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01/06/12

O POETA MORREU

Mário Faria

M. Hulot ("Playtime")


Na aldeia em que vivo da freguesia de Paranhos no Porto, ainda mantemos alguns hábitos de convívio que se foram perdendo pela desertificação da cidade, pela terrível concorrência da TV, das redes sociais e porque caiu em desuso.  Mantemos um núcleo que costuma  juntar-se, de forma organizada  mas pouco, para discutir os temas da actualidade :  políticos, culturais, económicos e sociais ou mais frequentemente para tratar, analisar e comentar o desporto, em geral e o futebol em particular. A ideia era (e é)  boa, mas está em declínio acelerado porque o Zé da Frutaria, (tripeiro, portista de sempre e socialista de bandeira), acertou um murro no Silva (benfiquista, nado e criado no  Cavaquistão), dono do café que costumávamos frequentar ter dito, de forma indignada, que Pinto da Costa era mafioso, corrupto e que pior que ele só o bandido do Sócrates, que levou o país à ruina. Depois disso, nada mais foi como dantes :  o  pessoal  do FCP e os simpatizantes socialistas, que não eram adeptos do SLB desertaram,  passaram a frequentar o café situado do outro lado da rua. Consumado o distanciamento, procuraram – os mais “tolerantes” – encontrar pontes de entendimento, nomeadamente através da Svetlana que era muito bem acolhida por todos.  Apesar dos bons ofícios desta nossa generosa amiga, tem sido complicado a relação social e a vida comunitária, até aí multicultural, rica de criatividade, de má língua brejeira, de acontecimentos improváveis e por vezes admiráveis. Perdeu graça e autenticidade. Não está ferida de morte, mas sofre de doença grave. Como uma desgraça nunca vem só, a Svetlana anunciou, no dia em que comemorámos a vitória do FCP no campeonato, que iria regressar em definitivo ao Brasil. Estava cheia da troika e de quem a pariu, disse. Nesse ponto, todo o mundo (leia-se do sexo masculino) estava de acordo : sem a presença  dela, nada mais, seria como dantes.

Deste grupo, para além da figura exuberante de Svetlana, sobressaía o nosso “Poeta” pela sua calma e distanciamento. Estava  junto de nós, mas nunca estava perto. Vivia num mundo à parte, sempre alheado e apressado. Residia numa casa da zona, que partilhava com outros supostos intelectuais, perfilhando um estilo de vida vagamente marginal. Os vizinhos não gostavam deles e achavam que eram toxicodependentes perigosos. Nunca notei nada a não ser a simplicidade extravagante na forma como vestiam. Diferentes eram, sem sombra de dúvida.

Era portista, porque sendo do Porto, não poderia ser de outro clube. Mantinha uma simpatia pelo Salgueiros, mas amava o FCP, desde o tempo da resistência. Não assistia aos jogos no Dragão e raramente os via pela TV. A ligação ao clube era, essencialmente, cultural e platónica : não ficava exaltado quando o clube  perdia, nem entusiasmado quando ganhava. Não pagava quotas, nem exigia  vitórias. Vivia serenamente a condição de portista, que em nenhuma circunstância negava. A bandeira do FCP, bastante desgastada pelo rigor do tempo, mantinha um milagroso equilíbrio, presa no peitoril enferrujado da janela coberta de caruncho. Era cuidadosamente enrolada, quando a chuva e o vento eram mais intensos. Do lado oposto, exibia a bandeira da CGTP/Intersindical que merecia o mesmo zelo e cuidados.

Fisicamente, tinha muitos semelhanças a Monsieur Hulot, numa versão mais magra. Não dispensava o chapéu de abas curtas que deixava o seu rabo de cavalo bem à vista. Vestia quase sempre a (sua)  gabardine, bem puída pelo tempo, umas calças que deixavam ver as meias, sempre brancas mas nem por isso, e de baixo do braço fazia-se acompanhar dos rascunhos dos poemas que tinha em carteira. Fumava cachimbo : supostamente usava tabaco.
No último encontro do nosso núcleo (mais tripeiro, portista e socialista),  realizado antes do FCP com o Marítimo, falou-se menos do FCP e demais de Vítor Pereira e do perfil do próximo treinador. De Sócrates e do Seguro, com breves paragens no Jerónimo e no Louçã. As coisas, a certa altura azedaram: o que o futebol unia a política separava. O  Poeta falou. Fizemos silêncio porque o homem raramente o fazia. Leu um poema. O título : Amor e Preconceito.  Era chato e comprido. O silêncio tornou-se mais intenso, não sabíamos que dizer. O Poeta,  melancolicamente, retomou a palavra, perguntando : “Porquê tanto azedume ? Porque é que a vida tem de ser tão chata?  Porquê tanta loja de perfume ? Porquê tanta pomba assassinada? ”. Levantou-se e saiu. As perguntas não esperaram pelas respostas e não reconhecemos qualquer conexão entre o  poema que ouvimos, pacientemente, e os temas que motivaram (?) a sua leitura.  Mais tarde, à noite no café, pedimos, por uma questão de delicadeza, quer nos desse uma cópia dos seus escritos, ainda que fossem rascunhos.  Respondeu-nos   : “Fica para quando tiver publicado o livro de poemas,  que está pronto para sair”.  Pouco depois, retirou-se apressadamente, como de costume.

O poeta morreu no 1 de Maio, quando atravessava a rua em passo de corrida, para comemorar o dia do trabalhador. Era anarca militante. Provavelmente, absorto num qualquer poema que lhe consumia o pensamento, não deu conta do carro que o atropelou sem culpa, nem piedade.  Ao funeral estiveram os que habitavam o mesmo espaço de uma casa muito degradada, mais alguns de nós e dos outros. Houve discurso : não lhe foram poupadas virtudes e não faltou o elogio à excelência da sua poesia. Ficamos mais pobres, mas não pela poesia perdida. Insisto : tinha uma paixão pelo FCP, sem ser um entusiasta pelo futebol. Acompanhava o ciclismo que adorava, embora nunca tivesse andado de bicicleta. A poesia que o habitava residia no coração e no percurso até à mão que lhe dava vida,  perdia o encanto, a julgar pela amostra que conhecemos. Reconhecido pela sua estravagância física, era diferente, enigmático e humano. Creio que era um homem bom : acho que não estou influenciado pelo facto de ter morrido.
Paz à sua alma.




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