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01/12/25

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva



Figueira da Foz. Ainda não alcancei o mar, o mar da Figueira como dizem os seus amantes, o mar daquela imensidão de areia que se espraia até Buarcos e nos faz perder o olhar em horizontes sonhadores. Por enquanto caminho por Coimbra B, enquanto existe, e aguardo agora um outro comboio, mais lento, mais ondulante, com essa serenidade que nos faz aquietar a alma. A saída é sobre esse arvoredo que esconde o rio. Passamos como se fôssemos em voo suave e ocorre-nos a canção vibrante, “do Choupal até à Lapa”. Talvez seja um cantar de todos os tempos, mas aquele que recordamos é sempre o irrepetível. Nesta composição de amarelo vestida, com reforços a vermelho, já não é a velhinha automotora azul em que viajaste, mas na minha imaginação, acredito que seja, pelo que vou como se sentisse o seu balouçar e o som do motor, quando o consumo de mais combustível é maior, e o fumo se espalha por esta planície verdejante. O Mondego também já não é o que foi, puseram-no manso e cortaram-lhe aquelas asas que estendia pelas margens dentro, em enxurradas de lama que deixava miséria em cima da que já existia. Aquietou-se pelos canais que rasgaram na terra e segue lento e ameno. Este comboio que me leva, volta a aproximar-se dele quando me apresso para sair, mas não o vemos, esconde-se atrás dos aterros. Olho em redor tentando redesenhar a paisagem que encontraste, mas nada é como outrora. Até o cenário paisagístico mudou, quase sempre para melhor. Alento-me para percorrer os quatro quilómetros que te levaram até à vila. Hoje já não jornadeamos distâncias tão longas, a não ser quando nos aventuramos no que chamamos hoje, caminhadas. O automóvel passeia por nós. Do tempo que por aqui te levou, talvez só exista esta serenidade que me envolve. É uma paisagem bucólica com um silêncio que nos procura e nos transporta para outros lugares. Se esta estrada foi a tua, já não se encontram as árvores centenárias que te protegeram nem consigo descortinar o ribeiro em cuja margem te sentaste num lanche vagaroso. Percorro agora as velhas ruas da vila, com esse sabor medieval que me sempre me cativa, na ascensão ao castelo. Que pena, não estares aqui, por todos os motivos e para veres como mudou o seu interior. Não o reconhecerias. De tudo o que falaste, de ter visto, já nada existe. É um jardim, cuidado, bonito, com caminhos desenhados. O que primeiro procurei foram as muralhas a oeste, a curiosidade de encontrar o quadro que pintaste na minha memória, dos campos de arrozais banhados pelos clarões brilhantes do sol que se punha. Está lá tudo, mas o painel mudou no cuidado com que agora semeia as pétalas de água nos campos e a estrela solar está longe de pousar no mar. Mas não é importante, pois sei o que desejava ver e é isso que o meu olhar encontra. Volto-me para o interior e os meus passos seguem em direcção à pequena igreja de Santa Maria de Alcáçova, na sua vetustez milenar que a época manuelina modificou, acrescentando arte à que já vestia. E enquanto com o olhar procuro aquelas pedras, este pensamento que albergo, trabalha a palavra alcáçova, e outra viagem se me depara, pois aqui conspirou o IV Afonso da primeira dinastia, com os seus vassalos, que na sua obediência partiram pelos campos adentro até às terras dos crúzios para cometer o crime dos crimes. Este Afonso, pode ter sido O Bravo, como ficou na história, mas foi um rebelde e nem sempre no bom sentido. Lutou contra o pai e mais tarde contra o filho, esse que viria a ser o I Pedro na realeza pátria, que nunca lhe perdoou ter enviado os seus bastardos decepar a cabeça da princesa galega, o amor da sua vida. De pouco valeu esta atitude a Afonso que IV foi da dinastia afonsina. De Constança Manuel, a rainha institucional, quase ninguém recorda, mas Inês, a princesa amada, está em Alcobaça num túmulo de mármore, que é uma joia gótica, como uma rainha. Regresso às muralhas e debruço o olhar de novo sobre o poente. Deixo-o à solta na procura do teu relato e ao sentir a tua falta, ocorre-me por momentos as palavras de Óscar Lopes nas suas cartas da prisão. O grande intelectual que foi, professor e investigador era ao mesmo tempo de uma simplicidade e de uma inteligência que deslumbrava. Nas masmorras da infame polícia da Ditadura ao longo de cinco meses, escrevia cartas onde expandia o amor que dedicava à sua companheira de sempre. Numa dessas páginas de letras, rememorando uma peça de Paul Claudel, escreveu, “Tu és minha sobre o leito da ausência e da impossibilidade!” Desço agora e com a luz da tarde a visitar-me volto a atravessar os campos molhados do Mondego e embarco na velhinha automotora que te levou. Quando se alcança a Figueira em dias de sol intenso, a primeira diferença que se sente para quem ruma do Norte, é a luz. Esta luminosidade já tem muito do Sul e os verdes já nos aparecem um pouco queimados. Chegaste de noite como disseste e uma surpresa aguardava-te, uma surpresa que sem o saberes seria o princípio de um tempo que não podias ter imaginado. A estação não mudou, mas sente-se nas suas paredes o renascer de outro tempo. Caminho, ou melhor dito, deixo-me ir, creio que estas eram as mais velhas ruas desta cidade. Procuro aquela onde esteve o teu viver temporário, mas as pequenas e velhinhas casas foram absorvidas pela modernidade, pelo menos, há uma nova claridade que deixa perceber um melhor viver. Onde estará, se ainda existe, a placa marmórea onde lias as palavras de João de Barros? Mas encontrei o teu Café da Sacor onde devoravas os nacos de sol em manhãs distantes. A pequena aldeia de Buarcos parece resistir a uma dessas ondas que tudo levam, mas o tempo tudo muda, as mentalidades também, apenas as acções humanas, aquelas que conduzem aos corredores do poder onde se escutam os tambores da guerra, essas permanecem, apenas rejuvenescem no nível da violência. No mesmo instante em que estes pensamentos germinam, alcançam-me as palavras de Alain Corbin, na sua “História do Silêncio”: “No passado, os ocidentais desfrutavam a profundidade e o sabor do silêncio. Consideravam-no como condição do recolhimento, da escuta de si mesmo, da meditação, da oração, do devaneio, da criação; sobretudo como lugar íntimo do qual a palavra emerge.” No passado! Vou tentar alcançá-lo, esse “lugar íntimo”. O postal segue amanhã.

 

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