António Mesquita
«Aqui, só verdadeiros, gloriosos
Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano.
Só pera fazer versos deleitosos
Servimos; e, se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso."
Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano.
Só pera fazer versos deleitosos
Servimos; e, se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso."
"Os Lusíadas, Canto X"
No canto final, Tétis abre os olhos ao Gama. Ela e os
outros deuses são de fábula e só o Deus do rei é verdadeiro.
Depois de ao longo do extenso poema termos sido
conduzidos por personagens da mitologia greco-romana, eis que, num golpe de
teatro, todo o cenário vem abaixo. Ao contrário de Dante que se despede de
Virgílio para subir à esfera que o pagão não pode penetrar, Camões diz-nos que
tudo foi teatro, que os heróis de Tróia e os deuses que com eles se
entretiveram são mentiras da arte e que o leitor deve esquecer tudo isso para
aproveitar a lição da coda final em que se revela a verdade de Cristo.
Ao fazê-lo, ao depor as máscaras e os trajos antigos,
guardando-os para outra ocasião em que pudessem voltar a ser úteis, Camões foi
tão injusto com a Antiguidade como a censura inquisitorial o exigia. Assim o
poder impõe a sua marca de fealdade mesmo na obra do génio.
Resta-nos a consolação de que o expediente a que o nosso
maior poeta teve de recorrer o torna, ao mesmo tempo, um percursor da
"distância", mais ou menos crítica, em que alguns modernos, como
Brecht, quiseram ver um valor revolucionário.
Claro que Camões nunca aponta para a máscara quando narra
a grande viagem e as intervenções no concílio dos olímpicos. Guardou isso para
as últimas estrofes, como quem pede desculpa de ter usado um artifício.
A verdade, também, é que o renascimento tardio em que
escreveu Luís Vaz já só lhe permitia uma revisita irónica à mitologia.
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