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01/11/15

CARTA IMAGINADA




Ao longe numa linha imperceptível que se estende perante os meus olhos, riscos da madrugada começam a rasgar a noite e uma ténue luz principia a descoberta dos pormenores que eram apenas sombras na escuridão nocturna. Com o surgir desses laivos luminosos, aproveito o curto tempo que ainda me resta para escrever estas que podem ser as minhas últimas palavras que te escrevo. Como chegamos até este labirinto da vida, não o sei. O desenrolar temporal da história humana, empurra-nos, por vezes, por essas estradas pedregosas onde um caminhar digno se torna difícil e perigoso. Quando um povo humilhado, desconsiderado, desprezado, na hora de escolher, opta pela servidão, recusando por medo, a liberdade, quase não deixa outra escolha, aos restantes, que não seja a de nos encontrarmos nesta fronteira da dignidade. Do outro lado, para lá daquela linha invisível onde o dia procura romper as trevas, sabemos que se resguarda a maldade humana, pronta a avançar para esmagar como folhas mortas de Outono, aqueles cujo pensamento recusa a cedência ao poder discricionário dos que se julgam senhores do mundo. Foi longa a noite neste árido terreno onde alinhamos a bandeira da nossa alma entregue ao vento da esperança. Nestas horas intermináveis, procuro a lembrança desses momentos irrepetíveis que são a tua presença nos espaços temporais da minha vida, nesse instante único em que nos conhecemos na Estação dos Afectos. Tinha chegado ao teu país num comboio lento esforçando-se por vencer elevadas montanhas e ao sairmos de um longo túnel, apareceu-nos a pequena aldeia do Silêncio, que perdida nas encostas da cordilheira parecia fender a muralha rochosa numa abertura de serenidade no interior da qual cresceu o agrupamento de casas entre pedra bravia e a protecção do vento agreste. Evoluiu como um recanto tranquilo onde nos entardeceres primaveris se escuta o bater das asas das águias, no intervalo do canto dos ribeiros que descem entre as pedras musgosas num correr constante na procura do caminho para o mar. Deambulei pelas estreitas ruas, as suas vielas escondidas, as suas íngremes escadas, e foi na contemplação do povoado, das varandas cobertas de coloridas flores que me aconselharam a prosseguir viagem até ao interior desse teu país que tão poucos conhecem. Tomei de novo o comboio, e deixei que o meu olhar observador descansasse na amenidade das margens que se ofereciam à nossa passagem. Foi encantado que desembarquei na cidade da Ternura, capital deste teu país. Neste espaço curto de terra onde nos encontramos, ouve-se já o rugido dos motores desse inimigo que não vemos, mas sabemos preparar-se para aprisionar aqueles que se recusam a ceder à infâmia da prepotência, da obscenidade política, do assalto da ignomínia, à vida dos que se recusam ajoelhar-se ou intimidar-se perante o despotismo bastardo de um poder insidioso. Alheio-me da ansiedade que nos invade para regressar ao teu país, ao rolar lento da composição ferroviária, descendo a encosta enquanto ao longe aparecia com mais nitidez essa capital onde vives, essa cidade de sentimentos e emoções com o belo nome de Ternura. Quando sem me aperceber o comboio se imobilizou na bonita arquitectura da Estação dos Afectos não tive dúvidas em reconhecer-te, aguardando pela minha chegada. «Bom dia, sou o Sol da Manhã e gostava de lhe mostrar o meu país», disseste enquanto os teus olhos abraçavam os meus. Assim principiou uma nova viagem dentro da outra, que me levou por manhãs e tardes pelas largas avenidas da cidade da Ternura que se abriam em direcção a nascente para que a luz solar as percorresse em cada um dos dias que se eleva no espaço infinito da Via Láctea. O dia já se ergueu neste local onde nos recolhemos aguardando a Besta. São já visíveis o castanho e verde dos blindados que marcham em cadência ritmada sobre a Liberdade. À força da violência dos degenerados só nos é possível oferecer a força da razão, a liberdade do pensamento. Nas longas horas da noite, enquanto aguardávamos o eclodir desta tempestade maldita, validada por tantos votos, senti-me por momentos na terra dessa Persépolis distante. A cidade grandiosa, Dario e os seus Imortais, o cavalgar de Alexandre, o tomar a posse de Roxana, uma noite de bebedeira descontrolada, a loucura dos oficiais macedónios, as chamas fulgurantes destruindo e incinerando tudo na sua passagem, iluminando ao longe as águas pérsicas e, por fim, a poeira da história, zunindo e cobrindo o que restava na sua passagem, deixando apenas o canto magoado da humanidade. Que restará de nós aqui, após a passagem desta horda vingadora cujos contornos já se desenham nos alvores da manhã? Antes de obter a resposta, procuro o conforto da lembrança dos dias na tua cidade da Ternura. Para lá das avenidas abertas e frondosas, escondem-se as velhas ruas, os recantos carinhosos das fontes, a água cantando como descesse escadas íngremes. Há em cada espaço uma beleza tranquila, apaziguadora que nos reclama, nos apela a ficar, nos incita ao abandono sem resistência. Dias depois, um outro comboio, levou-nos para o litoral, dolente no seu andamento para permitir saborear a paisagem que se estendia exuberante. «No meu país há um rio – disseste com voz sussurrante para que apenas os meus ouvidos escutassem -, nasce a montante da aldeia do Silêncio, desce das montanhas e atravessa a cidade da Ternura, encontra o mar abraçado pelas cidades do Olhar e do Sorriso». Nunca havia conhecido um país assim, com tanta quietude e formosura  e as tuas palavras desceram em mim como esse rio de água limpa que corria tranquilo paralelo à via férrea. O dia clareou e já não há dúvida sobre as intenções daqueles que pretendem o assalto final à cidadela da dignidade. Avançam, rolam esmagando os campos e as sementes da vida. Trazem as suas bandeiras carregadas do medo, rostos tapados, mãos enlameadas com a podridão secular do poder que sempre exerceram, aproximam-se devastando as flores da esperança que brotavam como pétalas de alegria em terrenos minados pela pérfida malvadez de mordomos corruptos e sorrisos aleivosos, perseguindo a tolerância, a união daqueles que de alma limpa, espalhavam a semente de um amanhã humano, credível e justo. Justiça, ah!, justiça e liberdade, insígnias de poetas erguidas nas madrugadas rebeldes da história. Saltando entre O Sorriso e o Olhar, sem esquecer o sentimento dos dias passados em Ternura, fui vivendo os momentos mais felizes da minha vida. Havia o mar, o oceano eterno que contemplávamos, ora de uma, ora de outra, das cidades litorais do teu país. Foi num desses instantes, enquanto te olhava, que compreendi que o Sorriso, o Olhar e a Ternura formavam o triângulo de um rosto, o rosto do teu país. Se a felicidade é a tranquilidade da alma, então esses dias, foram dias felizes, e ao constatá-lo ocorre-me a frase em que um personagem de romance dizia, “Se um dia vier a acreditar em Deus, não quero relâmpagos e trovões, quero um sorriso delicado como aquele que aparecia no teu rosto”. O estridente barulho dos primeiros confrontos chega até ao local onde me encontro e a viagem ao teu país aparece-me distante e como nos ensinou Ahmed Haim, “Resta-nos o prazer da memória neste mundo que se apaga e escurece”. Já não há equívocos, a batalha desproporcionada a que nos obrigam estende-se a toda a linha do horizonte, dos seus negros carros saltam milhares de medos, os que nos instilam como blasfémias pérfidas, e os seus próprios, e do rosto dos seus mercenários, destila o ódio pegajoso e imundo da vingança, como se desejassem apagar os seus crimes, com novos e ainda mais mortíferos crimes. Esta carta, vai ter de chegar ao fim para que o tempo ainda me permita fechá-la e endereça-la com destino à cidade da Ternura com a promessa de que, quando chegar o momento em que a pureza e a força da nossa razão seja vencida pela contundência imoral destes eunucos inquisitoriais, farei como me disseste para fazer numa outra dessas difíceis despedidas das coisas ou das pessoas que amamos, «agarra-te os meus olhos». Será agarrado a eles que viajarei para o lugar do sonho.

“[…] ele o dono dos bancos, das companhias,
das empresas, das fábricas, ele o dono de tudo
e eu um palhaço entre tantos palhaços, dúzias
de palhaços à sua volta nos jantares, no 
escritório, na casa, […]”

António Lobo Antunes, em Da Natureza dos Deuses

Afonso Anes Penedo


PS – Meu Sol da Manhã, «flor dos meus dias», reabro esta carta. Num último momento, no auge deste embate impiedoso e mortal, surgem da retaguarda novas forças que se juntam a esta batalha pela dignidade, engrossam estas fileiras tão reduzidas querendo inverter o que parecia já decidido. Aproveitamos esta janela de esperança para voltar a caminhar nessa utopia de voar entre as estrelas e cresce em mim o alento de poder voltar ao teu país e abraçar-te de novo na cidade da Ternura. 


1 Afonso Cruz, em Flores, Companhia das Letras, 2015
2 Yasmin Crowther, em A Cozinha de Açafrão
3 Idem


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