «flor dos meus dias», reabro esta carta. Num último momento, no auge deste embate impiedoso e mortal, surgem da retaguarda novas forças que se juntam a esta batalha pela dignidade, engrossam estas fileiras tão reduzidas querendo inverter o que parecia já decidido. Aproveitamos esta janela de esperança para voltar a caminhar nessa utopia de voar entre as estrelas e cresce em mim o alento de poder voltar ao teu país e abraçar-te de novo na cidade da Ternura.
1 Afonso Cruz, em Flores, Companhia das Letras, 2015
2 Yasmin Crowther, em A Cozinha de Açafrão
3 Idem
O EFEITO GREGO
Mário Martins
https://www.google.pt/search?q=greece+europe+negotiations+images&tbm
“O nosso povo é muito manhoso, imprevisível, e capaz de coisas muito grandes.”
Fernando Dacosta, Jornalista e Escritor (Jornal i 2013-08-09)
Sob o espectro da realização, a curto prazo, de eleições antecipadas, que a maioria do eleitorado não costuma perdoar a quem as provoca sem motivo justificado, a melhoria, que seria legítimo esperar, da situação política portuguesa, em resultado das eleições de 4 de Outubro, uma vez que o novo governo, sem base maioritária monocolor, deveria seguir, ao invés do anterior, uma via de negociação, deu lugar à confusão, no momento em que escrevo, do processo de formação de maiorias parlamentares, liderado, à direita, por uma coligação de partidos que ganhou as eleições e, à esquerda, por um partido que as perdeu. No entanto, para compensar a incógnita do governo, sem dúvida que constituirá um acontecimento positivo para o regime, a próxima substituição de um presidente sem tempo para presidir às comemorações da República.
Isto, porém, não deve evitar a grande questão: por que é que uma coligação de partidos de direita que, nos últimos quatro anos, apertou, drasticamente, o “cinto” da maioria dos portugueses ou que, no dizer da oposição mais à esquerda, roubou ou espoliou pensões e salários, voltou a ganhar as recentes eleições, embora perdendo a maioria?
Haverá, certamente, várias razões (os analistas destacam a eficácia da sua campanha eleitoral), mas eu daria especial relevância a dois factores externos: por um lado, a coligação governou sob os ditames dos credores externos (embora, numa primeira fase, afirmando-se ideologicamente de acordo e, até, além deles), tendo, entretanto, na sua narrativa, conseguido, formalmente, acabar com o regime de “protectorado”; por outro lado, talvez o factor mais importante, aquele a que eu chamaria o efeito grego, ou seja, o insucesso, até agora, da resistência política grega ao directório político-financeiro europeu.
O efeito grego estará igualmente a afectar as sondagens em Espanha, que voltaram a colocar os partidos tradicionais nos primeiros lugares.
O gráfico a seguir mostra, sem mais comentários, os resultados eleitorais, em perspectiva desde 1999, ano em que o Bloco de Esquerda elegeu pela primeira vez deputados:
A NOVA LINGUAGEM
António Mesquita
http://hive.themiscollection.com/A/!AFL/LaRevolutionFrancaise
"Desde há aproximadamente meio século, o poder régio tinha-se habituado a falar a linguagem dos seus inimigos, a da "constituição" e da "legalidade".
(Chaussant Nogaret, citado no "Livro Negro da Revolução Francesa")
Esta observação sobre a Revolução Francesa confirma a ideia de Karl Marx de que a substituição dos poderes durante a revolução é a conclusão de uma preparação gradual das relações sociais, em que a linguagem e as ideias dos inimigos do regime vão tomando posições a que só faltaria, depois, o acto simbólico de içar a bandeira ou decapitar o rei.
Vemos aí por que razão tinha de falhar a Revolução bolchevique. Os novos poderes só podiam governar num 'travesti' do regime absolutista. O partido converteu os quadros do czarismo e formou os seus apoiantes, substituindo por outro o formalismo do czarismo, para lidar com uma realidade social e económica que, no fundo, não mudara.
Na Europa do pós-Muro de Berlim a linguagem do poder é, cada vez mais, a dos economistas arregimentados. Não está à vista nenhuma espécie de ventriloquismo do futuro. As chamadas alternativas deixaram-se transformar em glaciares onde a vida não pode vingar; são museus de história política que não podem fazer frente à monstruosidade táctica do sistema que conseguiu enlear um baluarte da 'dita alternativa' como a China.
Em resumo, se um novo poder se faz preceder por uma linguagem nova, só a da tecnologia parece apresentar-se como tal. É não-humana, impessoal e idealmente táctica.
YOGA PARA NERVOSOS
Perante a perspectiva de formação de um governo alternativo ao governo do PSD/CDS, os comentadores de todos os órgãos de comunicação, particularmente os dos canais televisivos, que entram a qualquer momento nas nossas casas, têm tomado posições de facção, defendendo posições sem nexo com os resultados eleitorais e com as regras estabelecidas na Constituição da República, com o objectivo de intoxicar a opinião pública, afirmando com tom ameaçador que tudo o que virá será ruim para o pais. Falsificam descaradamente e sem vergonha as posições políticas dos partidos que estão a negociar um novo governo, lançam mentiras para perturbar e criar dúvidas nas pessoas.
Alguns, sem pejo, falam, em programas televisivos, em guerra civil e em cavacocídio, outros defendem revisões constitucionais fulminantes para entregar o governo de acordo com as suas conveniências, atribuindo bónus de deputados para transformar maiorias relativas em maiorias absolutas.
Com estes comportamentos insultuosos, esta gente também está a revelar uma desgraçada insatisfação perante um futuro incerto para as suas actividades de “voz do dono”. Há muito nervosismo. Muita gente vai adoecer.
Sócrates, o grego, dizia “todo o bem e mal, quer no corpo ou na natureza humana origina-se na alma e daí extravasa… Portanto, para curar o corpo, deve-se começar curando a alma”.
Milhares de anos antes, o poema épico da India – Mahabharata – considerava que “existem duas espécies de doenças – física e mental. Uma se origina da outra. A existência de uma não é percebida sem a outra. As perturbações mentais originam-se das físicas e, de igual maneira, as perturbações físicas originam-se das mentais”.
O Yoga tem origem em correntes filosóficas desse tempo. Hoje está divulgado por todo o lado. Há cada vez mais pessoas a praticar Yoga e chega já às escolas e infantários.
José Hermógenes de Andrade, brasileiro, grande divulgador do Yoga, publicou uma obra muito importante, nos anos sessenta do século passado, “YOGA PARA NERVOSOS”.
Por isso, aconselho esses jornalistas, esses analistas políticos, esses comentadores e aos políticos e seus afilhados que estão na eminência de caírem que comecem a praticar Yoga, pois é um eficiente tratamento natural sem drogas e sem efeitos colaterais lesivos.
01/10/15
CARTA AO MEDITERRÂNEO
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Estimado Mediterrâneo, escrevo-te nestes dias amargos, em que um drama persiste angustiando a alma humana, arrastando-nos a memória para os dias de trevas e nevoeiros pérfidos que nos esmagam a nobreza dos gestos e a delicadeza dos sentidos. Não, não são as tuas ondas alteradas a esmagar as areias das praias que o deserto faz transbordar nas tuas margens, nem são os teus dias invernais em que desejas estar sozinho no volume das tuas águas tocando o céu. É uma dor humana antiga que galgou as páginas da história e brota como um furúnculo sobre as tuas marés. É essa dor que nos magoa e nos faz escutar esse canto longínquo gritado do mais profundo da garganta, um cântico feminino, um som que vagueia no desespero da perda e da impotência em fazer parar esta sangria em que se esvai a humanidade. Um canto africano e um outro árabe que nos acorda a cada madrugada com o peito dorido de tanto sofrimento. É um sangrar sem sangue, porque essas aves humanas que se servem das tuas águas para caminhar à procura de esperança, de sonhos roubados, de sossego para o seu corpo esfaimado de pão e de paz, sucumbem no silêncio de um afogamento, sem nome e sem pátria, ficando a flutuar até que as correntes os arrastem para um descanso final. E tu, Mediterrâneo, na inocência do teu azul marítimo vais cobrando tributo para que a maldade humana não fique impune, mas fica, porque os «mandadores sem lei», permanecem incólumes com a conivência de todos nós, sentados no trono imperial da sua perversa desumanidade, suportados pelos seus aviões, os seus carros de combate, as suas mentiras, as suas torturas, a sua desfaçatez, a sua hipócrita e insolente democracia. Quando tomba a noite, quando os olhos nos encerram dentro do manto nocturno, ressurge aquele canto, aquele grito rouco de cansaço, vem voando dos oásis que alimentam os desertos terrestres e permitem a sobrevivência humana, chega, lento e distante, clamando pelos seus filhos, tão escuros, tão negros na sua pele, e tão alvos nos seus sonhos e na sua vontade de uma vida nobre e digna. Desperto o olhar como resistência a este atropelo miserável a que sujeitam a condição humana, mas acordo estupefacto numa pequena praia turca e sinto o estupor do inacreditável. Faz-se silêncio, um enorme silêncio, como se se escutasse os pequenos sons de uma ave planando na madrugada. Imóvel, beijando a areia, num enlaçar eterno e meigo, e tudo deixa de fazer sentido, a beleza adquire a grandeza do inqualificável, do insuportável, e o cântico transformado em clamor, regressa, sem lágrimas, esgotadas por tanto sofrimento, tanta violência, parece esvair-se vencido pela crueldade dos senhores do mundo e até os três grandes deuses que reinam nas tuas margens se sentem impotentes para deter esta corrente de águas sujas e lamacentas com que essa imundície que se senta no poder dos Estados, faz crescer sobre as tuas águas eternas. O holocausto palestiniano, transferido para a Europa e pelo continente voltam a ouvir-se os comboios a rolar em direcção a campos de concentração ou de reunião, regressam as tatuagens nos membros superiores com números que substituem a identificação, há de novo arame farpado estendido para impedir fugas e invasões, e polícias, militares, a pureza das raças, sobretudo a preservação de olhos azuis, pele branca e cabelos dourados. Bombardearam-lhes as casas, destruíram-lhes as instituições, fizeram colapsar os seus Estados e agora negam-lhes instantes de repouso, de uma vivência digna, de um dia com comer e sem bombas. E assim, continuo a acordar de madrugada e os meus olhos enchem-se com as tuas águas polvilhadas de cadáveres, de gente aflita, de mãos sangrando, e os meus ouvidos acumulam o lamento que voga sem destino nesse que já foi «Mare Nostrum» e de alma devastada regresso sem fim às águas de uma pequena praia da antiga Ásia Menor e o pequeno rosto, estático, sereno, sem vida, a exigir contas a todos nós. Amin Maalouf escreveu que o «Oriente muçulmano e o Ocidente de tradição cristã estão imersos num diálogo de surdos» e hoje, acrescenta, talvez mais do que nunca, digo eu, necessitamos de «um diálogo das almas». Pensavas tu, estimado Mediterrâneo ter visto tudo, fenícios e cartagineses, trirremes gregas, cruzados vingadores, corsários, a batalha de Lepanto, árabes e otomanos, culturas e religiões, mas faltava-te ainda esta tragédia, esta violência ilimitada de fazer morrer gente que procura a esperança, um lugar, apenas um lugar onde possam viver dignamente. E as tuas águas propícias a navegações, a velas desfraldadas, que se habituaram a unir espaços, transformam-se numa gigantesca necrópole, sem cruzes, apenas de covas profundas e incógnitas. Estimado Mediterrâneos as estradas do teu mar vão continuar a sugar vidas indefesas, gentes de aquém e de além, num infernal ciclo semeado por diabólicas ganâncias e perversos interesses, e nós, na nossa impotente complacência, ainda não nos apercebemos que os sinos que tocam, não o fazem apenas pelos que vão, estão antes dobrando por todos nós. Mar Mediterrâneo, encerro esta minha dolorosa carta com um abraço de esperança.
«Regardez notre mer,
amoureuse du ciel,
elle a le doux gout du miel.
En remontant les vagues
ells ne veut qu’embrasser
et donner un baiser
à ses nuages.»
Manuel Forcano em Mireu el Nostre Mar
Afonso Anes Penedo
2ª. CARTA DO UNIVERSO AOS HUMANOS
Mário Martins
https://www.google.pt/search?q=religi%C3%A3o&tbm |
Na carta anterior queixava-me da minha relativização, resultante da recente teoria dos universos paralelos, mas, para falar francamente, não sei o que será pior, se isso se a vossa antiquíssima crença em Deus(es) fora e acima de mim. Está fora de questão, pese aos ateístas, que eu, chamem-me Universo ou Natureza, tenha uma essência divina, no estrito mas incontornável sentido de me autojustificar. Mas que daí imaginem um mundo sobrenatural e criem Deus(es) à vossa imagem e semelhança, é um passo só explicável por a única inteligência sofisticada que conhecem ter forma humana e, principalmente, devo reconhecer, pelo facto de eu ser imperfeito apesar de divino. Compreendo que um mundo tão marcado pelo sofrimento não possa ser considerado perfeito. A(s) Religião(ões) é, assim, a vossa defesa da imperfeição do mundo. Ela possui a arte de transformar a imperfeição em perfeição, o mal em bem, o sofrimento em prova, a morte em passagem. Ela dá o alento necessário para suportar aquilo que a humanidade em geral acredita que são os insondáveis desígnios de Deus(es). Ela permite que a vossa imaginação crie mundos mitológicos perfeitos, intangíveis e sagrados, em oposição a mim, imperfeito, tangível e profano. A(s) Religião(ões) é uma reacção compreensível do vosso pensamento e imaginação à imperfeição real do mundo, que nenhuma outra disciplina está em condições de substituir. E no entanto, sem falsa modéstia, eu reúno em mim as qualidades de profano e de sagrado. Sou concreto e abstracto, tangível e intangível. Sou a fonte da vida e da inteligência. Sou a realidade objectiva e subjectiva, quero dizer, a realidade que vos é exterior e a realidade física e psicológica de observadores inteligentes do mundo. Sou o Todo. Assim falou o Universo.
PROVIDÊNCIA
António Mesquita
"Hoje, porém, já ninguém quererá afirmar que a qualidade da vida social colectiva melhora necessariamente com a crescente complexidade dos sistemas sociais."
Jürgen Habermas
Na origem desta concepção está, claro, a própria ideia do progresso. "O iluminismo traz inerente a si a irreversibilidade de processos de aprendizagem fundamentada no facto de que as formas de compreensão não podem ser esquecidas a belprazer, mas sim e apenas reprimidas ou corrigidas por outras melhores." (idem) O século XX, bastou para nos lembrar, porém, que podemos sempre voltar à barbárie. Nada está garantido, nem nada se aprende para sempre.
Ao mesmo tempo, aparece-nos a própria complexidade dos sistemas como implicando em si um 'progresso'. Ora, só pudemos crescer até aos números da actualidade desenvolvendo sistemas de organização cada vez mais complexos. Não é possível, porém, comparar a qualidade da vida social pelo tamanho do formigueiro humano ou pela velocidade da comunicação.
A ideia hegeliano-marxista de alienação é um avatar da clássica separação do corpo e do espírito no indivíduo, transformada no messianismo de uma classe produtora dominada pelas próprias condições do seu trabalho. Mas como, cada vez mais, se deve referir a dominação social à complexidade (que pode conservar os antagonismos de uma forma impenetrável, e até 'inobjectável' para a antiga argumentária), quase que poderíamos dizer que estamos perto de criar uma nova Providência e a viver as condições presentes num estado nunca visto de despolitização.
TEMPOS CONTURBADOS
Manuel Joaquim
O Papa Francisco
O Papa Francisco, na viagem que efectuou a Cuba e aos EUA, numa das suas intervenções públicas, referiu-se a que o mundo está a sofrer a terceira guerra mundial, faseadamente. O presidente da Bieolorrússia, Lukashenko, no discurso que fez na Assembleia Geral das Nações Unidas, disse que o mundo está a caminhar para a terceira guerra mundial.
A partir deste mês de Outubro deixam de existir ligações aéreas entre a Ucrânia e a Rússia. Continua a haver uma grande concentração de material bélico muito sofisticado, especialmente nos países da Europa Central e do Leste.
No Médio Oriente, a guerra entrou numa nova fase. A Rússia, em apoio às autoridades da Síria, enviou aviação, mísseis, tanques e pessoal militar para combater terroristas que são municiados por países inimigos da Síria. Foi formado no Iraque um comando operacional conjunto pela Rússia, Iraque, Irão e Síria para coordenação das operações militares. O discurso de Putin na Assembleia Geral da Nações Unidas foi claro sobre os problemas do terrorismo e da Síria. Obama organizou uma reunião com representantes de países fora das estruturas da ONU que não foi bem aceite. A CNN refere que Obama foi secundarizado e ultrapassado. A França, pela primeira vez, fez um ataque aéreo a território da Síria sem respeitar a sua soberania. A iniciativa da Rússia perturbou os países ditos ocidentais, fortemente interessados na alteração política na Síria com vista a manter os seus interesses imperiais na região.
As tentativas para derrubar os governos do Brasil, da Venezuela, da Argentina e outros mantêm-se, apesar de terem sido eleitos segundo as regras da chamada democracia ocidental e suficientemente fiscalizadas internacionalmente.
Em contraponto ao atrás referido, é de saudar o início de relações entre Cuba e os EUA com um papel muito importante desempenhado pelo Vaticano e pelo próprio Papa, reconhecido por ambas as partes. Como é de saudar as negociações que ainda estão a decorrer em Cuba entre as FARC e o governo da Colômbia, para pôr fim à guerrilha mais antiga do mundo que envolve muitos milhares de combatentes directos e indirectos, e que certamente vão chegar a acordo. Outros conflitos existentes entre países da América do Sul, nomeadamente de fronteiras, estão a ser negociados pacificamente.
Duas guerras mundiais tiveram como principal cenário a Europa. Viveram-se 50 anos de paz depois da 2a. guerra mundial. Entretanto os ventos da guerra chegaram através da ex-Jugoslávia. A comunicação social dominante não informa com isenção nem divulga os valores da Paz. É importante que as pessoas defendam um mundo sem guerras e em PAZ.
Estamos em plena campanha eleitoral. Ontem, na Antena UM, ouvi que a ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, mandou dar uma "martelada" nas contas da empresa Parvalorem que gere valores do ex-BPN. As justificações e comentários feitos pelos próprios intervenientes, dados a público em diversos jornais, confirmam que, na verdade, houve "martelada" nas contas. Alguns comentadores ficaram zangados com o termo "martelada".
Sorri. Sorri pelos comentários dos comentadores. Para quem não sabe, "Martelada" é da gíria dos contabilistas, há muitos anos, quando fazem alterações de resultados nas contas das empresas. A maior parte são ignorantes e não sabem como se "fazem" os resultados nas grandes (e outras) empresas nem como são administradas.
Quantas empresas branqueiam (ou agravam) os seus resultados para atingirem os seus objectivos, mesmo com a existência dos órgãos legalmente estabelecidos para fiscalização, designadamente, Conselhos Fiscais, Conselhos Gerais, auditores internos e externos, e com instituições de supervisão? Quantas sociedades anónimas realizam, efectivamente, as respectivas assembleias gerais de accionistas? E as que realmente se realizam como funcionam?
O que se está a passar com a falsificação dos motores dos carros do grupo VW? Anda o mundo inteiro a tomar medidas contra a poluição, aplicam-se multas a empresas e países, são retirados dos mercados produtos poluentes e aparece agora (desde há anos) o maior fabricante mundial a contaminar o ambiente e a fazer concorrência desleal aos outros construtores e a impor-lhes restrições que não cumpre. E os carros fabricados em Palmela (EOS) exportados para a China e que as autoridades locais já mandaram recolher por problemas detectados na coluna de direcção e que até agora não foram objecto de grande notícia. É a lógica do lucro, do lucro máximo, não olhando a meios para atingir os objectivos do grande capital. É o sistema a funcionar. O governo alemão já veio a público dizer que está perante actos criminosos, que serão julgados.
Num país com alguma dignidade democrática a ministra Maria Luís Albuquerque já não devia fazer parte do governo (não esquecendo a responsabilidade que teve em contratos de parcerias público privadas).
Ricardo Salgado não está isolado nos seus processos de gestão.
O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social que detém a gestão do Fundo Especial dos Seguros, com receitas próprias, não publica os Relatórios e Contas desde 2008, não respeitando a legislação em vigor. A justificação é que perderam a informação relativa ao Fundo.
O Fundo esteve anos sem pagar o subsídio de lar a muitos segurados (beneficiários). Alguns foram reembolsados de valores atrasados depois de reclamarem. Mas certamente há outros que por ignorância perderam dinheiro. Como é possível situações destas? Os milhões de euros disponíveis não terão sido utilizados para outros fins?
Discute-se muito o problema da Segurança Social, do plafonamento, de cortes nas pensões de reforma, nas actuais, que estão em pagamento, e nas futuras, a pagar aos novos reformados, com o argumento de que número de activos está a dimlnuir, que o número de utentes está a aumentar e que o país está a ter um problema grave em termos de população.
Ninguém fala sobre os montantes em dívida à Segurança Social, dos montantes utilizados para indemnizar trabalhadores por despedimento para facilitar a reconversão das empresas, dos investimentos efectuados em produtos lixo do sector financeiro e da falta de controlo sobre os critérios de utilização dos dinheiros existentes. A maior parte dos comentários sao feitos sem qualquer fundamentação, funcionam por simpatia e servem pare levar as pessoas a aceitarem o agravamento das condições de vida como inevitável.
Na primeira quinzena do mês de Setembro foi publicado um estudo sobre a população portuguesa, com informações muito importantes sobre a realidade passada, presente e perspectivas até ao ano 2040, suas implicações na economia, no investimento e na organização do território.
Foi publicado em Iivro, pela Gradiva, e tem como autores:
- Eduardo Anselmo Castro, professor no Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro, especialista em técnicas de análise de apoio à informação e políticas de inovação e desenvolvimento regional. Coordena a unidade de investigação em Governança, Competitividade e Políticas Públicas.
- Jose Manue! Martins, professor no Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro, especialista em técnicas de análise de dados e economia e gestão do ambiente. Foi vice-presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional da Região Centro.
- Carlos Jorge Silva, investigador no Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro, especialista em demografia e avaliação de políticas públicas.
"A Demografia e o País — Previsões cristalinas sem bola de cristal" é o título do Iivro.
Para quem procura informações para estar devidamente informado não pode ignorar este trabalho.
01/09/15
CARTA DO UNIVERSO AOS HUMANOS
https://www.google.pt/search?q=multiverso&tbm
Decidi escrever-vos apesar de ainda estar um pouco melindrado com a vossa atitude de começarem a falar de mim em termos relativos, o nosso universo para aqui, os universos paralelos para ali, o multiverso para acolá, tudo isto sem provas científicas, quero dizer sem teorias comprovadas pela experiência, mas apenas fruto de especulações baseadas em modelos matemáticos, eu bem avisei o departamento de informática que o acesso à matemática acabaria por prejudicar a minha reputação, mas sabem como são os informáticos, seja lá o que for ou é 0 ou é 1, eu que ainda há poucos anos era escrito com U maiúsculo, querendo com isso significar-se que eu era tudo o que existe ou possa existir, conhecido ou não, paralelo ou perpendicular, material, anti-material ou imaterial, em quatro ou numa infinidade de dimensões, era, enfim, um Senhor Absoluto, para não dizer simplesmente O Senhor e assim correr o risco de ferir susceptibilidades religiosas, agora sou apenas um universo local, uma entre um numero infinito de “bolhas”, desculpando-me o termo pois podem pensar que estou a fazer paródia com a outra “bolha”, a imobiliária, que tanto vos apoquenta, mas os vossos físicos teóricos é que o usam para dar uma imagem da possibilidade de existência múltipla de universos. Adiante. O que eu queria realmente dizer-vos é que compreendo a vossa incompreensão. De facto não é fácil conceber que, segundo o estádio actual da ciência, eu tenha nascido do nada há cerca de 14.000 milhões de anos, que a vida no vosso planeta só tenha aparecido mais de 10.000 milhões de anos depois, e que vós, os humanos, apenas tenham evoluído dos macacos há uns meros 2 milhões de anos. Quer isto dizer que praticamente durante toda a minha existência não tive observadores inteligentes no vosso planeta. Se tive, tenho ou terei noutros mundos, é coisa que não vou dizer a seres que se ufanam de possuírem livre arbítrio. Não vos maço mais por hoje, já bastam as vossas atribulações quotidianas, mas seguramente que voltarei a escrever-vos, agora que encontrei o vosso endereço electrónico. Assim falou o Universo.
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