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01/09/13

SEM VENTO

Alcino Silva

http://blogs.naplesnews.com/stage-door/2010/04/shakespeare

 

Mar e mais mar era tudo o que tinha em seu redor. Não o via, sentia-o, sabia-o dançando em subidas e descidas onduladas no poderio dessa imensidão oceânica que esconde mistérios e guarda na infinitude dos seus fundos tantos segredos humanos. O galeão onde viajava, baloiçava sem movimento naquelas sucessivas horas nocturnas. O vento cessara subitamente ao fim da tarde quando a noite acendia as luzes do silêncio e o dia arrumava os seus afazeres. Estávamos parados sobre aquela linha imaginária em que os homens dividiram o mundo. Sentados naquele mosteiro de pedra larga com a visão do rio trazida através da rectangular janela, estenderam cartas, especularam sobre milhas ilusórias, descreveram lugares que não conheciam e determinaram, entre efusivos apertos de mão, esta é a linha da nossa fronteira. Daqui para lá, terras e gentes serão minhas, possa eu encontra-las. Assim, separaram o mar e naquele poente avermelhado, o vento desistiu de soprar, as velas dançaram inertes e dependuradas sem préstimo, aguardavam como todos nós. A noite foi-se estrelando e a cada estremecer luminoso, nascia uma estrada ao encontro de outras luzes, como girândolas de fogo em universos perdidos.Durante muito tempo vagueei pelo convés, escutando o cântico do oceano de encontro à grossa madeira da popa, que se elevava, abanava e se deixava tombar. A marinhagem parecia temerosa. Calaram os seus grunhidos loucos, os seus risos grotescos, as suas palavras soltas em destemidas frases. Sentados, olhavam apenas, com as mãos entretidas em assuntos menores. Enviei os olhos em viagem, tentando perceber onde dormia o vento esse soprar do ar que nos pudesse dali tirar. Longe ficava terra e o voo das aves só ali cruzava em rota de migração. Os meus olhos foram e voltaram, mas notícias não trouxeram. Guardei-me então no interior daquele cubículo na parte extrema do acesso à proa. Umas tábuas suspensas onde me deitava e uma mesa no recanto de uma abertura através da qual me chegava a festa do mar. Num cofre de grossa madeira, os papéis escritos em noites sucessivas nos quais esboçava a tua história. Ali estava de novo com o sono também ausente, como quem procura. Com a pena na mão volvi ao desenho das minhas palavras. Quando a madrugada subiu as escadas, pareceu-me que trazia o vento que saiu do nosso destino sem anúncio e escondeu-se nas ilhas submersas daquele mar dividido em duas partes. Com ouvidos expectantes, procurei vozes, adivinhei sons, mas não, nem uma brisa havia chegado. Era tão só a tempestade de há semanas atrás a reviver na minha memória com o açoite que sentimos quando passamos por uma romaria que faziam no céu e cujas ondas de alegria chegavam até à nossa rota, fazendo-nos dançar com uma música cujas notas não dominávamos. O oceano vergastava-nos a bombordo e o vento, este que agora nos deixara, volteava louco em torno do navio. Que baile fascinante entre o desvario e a razão,enquanto artifícios de fogo, desciam em nebulosos riscos de luz que ribombavam como o toque do tambor. Éramos homens perdidos, agarrados à mastreação, amarrados ao leme, semeando orações de medo e prometendo o que não se podia cumprir. Com a vontade destroçada, sem esperança de porto onde chegar, vimos então, de novo ao poente, a ventania fugindo, sem deixar rasto, nem marca, e o mar poisando as ondas de uma fadiga que o prostrava. A brisa que ficou, tirou-nos daquele feitiço, o mar auxiliou a empurrar-nos, as velas secaram e abriram-se para outra navegação. Foi então que saí, senti e contemplei a acalmia. As luzes que desciam em fogos inventados foram sendo substituídas por outras menos destruidoras. Agora resta a memória dessa noite alucinada e visita-me quando o vento que aguardamos se passeia pelas planícies extensas de ilhas perfumadas de alecrim e alfazema. Ouço de novo o ranger da madeira e acalmo o temor ansioso, inventando as palavras com que conto o teu voo pela vida. Recomeço naquela tarde em que a névoa cobriu o cais e perdi-te entre as brumas densas do crepúsculo que tombava entristecendo o dia, enquanto as vagas bravias galgavam sem freio a espessa pedraria e abatiam-se sem medo na linha do litoral. A mão que estendeste num aceno ficou longo tempo suspensa como se a deixasses imobilizada num eterno adeus e a percepção de um intenso silêncio cercou-me como agora este deserto de brisa que visita o oceano e nos deixa desamparados e sem rumo. Paro a escrita como nessa tarde suspendi o olhar. Escuto o tempo, creio ter ouvido o som da tua alegria, corro a desenrolar as velas crente que o vento chegava e me conduziria na tua rota, mas agora, como então, é apenas e só a minha imaginação a desenhar mundos que já não existem. Como hoje, a noite chegou e envolveu-me no seu manto escuro, e nem vento nem luz, silêncio apenas, num mar parado e sem destino. O vento que nos poderia fazer sair daqui, viajou contigo.

 

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