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01/08/20

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva

summer red poppy field


Estava parado, há longos minutos, cerca de cento e trinta metros no interior da ponte, próximo das grades, mãos nos bolsos e com um olhar perdido, algures em frente e em baixo. Quem o visse interrogar-se-ia sobre o porquê de sorrir, um sorriso longínquo, fechado, mas sonhador. Na verdade, deixava apenas a memória correr em viagem recuando a dias pretéritos de quarenta anos antes. Após o telefonema do Serra, no final do dia, compareceu no local previamente acordado e na hora estabelecida. Para ele, ficava a expectativa do que viria a seguir. O companheiro apareceu com o ar fatigado de sempre, uma certa tensão nas palavras ciciadas, acrescentando-as de gravidade e motivação. Deixou-lhe um ferro com um bom metro de extensão embrulhado e explicou o funcionamento e o que se pretendia. Marcou-lhe novo encontro para o alvorecer do dia seguinte e a senha para identificar a pessoa que o acompanharia. Despediram-se e restava aguardar agora que a noite prosseguisse o seu destino. Mentalmente visitou os trajectos a percorrer, os cuidados a tomar e a sucessão de actos a realizar para que aquela tarefa tivesse o seu êxito sem perdas. Caminhou devagar, em direcção a casa, no sossego protegido pelas árvores centenárias de copa ampla que formavam uma cobertura de túnel sobre a rua. Ainda a noite não tinha terminado o seu tempo quando se levantou e se preparou para sair acompanhado de tudo o que necessitava. Na hora indicada estava no local e a identificação perante o outro jovem da sua idade decorreu dentro da normalidade. Caminharam juntos, mas falando pouco, abordando apenas sobre o que e como fazer o que os juntava. Na entrada da ponte, observaram-na em toda a sua extensão e parecia reunir as condições adequadas para a realização do acto com o menor risco possível. Caminhavam agora em tensão, atentos e concentrados. Quando em baixo avistaram a rua, a saída do túnel e o cais, consideraram o espaço certo. Chegara o momento de agir com rapidez e sem falhas. Desembrulharam o ferro e desdobraram-no para um comprimento que passava a ser o dobro do que trazia e aqui surgiu a primeira dificuldade, ao desdobrar o ferro, este, sobre a dobra não ficava com o aspecto rectilíneo necessário. Esforçaram-se por disfarçar aquela espécie de nó que poderia comprometer todo o acto que se desejava, mas o tempo urgia. Havia agora que passar o ferro pelo exterior das grades e amarrá-lo junto ao passeio. A cada minuto aumentava o risco de surgirem pessoas. Alcançada a fase de amarração, suspenderam por momentos a tarefa, tentando dissimular a sua presença à passagem de um carro eléctrico em direcção à cidade. O último acto, consistia em acender uma mecha, a qual após consumir o fio onde se desenvolvia, iria fazer desdobrar totalmente o pano enrolado no ferro e deixar ver uma enorme bandeira vermelha com os símbolos do trabalho. Mas no arder da mecha, já deveriam estar a afastar-se a largos passos. Retardaram o afastamento para adquirirem maior certeza que tudo funcionaria como previsto e só então atravessaram a ponte. Deram a volta e dirigiram-se para a travessia inferior, procurando dessa forma certificar-se da abertura do pano vermelho. Contudo, a obscuridade da madrugada, a neblina existente e a longa distância da observação não lhe permitiram ter a certeza do êxito da acção. Arriscaram. Atravessaram a ponte de baixo, subiram a longa escadaria e voltaram à parte superior da ponte. Entretanto, tinham passado já trinta minutos do momento anterior e o movimento de pessoas e de carros eléctricos era já maior. A tensão aumentava de tal ordem que engolia o medo. Confirmaram o que suspeitavam, a mecha interrompera a sua progressão na dobra do ferro e o pano não abrira. Tentaram de novo, mas não estavam a conseguir. A aproximação de uma pessoa fê-los interromper. Enquanto um se afastava com ar distraído, o outro simulava o apertar os cordões de uns sapatos de pala. Logo que aquela pessoa se distanciou o suficiente, não hesitaram, puxaram o ferro e tentaram desembrulhar manualmente a bandeira. Deitaram-se no passeio e com a mão estendida para o exterior da ponte empurraram o pano. Sem ter a certeza de o terem conseguido, afastaram-se com rapidez. Suavam, naquele fim de madrugada frio e austero de Novembro. Para sempre tinha ficado a dúvida, ter-se-ia desenrolado a bandeira? O tempo passou, os carros de combate beijaram o Tejo numa manhã de Abril e a esperança brotou como as papoilas vermelhas na Primavera. Quarenta anos depois, numa manhã de Sábado enquanto viajava para Norte escutava um programa da Rádio que dava voz a muitos que se tinham mantido ocultos na longa noite obscura, de «céus cinzentos e astros mudos» e naquele programa, escutava-se um homem, na altura ainda jovem, que tinha passado longos anos na cidade imerso entre o viver das gentes, e quando lhe pediram que desse exemplos do que faziam, é então que ele diz, «um dia no aniversário da grande revolução, promovemos uma acção que consistiu na abertura na ponte, de uma bandeira vermelha com os instrumentos do trabalho e ali ficou grande parte da manhã, aberta, até ser retirada pelos serventes dos abutres». Quando regressou à cidade, nesse dia, visitou a ponte, aquele espaço onde tudo tinha acontecido e o sorriso que não lhe abria a boca, mas acendia o rosto, traduzia o pensamento que sussurrava a si próprio: «afinal tinha aberto, a bandeira, naquele dia tão distante».

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