Nessa noite não pregou olho. Voltava-lhe tudo à memória em vagas ora quentes ora frias, consoante a ansiedade ou a felicidade lhe tomavam espaço.
Lembrava-se de tudo com nitidez, dos cheiros, dos sons, da boca seca, da pele arrepiada.
Voltar. Voltar à azáfama do antigamente, da correria velada, do tremor nas pernas, da paixão que lhe tirava o tino dos pés do chão, voltar a morrer por cada vez que subisse ao palco, voltar a sentir medo de se esquecer das linhas, voltar ao improviso da vida em meia dúzia de minutos quando a cabeça falhava e o coração desatado compunha palavras na sua boca que os outros engoliam como certas, as mais certas aliás.
Quando subiu ao palco a primeira coisa que fez depois de o pisar com o pé direito foi apalpar as cortinas, sentir-lhes a macieza e o peso dos anos, a absorção de muitas noites agora misturadas com um travo de naftalina. Afastou uma fresta e bateu-lhe na cara a plateia vazia. Fechou os olhos, encheu-a de gente anónima que de pé estalaram recordações e disse para si obrigado, obrigado e o som do bis encheu-lhe a barba rala e branca de um sorriso.
Quem o visse decerto acharia que chorava, ou que se entristecera, ou que tonto da idade espreitava o que não havia. Mas não, era só o brilho das luzes a reflectirem anos e mais anos a gastarem o cénico, as pancadinhas, as palavras supersticiosas, o gole de aguardente para enganar o frio do estômago, a troca de roupa no intervalo fumarento entre a pergunta da praxe sobre a bilheteira.
Chamaram-no: Se sabia o que fazer, onde se deveria resguardar enquanto os actores trabalhavam, a velocidade ao puxar o cordame para a abertura das cortinas, a atenção ao texto para o final dos actos.
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