Mário Martins
religiousoratory.blogspot.com
|
“Já passou o tempo em que se
podia catalogar sumariamente como fetichismo (crenças e práticas ancestrais) a
fé desses indígenas, indistintamente incluídos na massa dos Africanos…”
Edwin W. Smith
Regressados
dos confins do oriente religioso façamos ainda uma última surtida desta feita
ao continente onde a aventura humana terá começado.
Para designar as religiões
africanas, as ciências etno-antropológicas não encontraram ainda uma
denominação adequada (…)
As religiões africanas não podem
reivindicar em exclusivo a qualificação de “animistas”, no sentido de admitirem
uma força vital que residiria nos seres, nas coisas, nos deuses como nos
homens. De facto, seríamos tentados a dizer que não há religião que não seja
animista (…). O mesmo se passaria com o qualificativo “tradicional”, porque
todas as religiões procuram tornar-se tradição (…).
Acreditar que as religiões
africanas não passam de religiões tribais seria, por excesso de historicismo,
acantoná-las nos limites dos grupos humanos que as praticaram até ao presente
ou então, por cegueira religiosa, (…) é afirmar que a mensagem de salvação de
que tais religiões são portadoras apenas se dirige aos membros de uma tribo. O
que equivaleria à negação nessas religiões de uma visão do homem potencialmente
universal.
O elemento mais específico e ao
mesmo tempo mais comum das religiões da África negra é muito provavelmente a
ancestralização (correspondente a santificação) e o culto dos antepassados (…).
Podemos classificar os deuses das
religiões africanas em duas categorias, a dos deuses tão próximos do Ser
Supremo que foram seus colaboradores directos e a dos deuses tão próximos dos
homens que surgem, nem mais nem menos, como antepassados divinizados (…).
(…) A percepção adequada do que
uma determinada língua ou etnia africana entende por “Deus” tornou-se hoje
difícil devido ao facto de praticamente todas as etnias terem sido atingidas
pelo islão ou pelo cristianismo. Ora o contacto das culturas não teve apenas
como efeito a introdução de novas denominações de Deus, antes, sobretudo,
introduziu uma outra visão do Ser Supremo e novos comportamentos religiosos. É
certo que nem toda a África se converteu ao islão ou ao cristianismo, longe
disso. Contudo, mesmo entre os africanos que permaneceram ligados às religiões
ditas tradicionais, essas inovações verbais relativas ao Ser Supremo não
deixaram de influir nas suas crenças (…).
A multiplicidade das divindades,
as formas muitas vezes exuberantes dos cultos que lhes são prestados, impõem a
impressão de que os deuses estão mais presentes, são mais adorados que Deus
enquanto Ser Supremo. Mas quando se participa a partir de dentro nessas
religiões, adquire-se a convicção da presença de Deus enquanto Ser Supremo; e
compreende-se também que a adoração desse Deus enquanto Ser Supremo passa à
frente de todas as adorações dos deuses, pois se supõe que estas apenas possuem
eficácia se a primeira também for eficaz.
(…) O reconhecimento do Ser
Supremo herdado das religiões tradicionais conseguiu assim emigrar para as
religiões monoteístas a que os africanos se converteram. Esta emigração de
crença fez-se de uma forma de tal modo subtil e tão real que o monoteísmo dá
hoje a impressão de ter sido introduzido a partir do exterior, quando é talvez
tão antigo em África como noutras partes do mundo.
Em África, quase por toda a
parte, o homem é essencialmente concebido como uma pessoa, isto é, como uma
síntese dinâmica de um conjunto de componentes de proveniência e destinos
diversos. Dessas componentes, a primeira é o sopro, por toda a parte
reconhecido como obra exclusiva do Criador (…). Segunda componente da pessoa: o
corpo. Pela sua materialidade, o corpo é o elemento mais tangível da relação
com outrem e, em especial, com os progenitores (…).
As duas componentes materiais do
homem, o sopro e o corpo, encontram-se quase por toda a parte em África. O
mesmo se não passa com as componentes imateriais, que mudam de uma etnia para
outra, frequentemente até no seio de uma etnia, e às vezes dentro de uma mesma
família (…). À cabeça dessas componentes imateriais está aquilo a que chamarei,
à falta de melhor, o “homem-mesmo”. Não são susceptíveis de tradução as
palavras que, nas línguas africanas, servem para designar a “alma”, sem
deformar o pensamento metafísico negro-africano e lhe insuflar preocupações
teológicas afastadas das suas (…).
As crenças religiosas
negro-africanas não contêm a ideia de um fim do mundo. O cuidado que põem em contar
como tudo começou, com excepção do Ser Supremo, só tem igual, ao que parece, na
convicção de que o mundo durará, se não eternamente, ao menos enquanto Deus
quiser (…).
Em 1964, J-C. Froelich afirmava que 55% dos
habitantes da África negra praticavam religiões animistas. Mas em 1985 já
outros sustentavam que, em cada três africanos, em média, um era cristão, o
segundo muçulmano e o terceiro adepto de crenças tradicionais. Se nos ativermos
às filiações religiosas reconhecidas e proclamadas, a parte reservada às
religiões tradicionais está a reduzir-se. Mas esse desaparecimento
quantitativo, material e exterior, parece antes ocultar um vigor das crenças
tradicionais. Estas conquistaram já a religião islâmica a tal ponto que já
houve quem falasse de “islão negro”. Investem agora contra o cristianismo com
um ardor que desencadeou uma reacção teológica conhecida pelo nome de
inculturação, e da qual se diz que não disse ainda a sua última palavra. Tanto
num caso como no outro, sob a pressão numérica dos convertidos ao islão e ao
cristianismo, cujo número aumenta constantemente em consequência do crescimento
demográfico excepcional que caracteriza as sociedades da África negra, as
crenças ancestrais têm vindo a envergar progressivamente novas vestes religiosas.
(…) O elemento-chave das práticas
religiosas tradicionais, que encontramos quase por toda a parte nessas Igrejas
independentes é a possessão. Esta desempenha um papel central; porque é em
transe que se opera a vidência que serve para diagnosticar as causas da doença
e do infortúnio, assim como para prescrever os remédios e os comportamentos que
se tenta observar na maior proximidade possível com a mensagem evangélica. O
grande número dessas Igrejas independentes e a sua liberdade de interpretação
relativamente ao Antigo e ao Novo Testamento podem bastar para explicar o seu
papel de intermediarias entre as religiões tradicionais e o cristianismo.
(…) Influência subtil e decisiva,
sob efeito da qual as religiões tradionais negro-africanas só não dão a impressão
de desaparecer porque encontraram agora no islão e no cristianismo um terreno
onde podem semear a sua herança milenar e a sua mensagem de salvação.
Todas as
citações (em itálico) são da obra “As grandes religiões do mundo”, Issiaka-Prosper
Laleye, Direcção de Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.
Sem comentários:
Enviar um comentário