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01/12/08

17




BARACK

Mário Martins

Barack Obama


Foi um negro mas podia ter sido uma mulher. Se a eleição de Barack, num país de histórica segregação, é um passo de gigante na caminhada da humanidade no sentido da igualdade de direitos racial, a eventual eleição de Hillary não representaria menos em termos da almejada igualdade de direitos sexual. Se mais não trouxer, isto justifica, por si só, a emoção colectiva experimentada dentro e fora das fronteiras americanas.

E agora? Depois de anos de recessão política e desordem financeira, sucedem a recessão económica e, com ela, o agravamento das condições de vida, no quadro de uma crise de energia e ambiental. Como disse o Presidente Lula, está na hora da política e percebe-se, com efeito, que uma nova ordem política mundial está a nascer. O facto de os vinte países (incluindo a União Europeia) considerados mais poderosos se terem concertado para decidirem até Março regras de regulação do(s) mercado(s), se se inscreve, sem dúvida, nesse reordenamento geopolítico, representa, muito para além disso, a busca de um capitalismo de novo tipo, e uma mundialização político-económico-financeira cada vez mais institucionalizada.

Isto significa que ao capitalismo (“de casino”) só pode suceder o capitalismo (com maior regulação e controlo)? Perante o fracasso das experiências socialistas, baseadas, como se sabe, na ditadura política e na estatização da economia, e, sobretudo, face ao desnorte da análise que lhe sucedeu (ora considerando-se que foi o próprio modelo soviético que falhou, ora considerando-se, como agora, que o falhanço se deveu ao cerco do imperialismo americano), a resposta não pode deixar de ser afirmativa.

Os portugueses (pelo menos os da minha geração) sabem, por experiência própria, distinguir entre ditadura e democracia. Esta deveria ser uma razão acrescida para não se continuar a invocar o ideário do socialismo sem se especificar o que estava errado nas experiências fracassadas e arquitectar um novo modelo credível. Sem isso, não faz sentido e é mesmo paradoxal continuar a propor-se um sistema cujas experiências concretas ruíram.

Com Barack inicia-se um novo ciclo político. “Sim, nós podemos”? Como é típico dos grandes momentos políticos como este, esperamos deste homem que materialize os mais profundos anseios de paz, justiça e prosperidade no mundo, apesar de a experiência histórica ensinar que, cedo ou tarde, nos desiludiremos com ele. O fenómeno da entropia, que desorganiza os sistemas físicos, também está presente na política. Mas, tal como com Mandela, este momento altamente simbólico de afirmação da igualdade de direitos, esse ninguém nos tira.


O DIA EM QUE O (MEU) MUNDO MUDOU

Alcino Silva

http://www.everestspeakersbureau.com



Foi há dias atrás que fui sensível a um discurso apresentado face a esta crise do capitalismo – sim já não é desactualizado voltar a usar o termo -, a esta bancarrota total deste comboio que rodava alegremente para se espatifar contra um muro de betão. Pois diziam-me então que temos de ser consumidores e consumir, pois se não consumirmos as empresas não vendem e se não vendem encerram e encerrando, os trabalhadores, desculpem, os consumidores, ficam sem emprego. Pareceu-me uma teoria simples, acessível e perceptível, tão perceptível que costumando demorar algum tempo a compreender as realidades, desde logo aderi. Eu que durante tantos anos fui defensor de uma sociedade sem sumo, senti assim esse apelo a trazer-me até esta fantástica sociedade com sumo. Pensando bem, não fazia muito sentido, pois como saborear a vida, a beleza das coisas, os sentimentos das pessoas, numa sociedade em que se espreme e nada sai, absolutamente sem sumo, daí esta mudança que embora exija uma transformação do pensamento sempre poderá trazer alguma compensação material, dado que a sociedade com sumo, embora não dando nada, oferece tudo, inclusive essa espantosa liberdade que posso ter, tanto para obter tudo, como para não obter nada, pois uma das suas grandes maravilhas é permitir-me escolher e, portanto, poderei ser livre de nunca ter nada, mas caramba, liberdade é liberdade, enquanto na sociedade sem sumo, não dispunha desse instante mágico de ser livre sem nada ou ser, com muito, sobretudo com muito em cima da liberdade dos outros. Portanto, aí está a minha escolha pela sociedade com sumo, quanto mais não seja, por esses dois aspectos irrebatíveis, a minha liberdade e o contribuir para o trabalho dos outros, pois transformo-me num com sumidor. E, quem sabe, no futuro, talvez com um pouco de sorte, algumas cedências morais, na verdade, um homem que passa a ser um com sumidor não pode ficar inflexível, assim sem mover as ideias, sem lhes dar alguma elasticidade, não é uma questão de valores ou de dignidade como dizem os defensores da sociedade sem sumo, mas antes uma adaptação aos tempos, às circunstâncias, ao novo, ao moderno, e com essa flexibilidade, não poderei até obter um certo estatuto, encerrar-me até, quem sabe, no meu condomínio fechado, sair da garagem com um automóvel que se veja, fazer umas viagens espalhando os olhos por esse mundo admirável que se fecha para os que defendem a sociedade sem sumo. Sim, é verdade que nos exemplos que tivemos dessa sociedade sem sumo, se garantia direitos interessantes, como o do trabalho, o da saúde, o da cultura, o da educação, coisas assim, mas faltava o sumo, a minha liberdade individual. Para que serve ter saúde, educação, cultura, trabalho, se eu não sou livre, não posso escolher ir aqui e ali, mesmo que não vá a lado nenhum? Não serve para quase nada, daí esta minha adesão. É mil vezes preferível ter de mendigar trabalho, saúde educação, cultura e outras questões sem muita importância, mas ser livre. Caramba, ser livre, entendamo-nos. Até para ter fome é necessário ser livre, poder esticar os braços e gritar, gritar alto, não muito, que sou livre. E tendo decidido desta forma, achei por bem dar-vos conhecimento deste momento solene e tão significativo para mim. Hoje, dia 26 de Novembro deste ano que corre com o número 2008, decidi aderir à sociedade com sumo, ia a escrever aos valores da, mas lembrei-me que não tem valores, só tem sumo. Apesar desta minha decisão só não percebo porque razão lá no fundo do meu pensamento continuo a escutar a voz do cientista toscano a dizer, “no entanto ela move-se”.


O REGRESSO

Cristina Guerreiro

Grand Theatre London, Ontario


Nessa noite não pregou olho. Voltava-lhe tudo à memória em vagas ora quentes ora frias, consoante a ansiedade ou a felicidade lhe tomavam espaço.

Lembrava-se de tudo com nitidez, dos cheiros, dos sons, da boca seca, da pele arrepiada.

Voltar. Voltar à azáfama do antigamente, da correria velada, do tremor nas pernas, da paixão que lhe tirava o tino dos pés do chão, voltar a morrer por cada vez que subisse ao palco, voltar a sentir medo de se esquecer das linhas, voltar ao improviso da vida em meia dúzia de minutos quando a cabeça falhava e o coração desatado compunha palavras na sua boca que os outros engoliam como certas, as mais certas aliás.

Quando subiu ao palco a primeira coisa que fez depois de o pisar com o pé direito foi apalpar as cortinas, sentir-lhes a macieza e o peso dos anos, a absorção de muitas noites agora misturadas com um travo de naftalina. Afastou uma fresta e bateu-lhe na cara a plateia vazia. Fechou os olhos, encheu-a de gente anónima que de pé estalaram recordações e disse para si obrigado, obrigado e o som do bis encheu-lhe a barba rala e branca de um sorriso.

Quem o visse decerto acharia que chorava, ou que se entristecera, ou que tonto da idade espreitava o que não havia. Mas não, era só o brilho das luzes a reflectirem anos e mais anos a gastarem o cénico, as pancadinhas, as palavras supersticiosas, o gole de aguardente para enganar o frio do estômago, a troca de roupa no intervalo fumarento entre a pergunta da praxe sobre a bilheteira.

Chamaram-no: Se sabia o que fazer, onde se deveria resguardar enquanto os actores trabalhavam, a velocidade ao puxar o cordame para a abertura das cortinas, a atenção ao texto para o final dos actos.

Sabia, sabia tudo, apesar desta ser uma estreia nesse papel.


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A TORTURA

Mário Faria




O homem não sabia se tinha acordado, se estaria com pesadelos: encontrava-se num lugar que não conseguia vislumbrar ou reconhecer, mas que sentia ser hostil. Porque estava lá ?
Numa meia penumbra, uma luz mais forte incidia no rosto. Ouvia vozes, algumas de comando. Não sabia se o estavam a torturar, mas temia-o seriamente, e revoltava-se contra essa impotência de não poder reagir, gritar e expulsar os demónios que dele se tinham apoderado.
Queria falar, mas não podia. A dor física não era insuportável, mas o incómodo era muito e difícil de explicar. Psicologicamente aproximava-se do ponto zero. Sentia um objecto disforme que lhe descia pela garganta, o sufocava e o deixava à beira do pânico. Era uma sensação duplamente estranha: pressentia que estava drogado, porque a esses momentos de pânico sucediam momentos de algum sossego. Entrava numa espécie de limbo que lhe adormecia a dor, o espanto e o terror, mas que não o pacientavam de todo. Era uma calma desassossegada, porque pressentia que o perigo continuava a espreitar e os maus se mantinham por perto para provocar mais danos.
Passou, assim, demasiado tempo sem reconhecer quanto tempo passou, de facto. Entre a sonolência sem jeito e o estar meio desperto, foi percebendo que sentia esses sinais de vida pela pior via : o pânico, que não havia forma de desertar.
Sentia que entrava gente e novos visitantes, que não pôde reconhecer. Eram mais estranhos que os restantes desconhecidos. Aproveitava de todas as formas possíveis essa sensação de presença para assinalar a angústia e o medo. Com o dedo, coberto por algo metálico, batia no bordo do que supunha ser um catre (uma maca ?, uma cama ?), para chamar a atenção e avisar um eventual salvador, daqueles que costumam aparecer nos filmes, dos mil perigos que julgava correr. Mas, nada. Apenas, lhe ralhavam e o mandavam estar calmo e quietinho.
Tornava a cair numa sonolência a que queria fugir, porque lhe parecia um pronuncio de morte, mas que o atraía porque o sossegava, por momentos, daquela tortura que era estar vivo. O objecto continuava, pela boca dentro, a perfurar-lhe a vida, o ânimo, a carne, a calma e a vontade de sobreviver. Afinal, não sabia onde estava, quem o acompanhava e se estava a ser sujeito a um qualquer ritual satânico.
Passou tempo, muito tempo. Não sabe se foi uma hora, várias ou apenas uma dúzia de minutos. Sabe que foi demais. Cada vez se sentia mais inquieto : tentava mostrar por todas as formas a sua revolta na esperança que um bom samaritano viesse em seu socorro.
Notou que alguém importante entrou, pelo silêncio que ecoou. Dialogou com terceiros e, então, sentiu que esse intruso lhe arrancou das entranhas, num repente e num puxão deveras irritativo, o escabroso objecto desconhecido que tanto horror lhe tinha causado. Tinha chegado o salvador, finalmente. Tossiu para afastar a rouquidão que se tinha instalado numa garganta que parecia lixa. Acalmou, dormitou por uns breves (?) instantes, em paz e sossego, finalmente.
Abriu os olhos e já via : tinha a família junto de si, que lhe explicaram que tinha sido operado de urgência, que estava numa unidade pós operatória especial, ligado a muitas máquinas de controlo de vida, que estava a reagir bem e que já não precisava de estar mais tempo entubado.
Soube mais tarde – já em fase acelerada de convalescença - que, naquele dia, a filha tinha desmaiado, o filho “fugido” e que a equipa médica só tinha permitido que o (doente) recebesse visita dos familiares depois de acalmar, pois, segundo os médicos de serviço, o “homem feito prisioneiro” tinha-se mostrado inesperadamente muito inquieto depois do pós-operatório, no lugar de recobro.
Foi assim : o doente não sabe, ainda, entre o sono e o delírio o que de facto se passou. Mas a dor e o pânico sentidos, esses não os esquece, continuam vivos na parte mais incerta da memória. Certo é que a vida, às vezes, tem de recomeçar com sangue, suor, pânico e que, com demasiada frequência, parece ser necessário torturar o corpo e afligir a alma para que o renascimento seja possível.
Terá de ser assim ou o doente tende a perder a sua condição de pessoa, quando mais carece desse sentimento solidário de proximidade que só o calor humano transmite ?


A TURMA

António Mesquita

"A Turma" (2008-Laurent Cantet)



Só em parte o filme de Laurent Cantet "A Turma" ("Entre les murs") pode reflectir os problemas duma escola do secundário no nosso país. O colégio Françoise Dolto está situado num dos bairros mais problemáticos de Paris; os filhos do emigrante do Maghreb ou do Mali têm uma questão prévia com o seu meio de acolhimento: eles sentem que a atitude de "respeito e obediência" que, em relação aos professores, é exigida aos alunos em geral, se confunde com a submissão duma cultura que é, as mais das vezes, apenas simbólica. Antes de aprender a língua "estrangeira", têm de conquistar, contra os reflexos condicionados do colonizador, uma identidade, tanto mais problemática quanto se vêem reduzidos a forjá-la com o bric-à-brac da cultura de massas. Quando esses alunos são convidados a fazer o seu auto-retrato, não é a África mítica que os inspira, senão o rap e os símbolos da sociedade do consumo.

Ficamos, porém, com a dúvida se, no caso das "ovelhas negras" virem a ser todas excluídas, teríamos uma escola onde, na aula do professor François Martin (o actor, François Bégaudeau é o autor do livro que serviu de argumento) se podia aprender o francês.

Porque não é apenas a atitude dos alunos em geral que é o contrário da atenção e do interesse em qualquer outra coisa para além do toque da sineta que os libertará do constrangimento, é que a escola parece ter-se adaptado a esse tipo de escuta relutante, e aquele professor é, na verdade, um entertainer que fala de tudo e de nada a fim de espevitar uma atenção moribunda e onde está completamente ausente a ideia do trabalho de aprender.

Parece que o estudo da gramática e da sintaxe não é já importante para o conhecimento da língua e que ela se pode aprender através dum convívio forçado com o professor. Mas é claro que, naquela aula, o problema prioritário, que submerge todos os outros, é o da disciplina e que se chegar ao fim sem um acto de insubordinação o adulto já ganhou o dia.

Como apontamento final, aquele jogo de futebol entre alunos atléticos e professores desajeitados, com a gravata do reitor a esvoaçar no meio, é uma metáfora da demagogia reinante que à força quer confundir a escola com a sociedade política, onde não existe hierarquia e todos têm os mesmos direitos.

Aconteceu que na tarde em que vi o filme a sala estava esgotada com uma escola, talvez, da vizinhança, e apesar do bulício natural nada houve que assinalar, a não ser que, de vez em quando, se via a silhueta duma professora que se erguia para chamar um ou outro à ordem.


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01/11/08

16

CONHECER E COMPREENDER (2)


Mário Martins
A Via Láctea (imagem artística)



É claro para mim que a única fonte de conhecimento e compreensão é a observação e o pensamento humanos ou, melhor dizendo, a mediação da realidade pelos sentidos e pela mente humanos.
Se assim é, e sendo a natureza um dado do qual os seres humanos são um produto (não interessa agora se a natureza foi criada ou é incriada), segue-se que a humanidade não pode furtar-se à sua condição de aluna da realidade, aprendendo por tentativa e erro.
Esta condição está, aliás, bem assumida pelo método científico, o qual, face aos factos observados, imagina hipóteses e experiências, visando construir modelos de interpretação da realidade ou de bocados dela, os quais não só devem explicar como e porquê ocorrem os factos observados, como devem determinar que, em condições dadas, esses factos terão que necessariamente ocorrer, estabelecendo e descobrindo, assim, as teorias científicas e as leis da natureza.
Nunca é demais assinalar que a principal característica do método científico é que o modelo, para além da sua coerência lógica interna, tem de estar em concordância com os factos observados, quer no próprio momento da sua construção quer no futuro. Isto significa que se novos factos ou factos antes não considerados não forem explicados ou contrariarem o modelo (e assumindo que este não estava pura e simplesmente errado), a teoria tem que ser revista ou abandonada.
Portanto, o que é essencial mas também dramático na ciência é a incerteza ou, dito de outra maneira, é o carácter incerto das suas certezas (passe o jogo de palavras). Isto é de tal modo condicionante, que mesmo quando uma teoria resiste à passagem dos séculos nunca podemos estar absolutamente certos de que a descoberta de novos factos não venha pô-la em causa.
Tal não quer dizer que a teoria não constitua, eventualmente, uma verdade absoluta, nós é que nunca o poderemos saber. Para usar uma imagem, é um pouco o que se passa com a visão da nossa galáxia. Só conseguimos observar, em céu nocturno propício, um braço ou uma porção dele, na forma de uma majestosa “estrada do leite”. Para a vermos completamente teríamos que sair dela (como saímos da Terra), o que é uma ideia ainda assim menos absurda do que sair da natureza…
Existe ainda uma variedade da crença na omnisciência progressiva da ciência que consiste em acreditar que a lei da evolução por selecção natural fará aumentar de tal ordem as nossas capacidades cerebrais, que nos transformará um dia, por assim dizer, em deuses. O problema, no entanto, mantém-se. Como poderemos saber que as nossas capacidades mentais atingiram o horizonte divino? ou que a lei da evolução cessou os seus efeitos?
Anthony Kenny, na sua obra já citada, afirma “não acreditar que todas as áreas problemáticas serão (no futuro) suficientemente clarificadas para se estabelecerem como ciências independentes: a teoria do significado, a epistemologia, a filosofia da mente, a ética e a metafísica serão sempre filosóficas”.
Não poderia estar mais de acordo com ele. Acho, contra a moda do tempo, que a filosofia não só é necessária como sobreviverá à vaga obscurantista que assola o mundo de hoje.


A CRISE


Mário Faria

Manifestação contra el Corralito em Fevereiro de 2002, na Argentina

Assim que souberam, que o então ministro da economia Domingos Cavallo ia impor o “corralito” (restrições na movimentação de contas bancárias), 1500 empresários e outras destacadas personalidades levaram para fora do país qualquer coisa como 3 mil milhões de dólares. Em 1974, a desigualdade social, ou seja a diferença entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres era de seis vezes. Em 2001, o fosso atingiu 46,6.
O primeiro aviso, deste século ocorreu lá : o mercado não só não resolveu os problemas, como não ficou imune das cadeias que costuma estabelecer para optimizar os seus proveitos. Com o seu potencial e as suas fragilidades, na Argentina como em Portugal, o capitalismo é demasiado importante para ser deixado ao arbítrio dos capitalistas.
Os mercados não funcionam tão perfeitamente como afirmam os modelos simplistas baseados nos postulados da concorrência e da informação. Não é assim que as coisas se passam : hoje a mundialização não funciona. Não funciona para os pobres do mundo. Não funciona para o meio ambiente. Não funciona para a estabilidade da economia mundial, e fica demasiado exposta ao jogo da especulação financeira, sem rosto e sem fronteiras.
O mercado é uma instituição que só existe através de outras instituições. Se não houver, a par do mercado, um bom sistema jurídico, um bom sistema de direito que defina a propriedade e que defina as relações de troca, se não houver uma boa rede bancária, se não houver toda uma série de instituições, se não houver um Estado que regulamente o mercado, então ele não funciona, transforma-se numa máfia.
É necessário considerar que o impossível é mesmo certo e inevitável para que o impossível se torne impossível, considerando a precaução insuficiente: a precaução baseia-se na incerteza de que algo possa vir ou não vir a acontecer; o catastrofismo esclarecido parte do princípio de que vai mesmo acontecer. Nenhum dos iminentes figurões que sabem tudo de economia e finanças, foi capaz de nos avisar. Afinal, eles enganam-se muito e erram de forma irresponsavelmente descarada.
A globalização é o predomínio do mercado sobre a política : a globalização cria riqueza aumentando a insegurança. Quem gere a nova insegurança? Ninguém. A internacionalização política fica atrás da económica.
Kahneman e Tversky, este último já falecido, mostraram como as decisões em situações de incerteza se afastam da racionalidade prescrita na teoria económica tradicional, em virtude do peso importante de factores de ordem psicológica e cultural, como por exemplo os modelos mentais, as emoções, as atitudes, as memórias das experiências do passado e a percepção das suas consequências em situações semelhantes. Assim, em situações incertas as pessoas tendem a basear-se em heurísticas, senso comum e em métodos práticos de tomar as decisões.
A agenda política dos conservadores americanos é intrinsecamente revolucionária. Desde o início, os americanos viram os seus valores e instituições como a expressão de aspirações universais que um dia seriam relevantes muito além fronteiras. A democracia, o governo constitucional, os direitos individuais e o mercado livre, servem os USA como todos os outros estados. O mercado livre integra um sistema auto-regulador eficiente : menos Estado, menos intervenção a não ser que sirva para servir os interesses do sistema, nomeadamente da banca.
Sabemos agora (o que sempre desconfiámos) que o mercado nos pode deixar muito próximo do precipício. É fácil : primeiro, surge uma nova e maravilhosa tecnologia ou ideia económica. Depois de alguns anos de segurança e prosperidade, é engendrada o conceito que as velhas regras não se aplicam mais. O cenário parece cor de rosa, e a nova tendência, antes confinada aos investidores graúdos, ganha a comunidade. Todos passam a comprar acções, a investir em capital de risco, e, de repente, pluff, a bolha estoura. Os heróis tornam-se vilões, as falências disseminam-se.
São os ciclos, são as bolhas, são os produtos tóxicos. O que sobra de riqueza no jargão da linguagem económica e financeira, falta nas empresas e nos cidadãos. Os pobres, esses, ficam muito aliviados depois de ler que em Portugal a pobreza desceu de 1,8 para 1,6 milhões de pessoas. Só não percebem porque continuam pior, e não fazem parte desses 200 mil que deixaram o paradigma dessa vergonha que é ser pobre e excluído. O que lhes falta cumprir ?
Sem rodeios, a verdade nua e crua é só uma : o nosso Governo não tem ao seu dispor instrumentos eficazes, aquelas armas clássicas da política económica para reverter uma situação de crise deste ou doutro tipo. Estamos absolutamente à mercê da conjuntura internacional, quando a crise internacional parece ser mais sistémica e menos conjuntural.
É necessário apertar o cinto, diminuir o crescimento de salários, aumentar o desemprego, permitir os despedimentos, privatizar os serviços públicos, investir e inovar. É urgente realizar uma reforma de mentalidades.
Sinceramente, acho que muitos desses sábios e senadores que escreveram (e insistem em escrever) este tipo de palavreado altamente tóxico, quando lhes dá na bolha, precisam de urgente reciclagem. Julgando-se muito inteligentes e sapientes, tornaram-se estupidamente reaccionários para parecer que são modernos e lucidamente progressistas.
Já tinha compreendido que havia portugueses com direitos, conquistas e mordomias insustentáveis e que são esses os que mais defendem que é preciso acabar com os privilégios.
Neste momento de crise aguda do sistema capitalista, é imperioso que a esquerda se assuma na defesa dos trabalhadores e de todos excluídos, pois uma democracia não pode acabar onde começa a propriedade privada.

Parte deste artigo recebeu subsídios de textos de : Joseph E.Stiglitz, René Passet, Jean Pierre Dupuy, Sérgio Figueiredo, Eduardo Prado Coelho, Francis Fukuyama e António Barreto.


AS FORMAS DE DEUS

Alcino Silva
Santa Sofia (Istambul)


O nosso olhar pode muitas vezes perder-se no pormenor, pode até imiscuir-se neste e naquele aspecto minúsculo do que é grande, magnífico e soberbo, mas na verdade, onde nos perdemos em definitivo é no aspecto altivo e grandioso das construções, sobretudo das que se destacam por uma arquitectura e estética que deslumbra.
Quando viajamos pela Europa, sempre nos detemos perante as catedrais que desafiam o homem, sobretudo aquelas que foram desenhadas, concebidas e construídas nesse momento medieval em que uma burguesia que já ameaçava ser opulenta, fazia uma afirmação da sua riqueza e a Igreja, fazia questão de não abdicar do sagrado, desse espaço onde governava e mandava há séculos.
Quantas vezes, paralisa-nos o espanto da grandeza da obra e da beleza das pedras, do brilho dos seus vitrais, da delicadeza das suas colunas ou como os seus pináculos se erguem para o céu.
Contudo, a sua construção nunca aconteceu ao ocaso. Desde o espaço onde foram concebidas, a forma como foram erguidas, a escolha da pedra que lhes deu talhe, a concepção dos seus arcos ogivais, os seus vidros coloridos, todos os aspectos cumpriam uma missão e visavam um fim. Não era apenas a convivência com Deus, era também a maneira como se desejava recebê-lo, como se pretendia que visse os crentes, os olhasse, os protegesse e os abençoasse. Os seus vitrais abriam as paredes desses extraordinários templos para a luz e as abóbadas desembrulhavam-se em autênticos desafios à gravidade, formando amplos espaços onde parecia ser possível acolher todos os fiéis. Deus, era assim visto da terra e, podia ver, olhando do céu, tudo ao mesmo tempo. Estas catedrais de arquitectura deslumbrante, não era um mero lugar para orar, pretendia-se que fossem também um território de convivência com o ser superior interiorizado na figura de Deus.
Na descrição da cúpula da catedral de Santa Sofia, ficamos a saber que os crentes, “em vez de olhar para a abside, [ao entrarem têm] a vista imediatamente atraída pela cúpula, imagem da esfera celeste. A sensação mistura o esmagamento que decorre da finitude humana e a elevação progressiva do olhar e da alma para o Reino de Deus. Além disso, a iluminação vem do alto: das 40 janelas que rasgam a base da cúpula e das janelas abertas nos muros altos dos arcos formeiros que sustentam o quadrado da cúpula a norte e a sul. Vinda do cimo, a claridade é ao mesmo tempo um símbolo da luz celeste e um convite a olhar para o Céu” (1).
Nestes monumentos religiosos que tanta atenção nos cativam, quer os encontremos no sul ou no norte do continente, nada ficava ao acaso e tudo ocupava um lugar e uma função, tendo como centro das atenções o que podia ser a presença figurativa de Deus, pelo que se adivinha ao entrarmos, um jogo que nos é proporcionado entre o real e o fantástico.
Henri Focillon fala-nos desta forma da Arte do Ocidente na época medieval: “O arquitecto intérprete do peso é igualmente intérprete da luz pela maneira como calcula e combina os efeitos. Não devemos restringir esta questão aos problemas da iluminação: têm uma importância capital e vê-los-emos ligados aos problemas da estrutura e do equilíbrio e, durante todo o curso da Idade Média, evoluírem as suas soluções de acordo com as soluções construtivas. Mas o estudo dos efeitos não se limita a isto. Diz respeito à relação dos vazios e dos cheios, das sombras e dos claros, e talvez sobretudo do nu e da decoração. Finalmente, a arquitectura não é desenho ou fotografia: é realizada na matéria. Sente-se imediatamente quanto a importância e a particularidade desta noção se repercutem em todos os tratamentos. Interessa a estrutura duma maneira fundamental, porque as diversas espécies de materiais comportam a sua lei íntima e as suas exigências, que se impõem às funções, ao aparelho e que restringem ou permitem a extensão dos programas. Além disso, a matéria é epiderme e cor e, por aí, contribui com sedução, com força, para a vida duma arte que não é apenas concebida para a análise técnica e para a anatomia, mas para o contentamento da vista. Actua nas relações que acabamos de evocar e que, ora dando a predominância aos cheios, às vastas superfícies luminosas, à economia arquitectural da decoração, ora assegurando-a aos vazios, ao equívoco do claro-escuro, à profusão das partes esculpidas, cria, com o mesmo vocabulário, formas, sintaxes, línguas e poéticas diferentes” (2).
Nas nossas viagens, olhemos um pouco mais para a profundidade das construções que se expõem aos nossos olhos, tentemos interrogar as pedras que se acastelam, as figuras coloridas que nos vidros adquirem formas de vida, sigamos os raios de luz que penetram pelas aberturas e vejamos até onde nos conduzem e que nos dizem, que palavras, que gestos, que símbolos, contêm. Há uma linguagem, ora mágica, imaginativa além, por vezes no domínio do fantástico e da ficção, simbologia sagrada no âmbito da mensagem, debruçada sobre a paisagem em desafio ao profano, mas com a beleza desses momentos que somados os espaços da história, constituem a cultura do todo.

(1) Ducellier, Alan, Kaplan, Michel, Martin, Bernardette, in “A Idade Média no Oriente-Bizâncio e o Islão”, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1999.
(2) Focillon, Henri, in “Arte do Ocidente-a idade média românica e gótica”, editorial Estampa, Lisboa, 1993.

O SOBRETUDO


Cristina Guerreiro
Homme mettant un pardessus de Dethomas Maxime



Avistou-o sentado, aquele ar grave quase carrancudo que lhe conhecia parecia fazer parte da indumentária, um complemento ao sobretudo grosso cinzentão que lhe tornava os ombros mais quadrados.

Sentiu um aperto no peito.

Avançou, tocou-lhe na mão agarrada ao jornal, ele levantou-se e abraçou-a forte, vagarosamente, enorme na sua estatura, delicado no enlace.

Sentaram-se de mãos dadas, ela sentiu distintamente o calor dele amornar-lhe as suas vindas do frio de fora, o sorriso dele doer-lhe mais no peito.

Ele falou dos dias de sol por vir e do frio que os obrigava a chegarem-se mais um ao outro. Ela não foi capaz de lhe dizer, concordou com um aceno de cabeça, procurou dentro de si coisas bastantes que lhe mudassem a vontade mas não foi capaz.

Dizia que sim ao que ele lhe dizia e dizia não, nem sempre, à voz do peito, a quem falava fluente sobre a sua decisão mas emudecia-lhe o olhar quando achava que tinha chegado a altura.

Nunca seria a altura ideal. Nunca seria o nome do dia em que ele entenderia e nunca era também o carimbo que selava a coragem precisada naquele instante já tão adiado.

Nunca seria capaz de lhe dizer que o gostava como se gostam das coisas simples da vida, de homens bons que se zangam na ira da injustiça, daqueles que erguem o punho ao marcar-se a vitória. E nunca seria capaz de lhe dizer que no peito lhe faltava a lenha para queimar barcos e nadar até à margem só para agarrar a estrela do mar.

Por tudo isso, quando se levantaram ela enfiou a mão esquerda no bolso do sobretudo dele como sempre fazia. Por tudo isso ela voltou atrás para buscar qualquer coisa esquecida.

E por tudo isso ele haveria de a esquecer quando achasse no bolso o bilhete a dizer-lhe adeus.


O TANDEM

António Mesquita



Para compreendermos a política, podemos servir-nos do discurso que ela tem para si própria?

Um partido não deverá ser julgado como se a adequação do programa à sua prática fosse a questão.

As organizações precisam, mais do que apresentar uma imagem para o exterior, de se justificarem a si próprias, para o que servem, fundamentalmente, o programa e a interpretação que elas fazem da sua praxis.

Nesse trabalho de auto-referenciação, como diz Niklas Luhmann, a manutenção de um índice de diferença, frente às organizações concorrentes, faz parte da função legitimadora. Não importa que a diferença seja apenas verbal, nem que, com o tempo, possa entrar em contradição com posições passadas (neste caso, a história deverá ser reescrita de acordo com uma "síntese superior").

É evidente, por exemplo, no caso das duas centrais sindicais que ambas fazem parte de um sistema, com uma semântica própria. Ao nível confederal, além disso, o sindicalismo encontra-se demasiado próximo da política para a prática de cada central não ter de marcar uma diferença, não só em relação à outra, como em relação aos próprios partidos. Embora a independência em relação aos partidos faça parte do código de legitimação das centrais, sabemos que a realidade pode ser muito diferente, obrigando a uma certa elaboração teórica destinada a fazer passar a nuvem por Juno.

Tanto a UGT como a CGTP não são livres, de facto, de terem o discurso que querem, porque sempre a justificação de uma dependerá do que a outra diz ou faz, de se saber apresentar essa prática como essencialmente distinta e, dadas as raízes históricas do sindicalismo, como moralmente deficitária.

Os "legítimos interesses dos trabalhadores" são o sol que ilumina esta ideia do Bem. O que esse sistema de tandem confederal implica é, porém, que esses interesses façam realmente parte da "ideologia" e que os fins reais de cada organização se refiram à própria organização, como nos propõe a teoria dos sistemas.

Definir, no contexto da complexidade política e social da sociedade moderna, e a cada momento, o que são, de facto, os interesses ( a curto, médio e longo prazo) dos trabalhadores não está, feliz ou infelizmente, ao alcance de nenhum plenário ou de nenhum secretariado. O que está ao alcance de qualquer um deles é, precisamente, a continuidade de um discurso auto-legitimador, a coerência ideológica e, sobretudo, o rendimento duma diferença formal zelosamente mantida com a central concorrente.

Neste tandem, as centrais sindicais dependem, portanto, uma da outra. O discurso da responsabilidade da UGT não seria verosímil (e legitimador), nem o da "superioridade moral" da CGTP, sem a constante referência à prática, real ou suposta, da rival.

Não podemos saber de que forma, por exemplo, a "unicidade" modificaria esta situação, mas não é razão para nos lamentarmos. A central única teria, provavelmente, muito menos capacidade para parecer responder aos problemas, donde a sua inevitável perda de legitimidade.

Dito isto, as razões para se preferir uma central à outra, em nome dum programa ou duma prática sindical, mantêm-se, evidentemente, válidas, embora num plano, de facto, lateral.


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01/10/08

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CONHECER E COMPREENDER

Mário Martins


“A filosofia é emocionante porque é a mais ampla de todas as disciplinas, explorando os conceitos básicos que atravessam todo o nosso discurso e pensamento sobre qualquer tema. Mas a filosofia também é frustrante porque, ao contrário das disciplinas científicas ou históricas, não oferece nova informação sobre a natureza ou a sociedade. A filosofia não procura proporcionar conhecimento, mas compreensão.”
Anthony Kenny
In História Concisa da Filosofia Ocidental *


Retomo o registo mais formal e a afirmação que fiz em artigo anterior (A Hipótese Deus - Periscópio de Junho passado) de que a questão da existência de Deus não é propriamente uma questão científica, mas antes uma questão racional, como tal aberta aos dados científicos.
Não porque pretenda, no presente artigo, ir mais além na apreciação do mistério do mundo, mas porque é um bom exemplo para ilustrar, por um lado, a distinção entre conhecer e compreender e, por outro, o facto de, muitas vezes, não se tirarem as devidas consequências das afirmações produzidas.
Resumidamente, o conhecimento científico que hoje temos indica-nos que o universo tem idade (cerca de 13.700 milhões de anos), mas existe uma corrente da física teórica que, não pondo em causa a idade, defende a existência de mais dimensões além das quatro que conhecemos e de um conjunto infinito de universos, o multiverso.
É preciso, agora, compreender isso de o universo ter idade ou de haver um número infinito de universos, e compreender é tirar consequências dessas afirmações científicas (a última apenas teórica e não estabelecida):


  • Se o universo tem idade e o significado clássico de “tudo o que existe”, então precisa do sobrenatural para explicar o seu nascimento;
  • Se o universo tem idade mas o significado restrito (de acordo com a abordagem científica actual) de “nosso universo” ou “universo conhecido”, então deixa em aberto a questão de precisar ou não do sobrenatural para explicar o seu nascimento, conforme a conclusão (se for possível concluir…) venha a ser que é único ou que, pelo contrário, existe um número infinito de universos;
  • Nesta última hipótese, se o universo tem idade mas brotou de outro universo, numa sucessão infinita, então não precisa do sobrenatural para explicar o seu nascimento, detendo a natureza, nesse caso, a propriedade divina da eternidade;
  • Em suma, a natureza ou é finita e precisa de Deus, ou é eterna e confunde-se com Ele.

Como se vê, sendo embora a ciência, incontestavelmente, o modo mais seguro e profundo do conhecimento, ela não esgota a abordagem racional seja do que for, quer dizer, não dispensa, antes solicita o esforço de compreensão que é preciso fazer, não só, desde logo, do próprio processo científico e do contexto em que o mesmo é efectuado, como também das suas implicações, teóricas e práticas, fora dele.
Se estas consequências fazem sentido, não pode deixar de surpreender a raridade da sua abordagem. Julgo que este facto radica em duas razões de sinal contrário, a saber, por um lado a influência e o consolo das certezas religiosas assentes em pretensas verdades reveladas e, por outro lado, a crença, mais ou menos consciente, de que este é um assunto que, como qualquer outro, a ciência há-de vir a esclarecer um dia. A questão da existência de Deus, ou de saber por que existe tudo o que existe, seria, assim, um assunto de gosto pessoal, logo indiscutível, uma vez que, verdadeiramente, o mesmo só estaria ao alcance de teólogos e cientistas. As duas razões, como disse, têm sinal oposto (uma é da ordem do sagrado, a outra é do profano), mas ambas, a meu ver, produzem o resultado idêntico de convidarem a não pensar e questionar.
Como não aceito verdades “reveladas” ou dogmáticas apenas me deterei na crença, ou na ilusão, de que a ciência há-de esclarecer tudo, ou seja, que a ciência nos há-de dar, no futuro, as certezas milenares que a religião nos dá hoje.
Mas só no próximo número, para não maçar ninguém…

* Editorial Temas e Debates - 1999


O FILHO DO DANGER MAN

Mário Faria



Alguns ainda se recordarão de uma célebre série americana que passou na RTP, nos anos sessenta. Era uma série policial. A personagem (Danger Man) corria todos os riscos para apanhar os maus. Estava para ao bandidos, gangsters e afins como o Gary Cooper para os índios. Não escapava um.

Quando estive em Angola, a logística era “servida” por via terrestre por MVL : um comboio composto de camionetas apoiado por carros de combate que depositava nos diversos aquartelamentos todo o tipo de materiais e de alimentos secos ou embalados, enquanto por via aérea, em pequenos Cessnas, recebíamos os alimentos frescos.

Tínhamos direito a duas vagas no voo de retorno, que aproveitávamos, sempre que podíamos, para dar uma escapadela até Luanda.

Um dos pilotos mais conhecidos da companhia aérea que prestava esse tipo de serviços era o Danger Man. Viajar com ele era uma aventura. Gostava de mostrar as suas habilidades e sempre que podia não deixava de picar para observar movimentos de populações, manadas de elefantes, ou simplesmente passar uma tangente a uma qualquer árvore solitária, que vaidosamente o desafiava em cima de um morro mais ou menos despido de vegetação.

No último voo que fiz com ele, apanhámos um fortíssimo temporal. Recebemos a informação que o aeroporto de Luanda estava fechado, e o homem ia-me prevenindo para me preparar para uma aterragem forçada e o que devia fazer nessa circunstância. Acho que o Danger Man estava a medir a minha capacidade de resistência ao medo. Felizmente, que não durou muito o tempo em que tive de mostrar ser possuidor de sangue frio, porque recebemos a boa nova que o aeroporto de Luanda estava reaberto e que nos poderíamos fazer à pista com segurança. Como me senti aliviado, naquele momento.

Foi a última vez que fui seu companheiro de viagem. Saiu, e foi para a África do Sul, segundo me constou. Foi substituído por um outro piloto que era o seu contrário. Bastante mais jovem, muito sereno, nada dado a exibicionismos e muito calado. Passou a ser conhecido, entre nós, como o filho do Danger Man.

Regressava de uma operação, já tínhamos sido apanhados pelas viaturas na base de apoio que nos serviu de suporte e onde tínhamos deixado uma secção de reforço, quando o som de uma forte rajada de metralhadora rompeu o silêncio e a calma. Atirámo-nos todos para o “soalho”. Sabíamos que estávamos relativamente perto do quartel e, talvez por isso, ou talvez por alguma experiência adquirida, ninguém respondeu ao fogo. Ultrapassado o primeiro susto, verificámos que aparentemente estava tudo bem, e tratámos de ver o que se tinha passado. Depressa descobrimos : o atirador da Breda, o único que se manteve no seu lugar, viu uma jibóia gigante e, por sua livre iniciativa, resolveu atirar a matar, para ficar com uma recordação para mais tarde recordar. E não foi meigo, atirou uma salva tal que a metralhadora, ainda fumegava, quando nos aproximámos.

Foi um gesto irreflectido, uma leviandade imperdoável. Passado o susto, procurámos a jibóia, e houve quem tivesse aproveitado para tirar fotografias de recordação. Tínhamos uma grande recepção à nossa espera no aquartelamento e tivemos que explicar tudo direitinho.

O acto não teve piores consequências, porque nesse dia houve um acidente na pista. O trem de aterragem ficou danificado e o piloto ficou impedido de voltar a Luanda. O piloto era o filho do Danger Man. O rapaz ouviu o tiroteio e ficou em pulgas. O pessoal veio ter comigo e resolvemos, com alguma maldade, contar uma história “ligeiramente” diferente dos acontecimentos ocorridos. Foi assim : contamos-lhe que tínhamos sido atacados pelo grupo do Chinês Manuel (um guerrilheiro super famoso da UPA), mas que os tínhamos posto em debandada utilizando a nossa última manobra : o salto mortal com rajada. O nosso rápido contra-ataque pela forma, rapidez e poder de fogo confundiu-os atemorizou-os, ao ponto de fugirem quase sem reacção. Narrámos, ainda, que não tínhamos a certeza se tínhamos feito “baixas”no IN, mas que havia muito sangue na picada e na “entrada” do capim.

Fomos mauzinhos, mas era uma pequena vingança dos medos que nos provocavam quando viajávamos naqueles teco-tecos aéreos. O alvo não merecia. Ao jantar ainda comentávamos a façanha com novos pormenores que serviram para enriquecer a façanha. O filho do Danger Man se não estava aterrorizado, manifestava claros sinais de preocupação.

Por fim, lá lhe contamos parte da verdade. Cansado da operação fui-me deitar, mas sei que os meus camaradas ficaram com o piloto durante toda a noite por que o homem não conseguiu pregar olho. Não ficou zangado, e ganhámos um novo companheiro sempre que nos deslocávamos a Luanda.

Na última vez que jantei com ele, perguntou-me muito sério se essa história do mortal com rajada era prática habitual e se o fazíamos com frequência. Foi tudo brincadeira, disse-lhe. Não ficou muito convencido, e referiu que nunca mais esquecerá aquele dia de tiros, de temores, do avião aleijado na pista, da conversa, da nossa “leviana” boa disposição, na inesquecível luminosidade criada por uma lua cheia de felicidade e nas muitas estrelas cadentes que nos vieram visitar, o que o deslumbrou e jamais esquecerá como confessou, aquela noite, naquele aquartelamento em Quibala Norte (zona de Bessa Monteiro), vértice de um triângulo que formava com Nambuangongo e Nóqui, e que era conhecido pelo Triângulo da Morte.


Em Nambuangongo o tempo cabe num minuto
em Nambuangongo a gente lembra a gente esquece
em Nambuangongo olhei a morte e fiquei nu. Tu
não sabes mas eu digo-te: dói muito.
Em Nambuangongo há gente que apodrece.

(Manuel Alegre)


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OS HOLOCAUSTOS PRIVADOS

Alcino Silva

O Cerco de Leninegrado no Museu de História de S. Petersburgo



Um acaso da vida levou-me um dia até um cemitério da antiga Leninegrado, hoje S. Petersburgo. Um espaço imenso onde se encontram 900 sepulturas com mil mortos cada, resultantes do dramático e criminoso cerco à cidade pelas tropas nazis entre os anos de 1941 e 1943. O ambiente impressionava pelo silêncio apenas quebrado pela sereníssima música fúnebre que pairava sobre uma chama eterna e os braços estendidos da estátua representando a mãe-pátria devastada pela morte trágica dos seus filhos. Essa guerra sangrenta fez desaparecer aproximadamente 55 milhões de seres humanos da face da terra. Fuzilados, bombardeados, enforcados, gaseados, derretidos em ondas de calor, tudo valeu num processo de violência quase sem precedentes na caminhada da humanidade. Ao que se supõe aproximadamente 20% desses mortos, pereceram nos campos de concentração e extermínio essencialmente na Europa, dos quais, talvez metade, eram cidadãos de diversos países e que professavam a religião judaica. Os restantes, eram eslavos, comunistas, opositores, prisioneiros de guerra e todos aqueles que a girândola enlouquecedora dos nazis lançava nesses campos da morte. Por razões não totalmente explicitadas até ao momento, mas que se vislumbram numa campanha anterior à guerra, talvez até dos fins do século XIX, lançou-se mão de uma propaganda que fez esquecer 50 milhões de mortos, elegendo-se 5 ou 6 milhões para falar de holocausto nazi. Para além de uma distorção da história e dos acontecimentos é, sobretudo, uma grande falta de respeito para os outros 95% de seres humanos que morreram, pois quando a guerra mata, é quase indiferente a forma como se morre. Não se pode, em nome da ilusão mística de uma Terra Prometida, erguer em monumento mundial uma parte dos mortos e fazer de conta que a esmagadora maioria eram seres humanos de segunda e cuja morte é, digamos, até aceitável, compreensível. Quase que nos leva a pensar que os milhões de mortos que não professavam a religião judaica, não faziam parte da história, das nações, das comunidades onde estavam inseridos. Para estes não existiu nenhum holocausto, não foram imolados, ninguém lhes presta homenagem, ninguém se lembra deles, ninguém se horroriza. Apenas existiu um holocausto nazi, privado, particular e que atingiu os indivíduos de religião judaica. Aparentemente, ao longo destes 60 anos todos vimos alimentando esse silêncio em redor dessa imensa mortandade, sustentando essa falsa verdade de que os mortos verdadeiros foram aqueles 5 ou 6 milhões especiais. E para que esta espécie de farsa se complete, serão os sobreviventes desse holocausto particular, os seus filhos e os seus apoiantes, gente de nacionalidade diversa que em nome de um pretenso sonho milenar se instalam em pleno Médio Oriente em terra palestiniana e após a expulsão de 4 milhões dos seus habitantes vem instaurando o maior campo de concentração do mundo onde procedem a uma das maiores mortandades do nosso tempo, desrespeitando qualquer lei internacional e cometendo atrocidades sem limite. Para que a farsa se complete, todos os anos recordam…., o seu holocausto privado! Assim vem sendo desde 1948 com a complacência do mundo, com os nossos silêncios, com as nossas omissões. As mesmas que deixam os seus padrinhos à solta pelo planeta nas suas guerras particulares e criminosas numa espiral de violência e de mortandade que não deveria deixar de nos impressionar. Naturalmente que os proprietários destes holocaustos privados são democratas, pluralistas e os seus Estados realizam eleições, pelo que ficam desculpados das Guantanamos, Abu Graib, prisões secretas e clandestinas noutros países democráticos da Europa ou totalitários de outros continentes que funcionam como subcontratados da tortura. Em nome da nossa liberdadezinha privada, particular, muito nossa, do nosso estatuzinho, do nosso modesto mas sossegado conforto, vamos fechando os olhos, pelo menos, como escrevia Brecht, enquanto estiverem na casa ao lado. Movemos até um pouco para baixo o botão da televisão para a possibilidade de nos poderem ouvir e pensarem que vive aqui alguém. Olho para mim e pergunto: até quando? Até nos baterem à porta?


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