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01/12/25

A ETERNIDADE

António Mesquita



"Deve o bom pintor pintar duas coisas principais, isto é, o homem e o conceito da sua mente; o primeiro é fácil, o segundo difícil, porque se há-de representar com gestos e movimentos dos membros."
(Leonardo da Vinci)


A RTP apresentou, há pouco tempo, um documentário sobre Leonardo da Vinci, o paradigma do génio. Se pensarmos noutros grandes vultos da arte ou das ciências, nenhum há que se lhe compare na vastidão dos seus interesses. O que conta mais: a sua pintura, os seus desenhos ou os seus primeiros passos em engenharia, anatomia ou aeronáutica?

Claro que não há ninguém que desconheça o seu retrato da "Mona Lisa" e o  enigmático sorriso. Mas nem na pintura ele se ficou pela tradição ou a imitação dos seus predecessores. E desde que, em 1911,  um carpinteiro italiano,  Vincenzo Peruggia, por motivos patrióticos (achava que a pintura pertencia à Itália) levou o quadro debaixo do braço para casa,  parece que o mundo descobriu a maravilha.

E o que há nesse sorriso para dentro? Pela epígrafe somos levados a pensar que o único gesto nesse retrato e a sua perfeita imobilidade é aquele sorriso. Com esse esboço de gesto, quase imperceptível, percebemos que há uma mente por detrás a desafiar a posteridade com o seu possível significado. Nenhum modelo, naturalmente, consegue disciplinar-se ao ponto de sorrir todo o tempo. Será, portanto, essa uma absoluta intervenção do seu criador. É uma mensagem para nos confundir até à eternidade.

Sobre outro dos seus mais célebres trabalhos, a "Última Ceia" no refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, por que se arriscou Leonardo a perder a sua memória utilizando  uma técnica inovadora mas precária acima de tudo? Não quis pintar a fresco, como era usual, mas usou a têmpera dita "seca" sobre gesso, o que tornou as cores mais vibrantes, mas  com o resultado da obra ir desaparecendo com o tempo, apesar dos sucessivos restauros. João Bénard da Costa assistiu à abertura ao público durante  um desses restauros (de 1977 a 1999), "nos anos oitenta".  Eis o seu testemunho, depois de referir que já em 1568, Vasari escreveu que "a obra de Leonardo está em tão más condições que pouco mais se vê do que uma mancha fosca":

"Vi o triângulo equilátero da figura de Cristo, a forma indestrutível. Vi o perfil efeminadíssimo de Filipe, o mais alto de todos. Vi Tiago Menor, o único da família de Jesus, segundo alguns até seu irmão, visivelmente inspirado no mesmo modelo que serviu para a imagem de Cristo, dos doze o mais bonito, com os cabelos louros tão bem penteados. Vi o suavíssimo João, o único tão imóvel quanto Cristo, o único que não gesticula. Mas vi sobretudo o Senhor, sentado de costas para a maior das três janelas, com o espaço todo à direita e à esquerda, sem ser tocado por ninguém e sem tocar em ninguém, abertamente sozinho." (...)

"S. João, sempre segundo o mesmo Evangelho, estava reclinado no peito de Jesus, como discípulo amado que era. Pedro faz-lhe sinal para que ele interrogasse Jesus e soubesse quem era o traidor. João assim fez e Jesus respondeu: "É aquele a quem Eu der o bocado de pão ensopado." E, molhado o bocado de pão, tomou-o e deu-o a Judas."

"Mas Leonardo não viu a cena como quase todos os pintores e comentadores a viram, nem sentou Pedro longe de João, o que "naturalisticamente" explicaria o pedido, que Pedro, de onde estava, não teria podido fazer. Pela primeira vez, na história de uma representação da Última Ceia, João não está reclinado no colo do Senhor, mas muito afastado dele, inclina-se para a direita, ouvindo S. Pedro, que se levantou do seu lugar. Este, João e Judas formam um outro triângulo, em que Pedro passa para trás de Judas, para falar ao ouvido de João. Judas, virado para os dois (único que volta as costas ao espectador), não pode deixar de ouvir o segredo. A não ser que o momento representado seja posterior a ele, hipótese que ao 7º minuto me comecei a pôr. Ou seja, João fez a pergunta a Cristo. Este já respondeu e é essa resposta que João, deixando o colo do Senhor para se aproximar de Pedro, transmite ao futuro papa, sem curar de Judas, que, incauto, já foi identificado e já não pode fugir. Mas nem todos o sabem àquela mesa e por isso tanto se dividem os grupos: os apóstolos, à esquerda do Senhor (mais longe de João, Judas e Pedro) em imensa agitação, protestam inocência; os da direita estão gelados pela descoberta. Por isso, a mão direita do Senhor retira-se da de Judas a quem deu o pão e a mão esquerda fica aberta sobre a mesa, no último sinal de oblação. Por isso, também, o olhar de Cristo é o único olhar que não vemos e não nos olha. Só a boca e os braços abertos exprimem a solidão suprema, nimbada ao fundo pela luz crepuscular, a mesma luz da transcendência, essa que, no mesmo ano, Bramante filtrou na cúpula de Santa Maria delle Grazie. Nunca tanta sombra deu tanta luz. Um segundo de tempo num infinito de espaço. Foi, também, o que me foi dado. E mais não peço e mais não quero."

A "Ceia" tornou-se assim uma obra ideal  cuja integralidade e originalidade apenas podemos imaginar. Que artista alguma vez sacrificou o seu legado a essa espécie de ironia desvanecente que é a obra em permanente desaparição? 

Voltando à citação dum dos seus Cadernos, que meios julgava Leonardo poderem aceder à realidade do pensamento? E como os movimentos do corpo poderiam, sem subterfúgios, representá-la? A certeza que o anima é a mesma dos seus estudos sobre a natureza, do vôo dos pássaros à circulação sanguínea. Ele acredita, na esteira do aristotelismo, que os segredos da vida podem ser desvendados pelo estudo e pela análise/dissecação. Estava a séculos de compreender a desilusão einsteiniana. Um optismo puro e sem limites move a sua vontade de aprender.

É isso que o torna humano, a par dos percalços da sua vida e da sua sexualidade.

A grandeza de Leonardo é incomensurável em termos locais e históricos. E se o humano é a medida de todas as coisas, poucos como ele se aproximam do sobre-humano por estar tão à frente do seu tempo.

O PÃO ENSOPADO

FOI SÓ UM ACIDENTE de Jafar Panahi



De noite, um condutor  com a mulher  e a filhita atropela um cão e a criança não se cansa de acusar o pai.

Estas personagens nunca mais aparecem no filme. É um prólogo, e como todos os prólogos anuncia e resume o que se vai seguir.

Depois, é a cena do mecânico Vahid que numa garagem avista um cliente coxo que lhe parece o torcionário Eghbal, de quem teve a infelicidade de ser uma das muitas vítimas. Com uma carrinha abalroa o homem e dá-lhe umas pancadas que o deixam inconsciente. No deserto,  abre-lhe uma cova e começa a cobri-lo de pazadas de terra, até que o homem protesta que não é o polícia que o outro julga que ele é. 

Seguem-se vários encontros com outras vítimas de Eghbal, com este amarrado num caixote dentro da carrinha. Os mais exaltados não têm dúvidas e querem acabar com ele. Ao procurarem a casa do polícia, deparam-se com a mulher nos trabalhos de parto e uma criança que os encanta. Levam a parturiente ao hospital e separam-se com o ódio esbatido e fica o mecânico e outra das antigas vítimas com a incubência de decidirem sobre o destino do prisioneiro. Este acaba por confessar, num estado de puro delírio, que é, de facto, Eghbal que tem muito orgulho nisso porque é um patriota e um bom mulçulmano, Em vez de o matarem, os outros dois deixam-lhe um canivete para se soltar e dizem-lhe que a estrada fica perto.

É aqui que o prólogo ganha sentido. Porque assim como o condutor não teve culpa que, com pouca visibilidade, o cão se atravessasse na estrada, o adepto do regime fez aquilo que se esperava de quem "atravessava a estrada". 

Concordemos ou não, a ideia duma máquina regendo a condição social  como metáfora política não deixa de ser sedutora. É a história do "pão ensopado" na "Última Ceia". 

O algoz é perdoado porque os seus captores não querem ser iguais a ele. 

A ambiguidade não deixa de nos interrogar e o regime iraniano não se zangou porque, embora com o filme proibido, deixou a equipa regressar ao seu país.


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