Mário Faria
M. Hulot ("Playtime") |
Na aldeia em que vivo
da freguesia de Paranhos no Porto, ainda mantemos alguns hábitos de convívio
que se foram perdendo pela desertificação da cidade, pela terrível concorrência
da TV, das redes sociais e porque caiu em desuso. Mantemos um núcleo que costuma juntar-se, de forma organizada mas pouco, para discutir os temas da
actualidade : políticos, culturais,
económicos e sociais ou mais frequentemente para tratar, analisar e comentar o
desporto, em geral e o futebol em particular. A ideia era (e é) boa, mas está em declínio acelerado porque o
Zé da Frutaria, (tripeiro, portista de sempre e socialista de bandeira),
acertou um murro no Silva (benfiquista, nado e criado no Cavaquistão), dono do café que costumávamos
frequentar ter dito, de forma indignada, que Pinto da Costa era mafioso,
corrupto e que pior que ele só o bandido do Sócrates, que levou o país à ruina.
Depois disso, nada mais foi como dantes :
o pessoal do FCP e os simpatizantes socialistas, que não
eram adeptos do SLB desertaram, passaram
a frequentar o café situado do outro lado da rua. Consumado o distanciamento,
procuraram – os mais “tolerantes” – encontrar pontes de entendimento,
nomeadamente através da Svetlana que era muito bem acolhida por todos. Apesar dos bons ofícios desta nossa generosa
amiga, tem sido complicado a relação social e a vida comunitária, até aí multicultural,
rica de criatividade, de má língua brejeira, de acontecimentos improváveis e
por vezes admiráveis. Perdeu graça e autenticidade. Não está ferida de morte,
mas sofre de doença grave. Como uma desgraça nunca vem só, a Svetlana anunciou,
no dia em que comemorámos a vitória do FCP no campeonato, que iria regressar em
definitivo ao Brasil. Estava cheia da troika e de quem a pariu, disse. Nesse ponto,
todo o mundo (leia-se do sexo masculino) estava de acordo : sem a presença dela, nada mais, seria como dantes.
Deste grupo, para
além da figura exuberante de Svetlana, sobressaía o nosso “Poeta” pela sua
calma e distanciamento. Estava junto de
nós, mas nunca estava perto. Vivia num mundo à parte, sempre alheado e
apressado. Residia numa casa da zona, que partilhava com outros supostos
intelectuais, perfilhando um estilo de vida vagamente marginal. Os vizinhos não
gostavam deles e achavam que eram toxicodependentes perigosos. Nunca notei nada
a não ser a simplicidade extravagante na forma como vestiam. Diferentes eram,
sem sombra de dúvida.
Era portista, porque
sendo do Porto, não poderia ser de outro clube. Mantinha uma simpatia pelo
Salgueiros, mas amava o FCP, desde o tempo da resistência. Não assistia aos
jogos no Dragão e raramente os via pela TV. A ligação ao clube era,
essencialmente, cultural e platónica : não ficava exaltado quando o clube perdia, nem entusiasmado quando ganhava. Não
pagava quotas, nem exigia vitórias. Vivia
serenamente a condição de portista, que em nenhuma circunstância negava. A
bandeira do FCP, bastante desgastada pelo rigor do tempo, mantinha um milagroso
equilíbrio, presa no peitoril enferrujado da janela coberta de caruncho. Era
cuidadosamente enrolada, quando a chuva e o vento eram mais intensos. Do lado
oposto, exibia a bandeira da CGTP/Intersindical que merecia o mesmo zelo e
cuidados.
Fisicamente, tinha
muitos semelhanças a Monsieur Hulot, numa versão mais magra. Não dispensava o
chapéu de abas curtas que deixava o seu rabo de cavalo bem à vista. Vestia quase
sempre a (sua) gabardine, bem puída pelo
tempo, umas calças que deixavam ver as meias, sempre brancas mas nem por isso,
e de baixo do braço fazia-se acompanhar dos rascunhos dos poemas que tinha em
carteira. Fumava cachimbo : supostamente usava tabaco.
No último encontro do
nosso núcleo (mais tripeiro, portista e socialista), realizado antes do FCP com o Marítimo,
falou-se menos do FCP e demais de Vítor Pereira e do perfil do próximo
treinador. De Sócrates e do Seguro, com breves paragens no Jerónimo e no Louçã.
As coisas, a certa altura azedaram: o que o futebol unia a política separava. O
Poeta falou. Fizemos silêncio porque o
homem raramente o fazia. Leu um poema. O título : Amor e Preconceito. Era chato e comprido. O silêncio tornou-se
mais intenso, não sabíamos que dizer. O Poeta, melancolicamente, retomou a palavra,
perguntando : “Porquê tanto azedume ? Porque é que a vida tem de ser tão chata?
Porquê tanta loja de perfume ? Porquê
tanta pomba assassinada? ”. Levantou-se e saiu. As perguntas não esperaram
pelas respostas e não reconhecemos qualquer conexão entre o poema que ouvimos, pacientemente, e os temas que motivaram (?) a
sua leitura. Mais tarde, à noite no
café, pedimos, por uma questão de delicadeza, quer nos desse uma cópia dos seus
escritos, ainda que fossem rascunhos. Respondeu-nos
:
“Fica para quando tiver publicado o livro de poemas, que está pronto para sair”. Pouco depois, retirou-se apressadamente, como
de costume.
O poeta morreu no 1
de Maio, quando atravessava a rua em passo de corrida, para comemorar o dia do
trabalhador. Era anarca militante. Provavelmente, absorto num qualquer poema
que lhe consumia o pensamento, não deu conta do carro que o atropelou sem
culpa, nem piedade. Ao funeral estiveram
os que habitavam o mesmo espaço de uma casa muito degradada, mais alguns de nós
e dos outros. Houve discurso : não lhe foram poupadas virtudes e não faltou o
elogio à excelência da sua poesia. Ficamos mais pobres, mas não pela poesia
perdida. Insisto : tinha uma paixão pelo FCP, sem ser um entusiasta pelo
futebol. Acompanhava o ciclismo que adorava, embora nunca tivesse andado de
bicicleta. A poesia que o habitava residia no coração e no percurso até à mão
que lhe dava vida, perdia o encanto, a
julgar pela amostra que conhecemos. Reconhecido pela sua estravagância física, era
diferente, enigmático e humano. Creio que era um homem bom : acho que não estou
influenciado pelo facto de ter morrido.
Paz à sua alma.
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