Alcino Silva
O olhar prende-se a
estas pedras, cobertas deste cinza branco, que aqui parecem adormecidas pelo
tempo que se perde entre a eternidade dos séculos. Neste entardecer que se
aproxima que procuro eu, deambulando por entre claustros que foram e paredes
que se ergueram como sustentáculos de sonhos? Sonhos? Sim, vontades e desejos
crescidos no interior do pensamento e que guardavam realidades vivas mas nunca
vividas. Então é isso, procuro sonhos nesta tarde que escurece com as nuvens
que vadiam neste céu baixo que cobre este estreito vale como um manto. As
sombras da chuva suspendem a claridade do dia e o verde com que se acoberta o
chão, brilha como um espelho que retrata a minha memória e tudo que nela
consigo esconder, dessas ideias, desses feitiços que nos enlaçam e só a nós
próprios podemos mostrar. Atravesso a ponte de madeira cansada pelo caminhar
dos homens da história e sinto-me um desses perdidos, esquecidos porque já não
são lembrados. O meu olhar distende-se, entre tímido e perdedor por sobre o
ombro, procurando lá atrás esses ventos que traziam a alfazema que brilhava
como lâmpadas de fogo desenhando os traços da mais pura beleza. Subo, passo a
passo nessa dolência arrastada pela fadiga de tanto pensar no que amamos e não
vivemos. Rodeio os muros e retenho-me ainda, preso nas águas que perdido o
equilíbrio do leito se deixam cair sem forças, nessa velocidade que as alturas
empurram para uma queda que faz rasgar as pedras onde se estatelam. As árvores
despidas de folhas tapam a nudez dos seus ramos com essa bruma de cinza que as
protege dos invernosos frios que por aqui rondam em diurnas jornadas. Parece-me
agora escutar um canto, essa harmonia de sons que dilatam o frio das auroras e
se levantam em serenos voos, esvoaçando na aragem que tarda em aquecer a
vontade humana. Também eu canto, baixo, quase em segredo, só para mim,
elevando-se essa música pela garganta até ao pensamento e fazendo nascer um
sorriso nos olhos que vêem, que procuram a sombra da quimera que se esgueira
uma vez e outra como essas fatias mágicas de bolo confeccionadas nas noites
aquecidas da lareira que rumorejava por sobre o crepitar das chamas nascidas do
fragor da velha lenha transformando-se em pó. Mas é outra a divindade a que se
dirigem as minhas orações ditas em preces de silêncio nas manhãs de solidão na
procura infinita dos traços de passagem desse momento de beleza que viaja no
feminino e desce esta encosta e me faz acreditar que vem até mim. E neste
espaço cenobial enriqueço-me pensando ser merecedor de tanta dádiva e ao
acreditar, renasço e vivo. Conto os passos, um a um, dormente, contorno o
pequeno edifício onde a roda de pedra rala essas colheitas, semeadas e colhidas
e que o ardor do fogo tornará em alimento que haverá de saciar esta fome de te
procurar e sentir ao longe. O céu derrama das nuvens as suas lágrimas nevadas
enquanto percorro a distância que me separa da outra inalcançável margem e as
águas também cantam, murmuram esses hinos soprados pela alegria de sentir a
proximidade de quem procuramos. Temerosos os olhos pousam de novo na distância,
flutuam perdidos no desconhecido, mas agarram-se com os dedos crispados nas
linhas que definem essa gentileza em recorte de rosto que aparece no recanto da
umbreira onde já não há porta. Os troncos despidos desenham imagens
fantasmagóricas tapando a corrente e o frio esboça calados arrepios soltados no
interior dos agasalhos que me cobrem. Estarei só nesta distância que me separa
da alegria, desse instante sublime em que mãos de ternura nos cobrem a pele e
deixam que o rosto repouse de tão longa e milenar viagem?, pergunto à memória
que parece estagnada na pureza de um mar que enche e cobre a paisagem, nesse
puríssimo azul com que se tapa o universo. Não sei, ou antes que poderei eu
saber, nesta fraqueza de nada poder e de nada ter, embora tudo tendo, na mesma
proporção do que nada tenho. São as vagas da solidão que me rondam neste cerco
de renúncias e perdas. Paro no centro do jardim que já não é, e giro como uma
bússola que procura a atracção desse mineral magnético que lhe indica o
caminho. Como um náufrago ergo o dedo e faço desenhos, risco traços aéreos
nesse imaginário da recordação e parece que o ar se tinge desses recortes que
te inventam, como se voasse até mim um sorriso de vida e um olhar de ternura.
Ouço os sons que batem na entrada e sei que a noite se aproxima. Abro os olhos
e as ruínas desmanteladas dos sonhos somem-se no desenho sonâmbulo da montanha
e da minha mão escapa-se de novo esse feitiço que vive em mim como alento, como
instante único, como impulso para caminhar sem desistência, mesmo sabendo que a
estrada não tem fim.
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