Mário Faria
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O tempo melhorou, o sol voltou e deu mais calor a este Verão de muitas caras. No jardim, pairava a calma e repousava o fresco. Só o ruido dos carros invadia o silêncio que não merecia tanta interrupção. Lá me sentei e permaneci largos minutos a desfrutar aquela invulgar quietude. É esta a (minha) terra a que volto sempre com enorme prazer. Na tabacaria encontrei D. Mariazinha que é uma viúva, brejeira, faladora, rainha da raspadinha e mãe de um conhecido jogador de futebol, o que aumenta em muito a sua notoriedade, cá na aldeia. Gosto de a ouvir, pois da sua fala colhe-se informação muito variada e pormenorizada. O tema do dia versava a separação entre Judite e Seara. D. Mariazinha contou o triste fim daquela união quase perfeita. Deu imensos pormenores e condenou Seara pelo crime cometido, sem apelo ou recurso. Fê-lo de forma emocionada e comovente. Resolvi desanuviar o clima de indignação que se tinha instalado e lancei uma graça que envolvia Judite, Marcelo e Medina num triângulo afectivo-profissional fascinante. Ficou furiosa com a minha história e disse-me das boas. Levei uma “assobiadela” da plateia e saí rapidamente com o rabinho entre as pernas. Nem o Chico Fininho - o único homem que se juntou ao grupo da raspadinha por interesse, pois foi por essa via que chegou ao bem bom com D. Mariazinha - me poupou. O dia que tinha começado tão bem, sofreu um brusco e inesperado contratempo, mas era só fumaça: o povo do sítio é sereno.
Nesse mesmo dia, fui a uma missa rezada em nome (pela alma) de um familiar falecido, recentemente. Resolvi estar atento à celebração. Estavam quarenta pessoas a assistir: dez homens e trinta mulheres. Não havia jovens e os que estavam presentes ajudaram à missa: sacristãos da classe júnior, assim os classificaria. No interior, o ambiente estava abafado e atraía a sonolência. Por momentos, a modorra venceu-me. Fui alertado por um murmurinho que anunciou a entrada do padre e dos três ajudantes: dois adolescentes, um baixinho o outro gordinho, e um sénior. Fiquei espantado quando descobri que o ajudante sénior era nem mais nem menos que o Chico Fininho.
O padre sentou-se num cadeirão vermelho e foi ladeado pelos ajudantes mais jovens que se sentaram mais modestamente em bancos, igualmente revestidos a vermelho. Ficaram em silêncio alguns momentos. O baixinho não parava de se coçar e o gordinho sorria sempre e houve momentos em que não conseguiu disfarçar a irresistível vontade de rir. O paramento do padre era verde e os ajudantes vestiam una túnica branca que os cobria até aos pés. Uma senhora, vestida de forma comum, dirigiu-se ao altar e leu os textos bíblicos de forma discreta, num tom baixo e com um agudo sotaque tripeiro. Surpresa: era D. Mariazinha. Não me distraí e continuei a seguir os passos da peça a que estava a assistir. Depois de ter lido o enfadonho texto bíblico, D. Mariazinha retirou-se do púlpito de forma lenta e compenetrada, de olhos virados para o infinito, como convinha. Depois disso, foi altura do Padre entrar em cena para dizer a homília. Deslocou-se para o púlpito em passos lentos e medidos, condizentes com o ambiente de espiritualidade que o momento exigia. O tema escolhido centrou-se no diálogo entre Jesus Cristo e a samaritana. Falou sempre de forma pousada e tocou em pontos importantes, nomeadamente a denúncia de todas as formas de discriminação e do racismo em particular. Foi moderno, eloquente e preciso. A condição de ser franciscano e negro explicam, em parte, a pertinente prédica do padre franciscano. O ajudante baixinho continuava a coçar-se e a compor a túnica, o gordinho sorria e dificilmente continha o riso aberto; Chico Fininho, sempre muito discreto, fazia chegar ao padre a bíblia que segurava nas mãos para o sacerdote ler os salmos do dia. A solenidade dos gestos dos diferentes actores impressionou-me, salvo dos dois juniores cuja representação foi bastante menos dramática. Seguiu-se a sagrada eucaristia, a ceia e a comunhão, que foi recebida por uma boa parte dos crentes presentes. Antes da despedida, D. Mariazinha veio receber os donativos. Deixei na bandeja uma pequena nota que mereceu, da parte dela, um breve sorriso de agradecimento e uma ligeira inclinação da cabeça em sinal de cumprimento. A presença na missa tinha quebrado o gelo da manhã. Chico Fininho veio despedir-se e cumprimentou-me amigavelmente e, dessa forma, confirmou o degelo. D. Mariazinha e Chico Fininho: juntos na fé, parceiros na raspadinha e no bem bom. Tudo nos conformes.
Foi assim que aconteceu. À saída da Igreja uma nuvem de fumo cobria toda a cidade. Cheirava a queimado. Não havia perigo, era só fumaça. Entretanto, Judite e Seara continuam a animar a malta, que se resigna a ver a banda passar cantando coisas de horror.
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