01/12/11
CLANDESTINO
Alcino Silva
Talvez só num momento
tardio tenha compreendido a posição que ocupo na sociedade. Por vezes
habituamo-nos de tal forma ao que somos que já nem nos interrogamos sobre a
nossa própria situação. Num desses momentos de paragem, em que tudo se
imobiliza, percebi que na verdade fui sempre um clandestino, nunca saí desse
silêncio onde habitam as grandes solidões. Desde a infância, talvez mesmo desde
o momento que nasci. Trocaram-me o lugar onde pela vez primeira o sol me
chegou, nesses lampejos seus de fim de primavera lançando os braços para o
verão. A partir de então, tenho vivido nesse labirinto furtivo onde habita o
nada. Nessa idade em que desejamos ser grandes passava sempre ao lado de tudo,
era como se não me conhecessem e na escola já numa fase tardia todos se
admiraram com o miúdo que ocupava o último lugar da fila. Nunca tinham reparado
na sua presença. Na adolescência, uma noite atravessei as montanhas a caminho
de uma cidade interior e aqueles a quem pedi boleia esqueceram-se pelo caminho
de que com eles seguia e só horas passadas quando o álcool lhes toldava os
gestos, pararam. Aproveitei para me esgueirar. Há muito que havia ultrapassado
o destino, mas nem falei, não fosse lembrarem-se de mim. Meses volvidos,
atravessei a meseta num comboio nocturno que silvou até de madrugada na
potência das suas duas caldeiras. Escondido entre os caixotes que se amontoavam
no corredor da carruagem, deixei-me ir. Mais uma vez, ninguém me questionou.
Continuava incógnito e só, quando o avião se aproximava dos himalaias e senti
aquele olhar sobre mim. Era um olhar sereno, mas expressivo. Expressivo? Era
sublime e talvez tenha sido nesse instante que descobri não possuir identidade.
Nunca me tinham perguntado o nome. Pensei, vai ser agora. Tantas vezes a iludir
essa legalidade onde assenta tanta ordem, tanta disciplina, tanta gente de bem,
vão perguntar o que faço aqui. Olhei pela janela como quem procura o caminho
para casa, mas aquele rosto pousava sobre o lugar onde me encontrava.
Conformado olhei de frente e, nesse instante, uma voz quase me segredou,
«sente-se bem?». Ainda não estava em mim quando percorri a rota da seda nas
franjas daquele deserto tórrido que conduzia até às proximidades do
mediterrâneo. Muito mais tarde, já trabalhava, e quando pensava que estava tudo
em ordem, dou comigo a constatar que ninguém me conhecia. Chegava a horas,
produzia, era assíduo, disciplinado, rentável, mas não contava, ninguém sabia,
não aparecia registo da minha pessoa. Enfim, habituei-me e creio mesmo que me
conformei, deixei-me ir. Talvez seja o que chamam, destino. Pelo menos era o
que aceitei acreditar até ao momento em que passaste e percebi que estavas de
saída para uma viagem. Vi-te ao longe e ocorreu-me esse lampejo de acreditar
que o que estamos a pensar é verdade. Apetecia-me viajar também, mas não
desejava ir outra vez sujeito ao olhar de todas aquelas pessoas que não me
viam. Foi então que tive essa ideia de seguir clandestino no interior dos teus
olhos. Devo ter sido atraído por esse fascínio que de ti espreita como se de uma
janela saísse luz. Tantos anos a ocultar-me haveria de servir para alguma coisa
e assim com essa arte furtiva, escondi-me no lugar onde espreitam os teus
sonhos e fui seguindo e contigo percorri essas cidades onde a riqueza e a
cultura se instalaram ao longo de séculos numa opulência sedutora. Nunca tinha
viajado assim, num lugar tão bonito e daí olhando as belezas do mundo. No
interior dos teus olhos já não me importava que não me conhecessem, a riqueza
do que via fazia-me sentir viajante do espaço, aventureiro das sagas milenares
da história. Aqui e ali saía, deambulava pelas ruas da cidade, calcorreava
essas pedras, admirava essas paredes erguendo-se céus acima nessas cores
irreais da magia e numa tarde quando o sol parecia baixar de intensidade, parei
extasiado perante o colorido das flores nas margens de uma estrada. Nesse
espaço de tempo em que sentimos a doçura da vida a imobilizar-nos os gestos,
observei deliciado o amarelo a trocar abraços com o verde e a deixar-se beijar
por tons de vermelho. Compreendi que esse espaço florido era também um pouco
clandestino como eu, só aparecia perante mim e não compunha canteiros de
qualquer praça, mas antes e apenas o reflexo dos magníficos jardins que habitam
os teus olhos, os quais voltara a encontrar depois de muito vagabundear essa
tarde. Então pela primeira vez, desejei ficar clandestino para sempre, que a
tua viagem não terminasse e que o meu lugar no mundo fosse nesse refúgio do teu
ambarino olhar.
LARGUEM TUDO...
Cristóvão Sá Pimenta
http://www.panoramio.com |
“…Larguem
tudo novamente, lancem-se pelos caminhos”[1]
Quero ir lá para
trás. Para um tempo de aventura e ilusão. Para um tempo que o inebriar dos
espíritos e as mentes libertas compunham as sinfonias da tarde. Quero ir até
onde as forças me derem para gritar… Não, não quero estes bichos de merda. Que
à dignidade humana trazem desgraça e solidão. Chega de promessas vãs. Deixai
que me renove de forças e utopia e irei pelas pradarias, montado em cavalo de
esperança, anunciando novas vidas.
Ficaste de bolsos
vazios? Esvazia o dos outros. O daqueles que te forçaram a penúria. De que te
vale o voto que tens na mão…é arma de pólvora seca. Melhor será acreditares em
ti e em ti, qual pedra lançada à água, esperar que as ondas se multipliquem e
contagiem outros tis, em exercícios de solidariedade e amor.
Temos de “… subverter
o quotidiano”. À norma, responder com o novo. À norma, retorquir com o arrancar
das palas. À norma…subverter, subverter, …deixando que os esbirros se afundem
no lodo da ignomínia. Procuraremos novos cisnes e que outros cantos nos levem à
opulência superior do Ser, esvaziando o ter.
Assobiaremos a nossa
raiva, até que as cabeças dos pandilhas sejam armas de arremesso, pois de útil
mais nada têm. Num tempo de passagem que é permanente, exige de ti a vida,
ignorando os produtores de palavras e feitos ignóbeis. Esquece a intempérie do
planeta troika que nos impinge seres feios e maus.
Dá ao fruto o sabor
da esperança e amor profundo dos corpos adolescentes, deixando que em liberdade
o género se confunda, expirando e suspirando por novos caminhos. Que interessa
agora o sonho antigo? Em nome dele fizemos desgraça.
Não receies perder-te
nos labirintos…pois diferente te sentirás. Os que te deixaram, os do medo,
esses sim … destrói-os … são já caminho sem saída. São princípio de precipício
e fim de linha.
Deixa que outras
energias te avassalem o corpo e parte para a (re)construção da tua utopia, “…largando
tudo novamente, lançando-te pelos caminhos” do arco-íris.
[1] Exercício a
partir Bolaño (1976) – Primeiro Manifesto Infrarrealista
A MOEDA SOBERANA
António Mesquita
"O
Sr. Proudhon não esgotou ainda todas as razões pretensamente económicas. Eis uma
duma força soberana, irresistível: é da consagração soberana que nasce a moeda:
os soberanos apoderam-se do ouro e da prata e apõem-lhe o seu selo. Assim o
livre arbítrio dos soberanos é, para o Sr. Proudhon, a razão suprema em
economia política! Na verdade, é preciso ser completamente destituído de
todo o conhecimento histórico para
ignorar que foram os soberanos que, em todos os tempos, se sujeitaram às
condições económicas, mas que nunca eles fizeram a lei. A legislação tanto
política como civil não faz mais do que
pronunciar, verbalizar o poder das relações económicas."
"Miséria da Filosofia" (Karl Marx)
O tom de polemista
utilizado por Marx não é aqui, para nós, o mais interessante. Ele fala com a
autoridade de quem acaba de deslindar uma situação complexa (a do sistema
capitalista) e contempla os patéticos esforços dos que procuram explicações ou
justificações. Aliada à teoria da "alienação", a sua crítica
parece não deixar "pedra sobre pedra". Porque mesmo os bem
intencionados, ou até as vítimas desse sistema, foram por essa teoria
destituídos, à partida, de qualquer competência.
Por muita experiência
que se tenha, hoje, do funcionamento daquilo a que Marx chamou de sistema
capitalista ( e o facto desse conceito ter aplicação quase universal prova até
que ponto a teologia foi mais longe do que a crítica), e por muita reflexão que
tenha suscitado, ninguém hoje pode falar com a autoridade ( ou com a certeza
dogmática) com que Marx falou, no início duma época que iria marcar para
sempre.
A causa principal
dessa incapacidade é do domínio dos factos históricos, mais do que do domínio
da crítica filosófica. A força do "Socialismo do Leste" revelou-se um
"castelo de cartas", no momento em que o homem real pôde, enfim,
tomar o lugar do "homo sovieticus".
A crítica da
ingenuidade de Proudhon parece hoje mais do que fundamentada. Mas só se
tornou óbvia com o progresso da influência marxista.
Nos tempos que
correm, a política do BCE (que não é central nem europeu) parece tão enredada
nos seus preconceitos ideológicos como a teoria da "moeda soberana" o
estava no espírito de Proudhon.
Também aqui, para a
crítica se tornar óbvia, é preciso um "veículo" (para empregar um
conceito da nova finança) social que tarda a surgir.
MUROS RELIGIOSOS (6) O Islão
Mário Martins
Meca (Wikipédia) |
Nos textos anteriores
abordamos os aspectos doutrinários principais que, de diferentes e demarcados
modos, globalmente caracterizam e distinguem, em termos religiosos, a chamada
civilização judaico-cristã. Agora, com o presente texto, entramos,
respeitosamente descalços, noutro mundo civilizacional.
“Atesto que não há
outro deus senão Deus e atesto que Muhammad (Maomé) é enviado de Deus” *
A adesão ao Islão reduz-se
a esta profissão de fé (…) e o monoteísmo é, sem dúvida, a palavra fundamental
do discurso do Islão sobre si mesmo *
Não existe povo a que
Deus não tenha enviado um mensageiro, afirma o Alcorão (…) Entre esses
mensageiros, apenas alguns podiam e deviam ser nomeados no Alcorão: são em
número de vinte e cinco, nomeadamente os fundadores das (outras) duas religiões
monoteístas, Moisés e Jesus, assim como alguns outros profetas do Antigo e do
Novo Testamento. Diante deles, alguns outros nomes citados no Alcorão são nomes
de profetas enviados especificamente aos Árabes, e que não encontramos
mencionados na Bíblia: Sálih, Shu’ayb, Húd… (…) *
Homem entre os homens,
Maomé nasceu no ano 570 da era cristã e morreu a 8 de Junho de 632. É,
portanto, um personagem histórico. A pregação, que iniciou com a idade de
quarenta anos, de modo algum pretende reivindicar para si outro estatuto que
não seja o de “homem, enviado de Deus” (…) Mais, a aceitação da dimensão humana
é reivindicada como uma condição da profecia monoteísta: “Não se admite que o
homem a quem Deus deu o Livro, a sabedoria e o dom da profecia dissesse aos
outros homens: ‘Sede os meus adoradores e não de Deus’” (Alcorão) *
Se as religiões do
Livro (Judaísmo e Cristianismo), com as quais o muçulmano afirma ter tantas
afinidades, possuem livros sagrados, esses textos apresentam-se como textos de
inspiração divina. O Alcorão, em contrapartida, apresenta-se como um livro de
“revelação” (…) *
O Alcorão, tal como
todas as revelações, é uma chamada de atenção: as provas da existência de Deus
que fornece estão já inscritas na criação e na ordem que preside ao universo
criado. É significativo que o primeiro versículo revelado a Maomé seja o
famoso: “Lê, em nome de teu Senhor, que criou”. Mas não menos significativo é
ver que a chamada de atenção toma como tema o facto de que Deus é o Fátir, o
criador integral, ex nihilo (a partir do nada), e que é o organizador da sua
própria criação; assim, a obediência do universo (…) a certas leis, é
apresentada, ao arrepio da argumentação de um Epicuro ou de um Lucrécio, (…)
como uma prova da sua criação por Deus, pelo Deus único. *
(…) O Alcorão está
omnipresente na vida de cada muçulmano. Está presente na educação da criança, a
quem é ensinado desde a mais tenra idade. O Alcorão constitui a referência de
todas as conversas, não apenas teológicas mas literárias. A sua leitura
integral, khatm, é sempre, à letra, um “cumprimento”: celebra tantos os
momentos fastos como os acontecimentos infelizes (…) *
As obrigações
cultuais do muçulmano são muitas vezes designadas pela expressão “os cinco
pilares do Islão”: a profissão de fé, a oração, a esmola, o jejum do mês de
Ramadão e a peregrinação comunitária a Meca (sob condição de capacidade
material e física). *
(…) Nessa
cidade-encruzilhada (Meca), conheciam-se e reconheciam-se os adoradores de
divindades múltiplas e variadas. Havia até uma espécie de modus vivendi que
fazia com que se admitissem todos os seus ídolos num templo único, a Ka’aba (etimologicamente,
“o Cubo”), objecto de uma veneração comum e de um culto comum. O respeito por
esta “casa”, onde se encontrava a Pedra Negra, impunha-se a toda a gente e
manifestava-se nomeadamente pela celebração de uma peregrinação anual (…) Eram usos
imemoriais de tal modo institucionalizados, de tal modo ligados à organização e
à administração da cidade que, paradoxalmente, até os defensores da crença no
Livro, nomeadamente judeus e cristãos, pareciam ter-se acomodado a eles. E ao
ponto de a Ka’aba abrigar, na ocasião em que Meca se rendeu ao Profeta, uma
representação de Abraão e outra da Virgem com o Menino: vizinhas, pois, dos
trezentos e tantos ídolos que lá se acumulavam. A sua presença indicava uma
realista mas paradoxal “cohabitação”. *
A especificidade do
Islão relativamente às outras religiões é, pois, o lugar que nele ocupa a fé na
escala dos valores. O que pode explicar muitas grandezas. Tal como poderia, sem
os desculpar, explicar muitos desvios: quando o acesso - ou o regresso - à fé não
é acompanhado da consciência do caminho percorrido até lá e da compreensão por
aqueles que não o percorreram. E, do mesmo modo, já não há fé quando a
convicção de ser detentor da verdade legitima o desprezo por aqueles que não a
detêm, quando o esforço no caminho de Deus leva a encarar como inimigos os que
levantam, ou simplesmente são obstáculos. Tais erros são próprios de espíritos
e almas que desesperaram da força de Deus. *
* “As grandes religiões do mundo”,
Azzedine Guellouz, Direcção de Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.
PS: segundo a Wikipédia,
o Islão ensina seis crenças principais:
- a crença em Alá (Allah), único Deus existente;
- a crença nos anjos, seres criados por Alá;
- a crença nos livros sagrados, entre os quais se encontram a Torá, os Salmos e o Evangelho. O Alcorão é o principal e mais completo livro sagrado, constituindo a colectânea dos ensinamentos revelados por Alá ao profeta Maomé;
- a crença em vários profetas enviados à humanidade, dos quais Maomé é o último;
- a crença no dia do Julgamento Final, no qual as acções de cada pessoa serão avaliadas;
- a crença na predestinação: Alá tudo sabe e possui o poder de decidir sobre o que acontece a cada pessoa.
Pequeno
léxico:
Alcorão
= (literalmente) “a Leitura”
Islão
= (literalmente) “submissão a Deus”
Muçulmano
= crente no Islão
Pedra Negra = Segundo
a tradição, a pedra (possivelmente um meteorito), com cerca de 50 cm. de diâmetro, foi
recebida por Abraão das mãos do anjo Gabriel (Wikipédia).
RECORDANDO JORGE DE SENA
Manuel Joaquim
Recordando
um grande escritor.
Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya
Por Jorge de Sena
"Os Fuzilamentos de 3/5/1808" de Goya |
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.”
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais do que uma vida ou a alegria de tela.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
É possível, tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.”
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais do que uma vida ou a alegria de tela.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
Lisboa, 25 junho 1959.
(In poesia II, pg 125 a 128.)
01/11/11
ESCUTANDO BACH
Alcino Silva
A noite sossega-me ou então são as luzes interiores que abafam a claridade e trazem até mim esta sensação de acalmia. Deixo que os olhos se percam na luxúria do barroco, nesse amarelo fosco com que quiseram alardear grandeza e que ornamenta cenas de martírio. Que contradição, ou hipocrisia, enaltecer os mártires rodeando-os de esplendor, não da virtude, mas da riqueza, quase sempre espoliada. A música surge, abafando aos poucos estes pensamentos, estes deleites meus de percorrer a memória, procurando-te na história, pois também tu preferiste ser passado. O deambulatório abre-se em azul de mar e os sons parecem chegar nessas ondas de maresia nocturna em que a brancura aparece reflectida pela luz lunar sobre a espuma que se espalha na terrena areia. Voam as notas como as aves em bando, acordando os meus sonhos, fazendo estremecer o tempo em que passeava sorrindo nas manhãs que chegavam, abrindo-se como as pétalas das flores quando o sol pousa sobre as suas cores. Um adormecimento sacode-me nesse recordar do que já parece longínquo e acordo no espaço da fronteira, não dessa que tantas vezes demarca os seres humanos, as culturas, as terras, os lugares e até as línguas que se exprimem. Não, esta é um outro traço, uma linha invisível que separa a vida, do silêncio, essa onde me encontraste, e de onde me retiraste dessa atracção que me conduzia em tempo marcado para o outro lado do caminho. A melodia suave que pousa em mim, nesta noite morna, coloca-me outra vez nesse trilho de montanha, nesse duplo traçado com ponteado indefinido a mostrar a separação, como se dividisse o dia e a noite, a escuridão e a claridade. É um fim de tarde e a paisagem permanece nessa beleza estonteante do pretérito. Os átomos do tempo fusionam-se na lembrança do belo. Sinto a tua mão na minha, nessa fragilidade de um elo que se pode quebrar, talvez gasto pelo tempo ou desajustado ao lugar. Percebe-se esse instante em que a diferença marca lugar no mundo das coisas e aceitamo-la como a compreensão do inevitável. Por momentos, as mãos ficam suspensas como se fossem cair, vazias, inseguras, mas quase logo encontram o antigo lugar, junto ao corpo onde pertencem. A música vem nessa dolência crepuscular e adula-nos o olhar para que não sinta esse humedecer nocturno do caminho que agora me leva. Os trajectos paralelos prosseguem, mas quando as cordas dos violinos se agitam, tangendo em sintonia com o cravo, nasce uma curva, lenta mas em distintas direcções. Os poentes que olhamos já não possuem as mesmas tonalidades e ao contrário do teu, aquele que se me oferece olhar, distende-se em cinzentos enevoados. Numa encruzilhada detenho-me observando o sábio que procuro imitar. A mão fechada e o indicador aberto, debruço-me sobre o chão e procuro a geometria do desenho do futuro. As linhas saem perfeitas, rectilíneas, suaves, sem tremuras, mas a figura não encerra, o princípio não encontra o fim, o correr do dedo detém-se e a figura fica incompleta, sem definição. A frescura da noite invade-me o olhar, não há lua hoje, o som do cântico que vindo de ti me visitava, extinguiu-se levado pelas sombras que me rodeiam. Encerro os olhos e prossigo, creio que já percorri esta estrada.
UM GRITO CONTRA A BARBÁRIE
Manuel Joaquim
"Guernica" (Pablo Picasso) |
“O que é que você pensa que é um artista? Um imbecil que só tem olhos se é pintor, ouvidos se é músico ou uma lira que ocupa todo o seu coração se é poeta?
Bem ao contrário, é um ser político, constantemente consciente dos acontecimentos trágicos, irritantes ou felizes a que lhes responde de todas as maneiras.
Não, a pintura não se faz para decorar habitações.”
(Picasso a um jornalista depois da 2ª Guerra Mundial)
Faz hoje, 25 de Outubro de 2011, 130 anos que nasceu Picasso. E faz trinta anos que chegou definitivamente a Espanha, vinda do Museu de Arte Moderna, de Nova York, uma das suas obras mais extraordinárias que é GUERNICA, no cumprimento do desejo do Artista de que voltasse a Espanha quando se restabelecessem as liberdades políticas.
GUERNICA, pequena povoação vasca, foi terrivelmente bombardeada pelos aviões nazis alemães, em 26 de Abril de 1937, em apoio dos franquistas, que tinham feito em Julho de 1936 um golpe de estado contra o governo republicano, legitimamente eleito, de que resultou a Guerra Civil espanhola.
GUERNICA foi testemunha da barbárie cometida durante a Guerra Civil e passou a ser um símbolo da luta pelas liberdades democráticas e da luta contra a guerra e em defesa da paz.
Pablo Picasso, nomeado director do Museu do Prado, que não chegou a tomar posse, foi encarregado, pelo governo republicano, em Janeiro de 1937, de executar uma grande obra para a Expo de Paris a realizar em Julho desse ano.
Perante o bombardeamento da aldeia de GUERNICA, Picasso pinta os primeiros esboços em 1 de Maio de 1937. Em 10 de Maio começa o trabalho definitivo. Em 4 de Junho termina a sua GUERNICA. Em 12 de Julho a obra é exposta na Expo de Paris, ao lado de uma obra em representação da Alemanha nazi.
Em 1939 termina a Guerra Civil espanhola e inicia-se a ditadura franquista. Em 1940 a obra é depositada no MOMA, de Nova York, com o desejo manifestado pelo o Artista. Em 8 de Abril de 1973 morre Picasso. Em 20 de Novembro de 1975 morre Franco. Em 15 de Junho de 1977, primeiras eleições livres em Espanha. Em 10 de Setembro de 1981 GUERNICA chega a Espanha. Em Julho de 1992 é instalado no Museu Rainha Sofia, em Madrid.
Picasso viveu muitos dos conflitos bélicos do século XX, a guerra de Cuba, as guerras em África, as duas guerras mundiais, a guerra da Coreia. A ansiedade com que viveu os grandes sofrimentos da humanidade está retratada em muitas das suas obras. Isso é evidente no tempo que demorou a execução de GUERNICA. Como é evidente na sua obra Massacre na Coreia, de 1951.
Será que algum Pintor irá fixar para a posteridade a destruição de cidades inteiras e a morte de milhares de pessoas na mais recente guerra do imperialismo norte americano, inglês e francês, pela cobiça de importantes jazidas de petróleo da melhor qualidade, de abundantes quantidades de gás natural e de enormes lagos subterrâneos de água fóssil em pleno deserto, para além do roubo de quantidades colossais de dinheiro depositados em bancos dos países agressores?
A MENINA E O CANZARRÃO
Já o conhece e prevê que, mesmo furtivamente, tente escapar colocar-se-á numa postura firme de recusa e rosnará assustadoramente. O que fazer e como fazer. Difícil uma saída. Ainda mais com a pesada pata no seu ombro esquerdo.
A frialdade nos seus pés nus procura quebrar o círculo da ausência aparente. O seu pensamento voa. Não consegue ignorar a meiguice do bicho. Talvez por isso assim se mantêm e se manterá até ao momento em que ele esgotará a sua paciência. Nessa altura, descerá da cama, e ela sentirá nos seus pés o bafo quente do seu ofegar. Até um meigo lamber. E aconteceu.
Retoma a vida. Vai direita ao guarda-vestidos, escolhe roupa alegre e fresca para aguentar o calor tardio do estio. Já vestida e composta, sai do quarto e antes de se afastar de casa faz uma pequena caminhada com o seu amigo. E ele vai, correndo e saltando, acelerando e desacelerando como puto posto em liberdade. Contrai os esfíncteres e alça a perna, aqui e acolá, de novo partindo à desfilada, esgotando as energias.
Mas ela tem de sair. Ele percebendo, olha-a e ladra. Espera que ela ternamente lhe afague o pêlo e lhe beije o focinho. E despede-se. Até logo Vítor e não me apertes mais quando eu regressar. Porque eu quero viver, continuar a acreditar que há um sentido para tudo e resplandecente. Não este discurso trágico com que inundam o dia-a-dia.
Como se não houvesse vida para além dos nossos pecados colectivos.
MUROS RELIGIOSOS (5) A Igreja Protestante *
Mário Martins
A Bíblia (Wikipédia) |
“Não tenho fé no papa nem nos concílios isoladamente. (…) Estou ligado pelos textos escriturísticos que citei e a minha consciência está cativa das palavras de Deus. Não posso nem quero retractar-me em nada, porque não é seguro nem honesto agir contra a própria consciência. (…) Não posso fazer outra coisa, que Deus me ajude.”
Martinho Lutero **
Em Junho de 1520, a bula papal Exsurge Domine intima um frade agostinho, professor de Sagradas Escrituras em Wittenberg, Martinho Lutero, a retractar-se. Três anos antes Lutero redigira noventa e cinco teses que criticavam a “virtude das indulgências” vendidas para favorecer a reconstrução de São Pedro de Roma (e que supostamente permitiam o perdão de pena de certos pecados). **
A Reforma proclamou três grandes palavras de ordem: apenas Deus, apenas a Escritura, apenas a graça. A sua radicalidade identifica-se pela vontade de suprimir os acrescentamentos que, segundo os seus adeptos, terão, ao longo dos séculos, desfigurado o cristianismo primitivo. **
Apenas Deus. Esta primeira afirmação é o fundamento das outras duas: Deus dá-se a conhecer a cada um de nós apenas através da Escritura e não delega a sua graça em nenhuma instituição. Para a imensa maioria dos protestantes, trata-se do Deus trinitário (Pai, Filho, Espírito Santo). **
Despojada de qualquer aspecto mediador, a Igreja deixa de ter a autoridade sacral, a infalibilidade necessária para poder ser só uma. (…) Do mesmo modo, nenhuma criatura pode ser objecto de orações ou de adoração: nem Maria (que teve outros filhos depois de Jesus) nem os santos. **
A ausência de mediador possível entre Deus e o ser humano dessacraliza o ministério eclesiástico (…) O pastor possui uma especialização (anunciar a Palavra, administrar os sacramentos) que não constitui um monopólio e que um leigo, formado para tal, pode igualmente exercer (…) Em geral, é nomeado pela igreja local e não por uma hierarquia. As mulheres, na maioria das Igrejas de hoje, podem ser pastores. Em todos os casos, o pastoreio pode ser exercido por pessoas casadas. **
O papel do pastor no culto não é o mesmo que o do sacerdote na missa. Com efeito, não existe sacrifício da missa nem qualquer qualidade específica do oficiante que o torne participante no acto divino de uma forma diferente dos outros fiéis. Acentua-se o apagamento de todo o actor humano diante do “Deus apenas” (…) Escrevia Lutero: “Que todo o homem que se reconhece cristão esteja certo e saiba que somos igualmente sacerdotes, isto é, que temos o mesmo poder relativamente à palavra e a qualquer sacramento.” **
Apenas a Escritura. “A autoridade soberana da Escritura em matéria de fé” é, segundo a teologia protestante, o “princípio formal” da Reforma. A Igreja relativizada pelo “apenas Deus” aí recebe a sua legitimidade: a sua missão consiste em pregar a Palavra e em administrar os sacramentos, sinais da graça. (…) **
A importância atribuída à Bíblia está também ligada ao privilégio concedido à audição, que suplanta a imagem, às vezes suspeita de poder transformar-se num objecto de veneração que, na prática, pode resvalar para a adoração (…) A mesa da comunhão (que substitui o altar) inclui uma grande Bíblia (…) É a palavra bíblica que confere sentido aos sacramentos. Não se verifica uma grande separação entre a nave e o coro: a assembleia reúne-se colectivamente no coro para tomar a ceia. **
Quanto mais sóbrio é o universo protestante mais intenso é o apego à Bíblia (…) Contudo, o protestantismo, no seu conjunto, quer dirigir-se também ao coração dos fiéis. A Reforma fez do canto religioso um dos seus meios de expressão privilegiados, instrumento de uma participação mais activa dos fiéis no desenrolar do culto (…) Deste modo, um certo fundamentalismo bíblico é acompanhado de um calor comunicativo e de uma piedade emocionalmente carregada. **
Apenas a graça. Ao princípio formal da autoridade soberana da Escritura corresponde um princípio material, o da justificação pela fé, obtida exclusivamente pela graça de Deus. (…) Lutero considera que, faça ele o que fizer, o ser humano tem necessidade da salvação pela graça. As suas obras estão marcadas por uma tara indelével: quando quer servir os outros, serve-se também deles para fins pessoais (…) Como as obras já não podem concorrer para a salvação, a moral é considerada antes de mais nada como um testemunho de reconhecimento em que cada cristão é chamado a responder pela “santificação” à sua justificação (…) **
* Embora existam várias e diferentes igrejas protestantes, como, aliás, no campo ortodoxo, preferi reservar o nome de religião para o cristianismo que, como disse em artigo anterior, abarca o conjunto das igrejas católicas, ortodoxas e protestantes.
** “As grandes religiões do mundo”, Jean Baubérot, Direcção de Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.
DA RAPINA
"Não há salvaguardas institucionais de último recurso para obrigar os poderes de emergência a respeitarem a constituição. Só a determinação do próprio povo em fazer que sejam usados assim pode assegurar tal coisa... Todos os modernos sistemas constitucionais quasi-totalitários, sejam eles a lei militar, o estado de sítio, ou os poderes constitucionais de emergência, falham em conformar-se a qualquer padrão exigente de efectivas limitações duma concentração temporária de poderes. Consequentemente, todos estes sistemas são passíveis de se transformarem em esquemas totalitários se as condições forem favoráveis para tal."
"Constitutional government and Democracy" (Carl Friedrich, citado por Giorgio Agamben)
O texto é de 1941 e tem em mente, sobretudo, os acontecimentos na Alemanha, com a tomada do poder, legalmente, por Adolf Hitler. Há, pelo menos, uma razão para não se poder fazer uma analogia com o que se passa, hoje, em Portugal, na Irlanda ou na Grécia, em que a soberania nacional foi limitada pelos credores, ao ponto de ter passado a existir, nesses países, uma "ocupação" estrangeira invisível, mas quase tão asfixiante.
A tese de Friedrich só não se verifica porque os "invasores" fazem parte de um quadro político supostamente solidário, que funciona como um seguro contra o risco de ganância desmesurada do capitalismo financeiro, ao abrigo do qual os credores podem esperar, como o Shylock do "Mercador de Veneza", a sua libra de carne, ao mesmo tempo que as vítimas ou se conformam com os "superiores interesses", interiorizando a teoria de que vivem ou viveram "acima das suas possibilidades", ou esbracejam contra o ar por falta de um "exército de ocupação".
Este é bem um sinal de como a realidade tem de ser entendida já ao nível da nossa tecnologia, com a velocidade dos nossos equipamentos electrónicos e a contracção geográfica virtual. O capitalismo de Marx e Engels tem hoje uma agilidade infinita e uma capacidade para se metamorfosear sem precedentes. Os novos abutres, graças à velocidade a que o sistema funciona, são ubíquos e nada escapa ao seu olho predador.
Podemos, depois de termos perdido a soberania, estar em vias de conhecer um novo tipo de anarquia, que é a do poder que não tem qualquer interesse racional no futuro.
O TEMPO DO DESASSOSSEGO
Mário Faria
(somanywds.wordpress.com) |
1 de Maio de 1975. Com alguns colegas, companheiros e camaradas dirigíamo-nos para o Sindicato para integrar o cortejo alusivo à data, quando nos cruzámos com uma série de manifestantes da “ferrugem” que, reconhecendo pelos cartazes, que éramos profissionais de seguros, nos disseram, mais em sinal de gozo que de acinte, qualquer coisa como: “ revolucionários ? burgueses é o que vocês são “. As palavras não terão sido exactamente essas, a ideia sim. Na altura, fiquei chocadíssimo. Senti-me insultado.
Passados estes anos todos, achei que os homens tinham razão. De facto, não era nem sou revolucionário, porque não era operário, nem antes e depois, mais tarde porque passei a relevar o direito à opinião, livre expressão e iniciativa privada como parte tangível de qualquer sistema político. Acreditava e continuo a acreditar que o socialismo, concebido no passado, tem futuro, ainda que num quadro menos ortodoxo. Têm de ser as novas gerações (ou as velhas) a descobrir o melhor caminho. Têm de ser intelectuais ou académicos a reescreverem o modelo e o método. Têm de ser os trabalhadores a provocar, estimular e a constituir-se como a locomotiva de uma política diferente a caminho de uma nova ordem. O Objectivo, esse não diferirá muito : chegar a uma sociedade mais justa em defesa dos trabalhadores e oprimidos. O trabalho não pode ser subjugado (em alguns casos escravizado) em favor de uma minoria que detém o capital. Já os meios não podem acolher os erros cometidos no passado : políticos, sociais e económicos . A liberdade e a iniciativa privada, mais do que toleradas, têm de ser enquadradas mas, nunca desvalorizadas.
Um dos problemas que se vive de momento é o facto de do “socialismo real” não se constituir como um modelo alternativo, depois do colapso da URSS. De facto, mesmo os partidos de esquerda, como o PCP e BE, combatem o sistema capitalista com a retórica dominante, e segundo as regras que estabelece. Diverge-se nas soluções do Governo actual porque, sendo penalizadoras para os trabalhadores, são más para a economia e causam recessão. Fala-se mais do modus faciendi para a saída da crise do que atacar o sistema que a pariu. O problema, na minha perspectiva, não decorre apenas de erros de governação ou da banca. O capitalismo não é regulável: não faz parte do seu ADN, como comprova a decadência das sociais democracias, nomeadamente da 3ª. via de Tony Blair.
Nada nasce ou morre, tudo se transforma. O capitalismo foi capaz de vestir diferentes vestes para sobreviver e progredir. A iniciativa privada, a ciência e a tecnologia deram passos de gigante para a melhoria qualitativa dos povos. Mas, os recursos estão exauridos e as soluções saturadas. O capitalismo se não está em vias de implosão, anda lá próximo. Será que, com a tragédia à vista, vai ser possível um novo rumo e o ressurgimento do sistema ? Tenho dúvidas e entendo que as soluções possíveis (só) serão encontradas pela via do autoritarismo e do empobrecimento generalizado. Uma espécie de Patriot Act, económico-financeiro, com leis e regras criadas para que se possa vencer uma situação pré-proclamada de verdadeira emergência nacional, como o nosso governo não se cansa de repetir. Não há alternativa, dizem. Salazar avisava: “… as ideias devem poder exprimir-se, sem obstáculos. As ideias e as doutrinas. Mas é preciso não pensar em conceder a mesma licença a certas estreitas discussões políticas e libelos polémicos, nas quais as injúrias substituem os argumentos. O meu país era e é ainda um doente. É indispensável, para seu repouso, poupá-lo : não se deve gritar inutilmente no quarto de um doente….”. A sentença de não haver alternativas à actual política de ataque à crise, não é mais do que uma forma suave de dizer o mesmo.
Não faço ideia do que se possa fazer neste tempo tão minguado de revolucionários e de novas ideias. Indignados, pois sim, estamos quase todos. O Maio de 68 foi um tsunami de protesto que acabou concedendo a maioria a De Gaulle. Como unir essa maré de descontentamento, quando se sabe que uma boa maioria está muito mais contra os políticos e os partidos tradicionais e bastante menos contra o sistema. Para muitos, talvez a maioria, não é uma questão de modelo é mais uma questão de (má) gestão da coisa pública.
Quem poderá substituir os operários como motores de mudança. Tem a palavra a esquerda que, insisto, tem recorrido à critica às opções que são tomadas pelos governos, quase sempre num registo de soluções alternativas no quadro do sistema. O direito à indignação e à resistência são os meios à mão que não são dispensáveis, mas é preciso dar um passo em frente. Quando, como e com que pé, não sou capaz de minimamente definir. Espero, desassossegadamente !
01/10/11
UMA ANOMALIA NA EVIDÊNCIA
Mário Martins
A Vicking Ship |
Interrompo a minha sucessão de textos sobre a religião por causa de um artigo de opinião de Vasco Pulido Valente (VPV) no Público de 27 de Agosto passado. Sob o título “A evidência”, VPV questiona: “E se tudo isto não for, no fundo, uma crise, mas for o colapso definitivo do que se chamou o Estado Social (…)?”, para, no fim, afirmar que “As sociedades da social-democracia, que um conjunto especial de circunstâncias por um momento permitiu, não voltam. Chegou a altura de perceber claramente esta evidência.”
Este artigo, pleno de aparência lógica e confiança interpretativa, trouxe-me, irresistivelmente, à lembrança o que se passou na viragem do século dezanove no campo da física. Havia, então, a convicção generalizada nos meios científicos, de que, praticamente, toda a física estava compreendida, restando apenas um ou outro fenómeno menor que, não encaixando embora nos modelos vigentes, não tardariam, por certo, a integrá-los. Digamos que também, então, havia uma evidência (a de que a física estava toda compreendida), embora houvesse uma anomalia (os fenómenos menores que não encaixavam nos modelos interpretativos). Sabe-se no que deu essa convicção, logo nos primeiros anos do século vinte: a abordagem da anomalia com o escrúpulo científico e a sagacidade de Einstein destruiu a evidência e revolucionou a física.
Qual será a anomalia na evidência de VPV? Os países nórdicos, concretamente, a Dinamarca e a Suécia, que fazem parte da União Europeia mas não do Euro, a Finlândia que integra a Zona Euro e a Noruega que nem sequer pertence à União Europeia. Os tais de que, geralmente, a televisão não fala, se não levarmos à conta a notícia do acontecimento trágico, mas extraordinário, do assassínio em massa levado a cabo pelo fundamentalista norueguês. Parece, com efeito, que os estados nórdicos não querem deixar de ser sociais e que, relativamente aos demais, continuam de boa saúde. Vejamos alguns índices, recolhidos no Eurostat:
Além destes índices, leio na Wikipédia que a Dinamarca “possui o mais alto nível de igualdade de riqueza do mundo” e que “de 2006 a 2008, pesquisas classificaram a Dinamarca como o lugar mais feliz do mundo, com base em normas de saúde, assistência social, e educação”; que a Finlândia “foi classificada na 1ª posição do Índice de Prosperidade Legatum de 2009, que é baseado no desempenho económico e na qualidade de vida”; que a Noruega “mantém o modelo social escandinavo baseado na saúde universal, no ensino superior subsidiado e em um regime abrangente de previdência social”, e que “foi classificada como o melhor país do mundo em desenvolvimento humano em todos os relatórios desde 2001” e ainda que, em 2009, “foi novamente classificada pela ONU como o melhor país do mundo para se viver”; que a Suécia “dispõe hoje de um extensivo programa de bem-estar social; além disso, serviços públicos como saúde e educação estão entre os mais elogiados do planeta”.
Ouvi o Professor Medina Carreira defender recentemente, na televisão, que Portugal, para sair do estado em que se encontra, necessita de atrair grande investimento de capital e que, para isso, precisamos de saber, em termos comparativos com outros países da Europa, o que forçosamente temos que melhorar nos campos da educação, justiça, fiscalidade, burocracia, etc., ou seja, aquilo a que se chama, no ambiente organizacional dos nossos dias, seguir as boas práticas.
Sem embargo, parece-me que se há modelo que deveria inspirar os portugueses neste momento de aflição esse é o da social-democracia escandinava. É mais que tempo de se estudar o inegável sucesso (que o petróleo e o gás natural da Noruega não podem, só por si, explicar) dos países nórdicos que, pelo visto, resistem à pressão financeira e aos ventos de desagregação social que assolam a Europa.
Subscrever:
Mensagens (Atom)