Alcino Silva
Persépolis |
A noite divide-me
entre o estar e o não estar, entre o ser e o não ser, entre a dúvida e a
incerteza. Entre a angústia destas sombras, olho a brancura limpa das paredes
rasgadas pelas colunas de pedra polida e direita e tanto alinhamento
perturba-me. Neste rigor arquitectónico talvez gostasse de encontrar o acaso,
uma pedra desacertada, uma parede sem esquadria. No atropelo da imaginação, a
música chega-se a mim, sonolenta, pausada, adquirindo força nas gargantas do
canto e no toque dos instrumentos. Um crescendo de sons abafa-se na leveza da
brisa de uma flauta e é esta que me leva em sonhos para o crescente fértil,
para a planície aqueménida para as margens azuis do golfo. A poeira do tempo
esvoaça sobre as ruínas da história. O esplendor de persépolis subjugado e a
beleza das suas estruturas arquitectónicas arruinadas numa noite orgíaca das
tropas alexandrinas. Como foi possível o rei dos reis sucumbir derrotado nas
terras de gaugamela? E possível foi ainda que o macedónio permitisse que a sua
soldadesca eufórica incendiasse a mais bela das cidades quase nas margens do Tigre,
erguendo as suas majestosas colunas sobre a vastidão das terras milenares que
presenciaram o nascimento da escrita. A doçura do cravo traz-me de novo até às
paredes seculares da matriz, tenta agarrar-me para que o pensamento não voe,
mas o canto ergue-se triunfante e num momento de serenidade, a flauta aflora
ainda, trepando de asas abertas sobre a vida e de novo estou entre o pó das
recordações, da devastação que conduziu à derrota o império persa, que viu
desaparecer essa guarnição pretoriana dos imortais. A gloriosa caminhada do
general que fundou alexandria aparece manchada nessa noite de dionisíaca
tempestade e nem a princesa que os seus braços arrebataram foi capaz de lhe
restituir a razão que nessa tarde crepuscular haveria de ver as chamas subirem
aos céus perante a ira dos deuses. Num dobrar de cânticos, numa mistura de
sons, a história confunde-se e a mais bela das egípcias rainhas surge nessa
escuridão iluminada pelas chamas. Porque regressará, nefertiti a tão
devastadora noite? Certamente procura com a sua beleza afastar a
irracionalidade humana, mas tudo é inútil perante a tragédia. Amanhece sobre as
terras ainda férteis da mesopotâmia, o vento, também ele cansado pela violência
dos homens arrasta a terra em poeira envolvendo as colunas de um passado que
parece teimar em viver. Os sons do violino parecem chamar-me para esse drama
que sempre olhamos tristes quando nos debruçamos sobre o pretérito. Há uma
mistura de grandeza e tragédia na passagem do poder pelo espaço terreno e nem
os deuses, os antigos e os novos parecem possuir forças pala aplacar essa
miséria cobiçosa que transportamos no ventre guloso da riqueza. A cidade dos
persas jaz entre os destroços dos seus palácios e apenas posso contemplar o que
foi na esperança de que o que vier a ser não tenha este fim. Mistura-se agora a
flauta e o canto com o violino tangendo triste e vagaroso. Regresso às pedras
unidas e firmes desta igreja, deixo-me embrulhar pela ordem das paredes, pela
perfeição das formas, pela aparência geométrica, mas ainda assim o pensamento
escapa-se de mim, embrulhado na leveza desta música, procurando no passado
longínquo o que resta da beleza humana.
1 comentário:
Texto muito belo, onde está a amargura da guerra com as tropas perfiladas para o desastre que aí vem
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