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Estimado Mediterrâneo, escrevo-te nestes dias amargos, em que um drama persiste angustiando a alma humana, arrastando-nos a memória para os dias de trevas e nevoeiros pérfidos que nos esmagam a nobreza dos gestos e a delicadeza dos sentidos. Não, não são as tuas ondas alteradas a esmagar as areias das praias que o deserto faz transbordar nas tuas margens, nem são os teus dias invernais em que desejas estar sozinho no volume das tuas águas tocando o céu. É uma dor humana antiga que galgou as páginas da história e brota como um furúnculo sobre as tuas marés. É essa dor que nos magoa e nos faz escutar esse canto longínquo gritado do mais profundo da garganta, um cântico feminino, um som que vagueia no desespero da perda e da impotência em fazer parar esta sangria em que se esvai a humanidade. Um canto africano e um outro árabe que nos acorda a cada madrugada com o peito dorido de tanto sofrimento. É um sangrar sem sangue, porque essas aves humanas que se servem das tuas águas para caminhar à procura de esperança, de sonhos roubados, de sossego para o seu corpo esfaimado de pão e de paz, sucumbem no silêncio de um afogamento, sem nome e sem pátria, ficando a flutuar até que as correntes os arrastem para um descanso final. E tu, Mediterrâneo, na inocência do teu azul marítimo vais cobrando tributo para que a maldade humana não fique impune, mas fica, porque os «mandadores sem lei», permanecem incólumes com a conivência de todos nós, sentados no trono imperial da sua perversa desumanidade, suportados pelos seus aviões, os seus carros de combate, as suas mentiras, as suas torturas, a sua desfaçatez, a sua hipócrita e insolente democracia. Quando tomba a noite, quando os olhos nos encerram dentro do manto nocturno, ressurge aquele canto, aquele grito rouco de cansaço, vem voando dos oásis que alimentam os desertos terrestres e permitem a sobrevivência humana, chega, lento e distante, clamando pelos seus filhos, tão escuros, tão negros na sua pele, e tão alvos nos seus sonhos e na sua vontade de uma vida nobre e digna. Desperto o olhar como resistência a este atropelo miserável a que sujeitam a condição humana, mas acordo estupefacto numa pequena praia turca e sinto o estupor do inacreditável. Faz-se silêncio, um enorme silêncio, como se se escutasse os pequenos sons de uma ave planando na madrugada. Imóvel, beijando a areia, num enlaçar eterno e meigo, e tudo deixa de fazer sentido, a beleza adquire a grandeza do inqualificável, do insuportável, e o cântico transformado em clamor, regressa, sem lágrimas, esgotadas por tanto sofrimento, tanta violência, parece esvair-se vencido pela crueldade dos senhores do mundo e até os três grandes deuses que reinam nas tuas margens se sentem impotentes para deter esta corrente de águas sujas e lamacentas com que essa imundície que se senta no poder dos Estados, faz crescer sobre as tuas águas eternas. O holocausto palestiniano, transferido para a Europa e pelo continente voltam a ouvir-se os comboios a rolar em direcção a campos de concentração ou de reunião, regressam as tatuagens nos membros superiores com números que substituem a identificação, há de novo arame farpado estendido para impedir fugas e invasões, e polícias, militares, a pureza das raças, sobretudo a preservação de olhos azuis, pele branca e cabelos dourados. Bombardearam-lhes as casas, destruíram-lhes as instituições, fizeram colapsar os seus Estados e agora negam-lhes instantes de repouso, de uma vivência digna, de um dia com comer e sem bombas. E assim, continuo a acordar de madrugada e os meus olhos enchem-se com as tuas águas polvilhadas de cadáveres, de gente aflita, de mãos sangrando, e os meus ouvidos acumulam o lamento que voga sem destino nesse que já foi «Mare Nostrum» e de alma devastada regresso sem fim às águas de uma pequena praia da antiga Ásia Menor e o pequeno rosto, estático, sereno, sem vida, a exigir contas a todos nós. Amin Maalouf escreveu que o «Oriente muçulmano e o Ocidente de tradição cristã estão imersos num diálogo de surdos» e hoje, acrescenta, talvez mais do que nunca, digo eu, necessitamos de «um diálogo das almas». Pensavas tu, estimado Mediterrâneo ter visto tudo, fenícios e cartagineses, trirremes gregas, cruzados vingadores, corsários, a batalha de Lepanto, árabes e otomanos, culturas e religiões, mas faltava-te ainda esta tragédia, esta violência ilimitada de fazer morrer gente que procura a esperança, um lugar, apenas um lugar onde possam viver dignamente. E as tuas águas propícias a navegações, a velas desfraldadas, que se habituaram a unir espaços, transformam-se numa gigantesca necrópole, sem cruzes, apenas de covas profundas e incógnitas. Estimado Mediterrâneos as estradas do teu mar vão continuar a sugar vidas indefesas, gentes de aquém e de além, num infernal ciclo semeado por diabólicas ganâncias e perversos interesses, e nós, na nossa impotente complacência, ainda não nos apercebemos que os sinos que tocam, não o fazem apenas pelos que vão, estão antes dobrando por todos nós. Mar Mediterrâneo, encerro esta minha dolorosa carta com um abraço de esperança.
«Regardez notre mer,
amoureuse du ciel,
elle a le doux gout du miel.
En remontant les vagues
ells ne veut qu’embrasser
et donner un baiser
à ses nuages.»
Manuel Forcano em Mireu el Nostre Mar
Afonso Anes Penedo
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