Mário Martins
“A filosofia é emocionante porque é a mais ampla de todas as disciplinas, explorando os conceitos básicos que atravessam todo o nosso discurso e pensamento sobre qualquer tema. Mas a filosofia também é frustrante porque, ao contrário das disciplinas científicas ou históricas, não oferece nova informação sobre a natureza ou a sociedade. A filosofia não procura proporcionar conhecimento, mas compreensão.”
Anthony Kenny
In História Concisa da Filosofia Ocidental *
Retomo o registo mais formal e a afirmação que fiz em artigo anterior (A Hipótese Deus - Periscópio de Junho passado) de que a questão da existência de Deus não é propriamente uma questão científica, mas antes uma questão racional, como tal aberta aos dados científicos.
Não porque pretenda, no presente artigo, ir mais além na apreciação do mistério do mundo, mas porque é um bom exemplo para ilustrar, por um lado, a distinção entre conhecer e compreender e, por outro, o facto de, muitas vezes, não se tirarem as devidas consequências das afirmações produzidas.
Resumidamente, o conhecimento científico que hoje temos indica-nos que o universo tem idade (cerca de 13.700 milhões de anos), mas existe uma corrente da física teórica que, não pondo em causa a idade, defende a existência de mais dimensões além das quatro que conhecemos e de um conjunto infinito de universos, o multiverso.
É preciso, agora, compreender isso de o universo ter idade ou de haver um número infinito de universos, e compreender é tirar consequências dessas afirmações científicas (a última apenas teórica e não estabelecida):
- Se o universo tem idade e o significado clássico de “tudo o que existe”, então precisa do sobrenatural para explicar o seu nascimento;
- Se o universo tem idade mas o significado restrito (de acordo com a abordagem científica actual) de “nosso universo” ou “universo conhecido”, então deixa em aberto a questão de precisar ou não do sobrenatural para explicar o seu nascimento, conforme a conclusão (se for possível concluir…) venha a ser que é único ou que, pelo contrário, existe um número infinito de universos;
- Nesta última hipótese, se o universo tem idade mas brotou de outro universo, numa sucessão infinita, então não precisa do sobrenatural para explicar o seu nascimento, detendo a natureza, nesse caso, a propriedade divina da eternidade;
- Em suma, a natureza ou é finita e precisa de Deus, ou é eterna e confunde-se com Ele.
Como se vê, sendo embora a ciência, incontestavelmente, o modo mais seguro e profundo do conhecimento, ela não esgota a abordagem racional seja do que for, quer dizer, não dispensa, antes solicita o esforço de compreensão que é preciso fazer, não só, desde logo, do próprio processo científico e do contexto em que o mesmo é efectuado, como também das suas implicações, teóricas e práticas, fora dele.
Se estas consequências fazem sentido, não pode deixar de surpreender a raridade da sua abordagem. Julgo que este facto radica em duas razões de sinal contrário, a saber, por um lado a influência e o consolo das certezas religiosas assentes em pretensas verdades reveladas e, por outro lado, a crença, mais ou menos consciente, de que este é um assunto que, como qualquer outro, a ciência há-de vir a esclarecer um dia. A questão da existência de Deus, ou de saber por que existe tudo o que existe, seria, assim, um assunto de gosto pessoal, logo indiscutível, uma vez que, verdadeiramente, o mesmo só estaria ao alcance de teólogos e cientistas. As duas razões, como disse, têm sinal oposto (uma é da ordem do sagrado, a outra é do profano), mas ambas, a meu ver, produzem o resultado idêntico de convidarem a não pensar e questionar.
Como não aceito verdades “reveladas” ou dogmáticas apenas me deterei na crença, ou na ilusão, de que a ciência há-de esclarecer tudo, ou seja, que a ciência nos há-de dar, no futuro, as certezas milenares que a religião nos dá hoje.
Mas só no próximo número, para não maçar ninguém…
* Editorial Temas e Debates - 1999
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