Alcino Silva
A noite sossega-me ou então são as luzes interiores que abafam a claridade e trazem até mim esta sensação de acalmia. Deixo que os olhos se percam na luxúria do barroco, nesse amarelo fosco com que quiseram alardear grandeza e que ornamenta cenas de martírio. Que contradição, ou hipocrisia, enaltecer os mártires rodeando-os de esplendor, não da virtude, mas da riqueza, quase sempre espoliada. A música surge, abafando aos poucos estes pensamentos, estes deleites meus de percorrer a memória, procurando-te na história, pois também tu preferiste ser passado. O deambulatório abre-se em azul de mar e os sons parecem chegar nessas ondas de maresia nocturna em que a brancura aparece reflectida pela luz lunar sobre a espuma que se espalha na terrena areia. Voam as notas como as aves em bando, acordando os meus sonhos, fazendo estremecer o tempo em que passeava sorrindo nas manhãs que chegavam, abrindo-se como as pétalas das flores quando o sol pousa sobre as suas cores. Um adormecimento sacode-me nesse recordar do que já parece longínquo e acordo no espaço da fronteira, não dessa que tantas vezes demarca os seres humanos, as culturas, as terras, os lugares e até as línguas que se exprimem. Não, esta é um outro traço, uma linha invisível que separa a vida, do silêncio, essa onde me encontraste, e de onde me retiraste dessa atracção que me conduzia em tempo marcado para o outro lado do caminho. A melodia suave que pousa em mim, nesta noite morna, coloca-me outra vez nesse trilho de montanha, nesse duplo traçado com ponteado indefinido a mostrar a separação, como se dividisse o dia e a noite, a escuridão e a claridade. É um fim de tarde e a paisagem permanece nessa beleza estonteante do pretérito. Os átomos do tempo fusionam-se na lembrança do belo. Sinto a tua mão na minha, nessa fragilidade de um elo que se pode quebrar, talvez gasto pelo tempo ou desajustado ao lugar. Percebe-se esse instante em que a diferença marca lugar no mundo das coisas e aceitamo-la como a compreensão do inevitável. Por momentos, as mãos ficam suspensas como se fossem cair, vazias, inseguras, mas quase logo encontram o antigo lugar, junto ao corpo onde pertencem. A música vem nessa dolência crepuscular e adula-nos o olhar para que não sinta esse humedecer nocturno do caminho que agora me leva. Os trajectos paralelos prosseguem, mas quando as cordas dos violinos se agitam, tangendo em sintonia com o cravo, nasce uma curva, lenta mas em distintas direcções. Os poentes que olhamos já não possuem as mesmas tonalidades e ao contrário do teu, aquele que se me oferece olhar, distende-se em cinzentos enevoados. Numa encruzilhada detenho-me observando o sábio que procuro imitar. A mão fechada e o indicador aberto, debruço-me sobre o chão e procuro a geometria do desenho do futuro. As linhas saem perfeitas, rectilíneas, suaves, sem tremuras, mas a figura não encerra, o princípio não encontra o fim, o correr do dedo detém-se e a figura fica incompleta, sem definição. A frescura da noite invade-me o olhar, não há lua hoje, o som do cântico que vindo de ti me visitava, extinguiu-se levado pelas sombras que me rodeiam. Encerro os olhos e prossigo, creio que já percorri esta estrada.
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