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01/08/20

UMA ENCOMENDA PARA ESPANHA

António Mesquita

(Viridiana de Luís Buñuel, 1961)


Este filme de 1961 já tem uma longa história, desde a proibição pelo regime de Franco que, no entanto, tinha convidado o realizador, naturalizado mexicano, a filmar em Espanha, numa tentativa abortada de "aggiornamento" cultural (era uma oportunidade imperdível para o exilado de mostrar todo o seu arsenal de malícia e génio paródico), à excomunhão pelo Vaticano, baseada, sobretudo, na paródia da "Última Ceia" de Leonardo, com o 'flash' das saias levantadas, como suprema blasfémia.

Viridiana (Sílvia Pinal) é uma noviça pressionada pela sua madre superiora a visitar o tio (benfeitor do convento e, talvez, na esperança duma grande doação), antes de ele morrer. A postulante, contrariada, acede, mas espera-a uma prova difícil. O vellho Don Jaime (Fernando Rey), com o argumento que a sobrinha lhe faz lembrar a defunta mulher que expirou na noite do casamento, assedia-a a casar-se com ele, a ponto de a drogar com a ajuda de Ramona, a governanta, e de se deixar tentar  pelo estupro para a dissuadir de seguir os votos. Apesar de protestar depois que nada tinha acontecido de facto, a jovem ganha-lhe horror e faz a trouxa de regresso ao convento. Don Jaime troca-lhe, porém, as voltas com o seu suicídio. As suas intenções são ditadas para uma carta que, sem que se saiba porquê, o faz sorrir, antes de se enforcar. Este enforcado não é movido pelo desespero, é tudo o que se pode dizer. 

Viridiana, confrontada com  o acontecimento, considera-se culpada, de algum modo, por esse suicídio e abdica dos seus votos de clausura, dedicando-se, de ora em diante, a recolher os pobres das redondezas. Don Jaime reconheceu no artigo da morte, um filho ilegítimo, Jorge (Francisco Rabal), que ali se instala com uma companheira de quem se separa pouco depois para se ocupar da governanta.

Mas eis que, na ausência de Viridiana e de Jorge, chamados pelos deveres legais, os miseráveis se entregam à mais debochada das comezainas, com todo o luxo guardado nos aparadores dum fidalgo rural. Viridiana, de regresso, surpreende-os e é a debandada. A aprendiz de monja não sei se fica mais desapontada pela fuga dos seus pobrezinhos do que pela consciência que eles manifestam da sua transgressão e desmerecimento, passando, assim, de objecto que serve à edificação da virtude alheia a pecadores cientes da sua falta. Ruindo essa ilusão, Viridiana não encontra dentro de si a força para continuar a sua "obra" e sente-se perdida, cedendo à sedução do primo galanteador. 

Os censores de Franco recusaram a primeira versão da cena final. Mas reescrevendo o "script", a entrada de Viridiana  no quarto em que o primo joga às cartas com a governanta, sugere um "ménage à trois", o que, segundo o comentário de Buñuel, anos mais tarde, era "ainda mais imoral".

Talvez Buñuel tenha sido lido pelo lado mais fácil da iconoclase, e o que se deve perguntar é, pelo contrário, se a sua leitura da hipocrisia humana e o seu anti-clericalismo não procederão antes de uma visão mais exigente e mais verdadeira do ideal evangélico. Se, no fundo, a sua intransigência não corresponde a uma valorização extrema do evangelho, colocando-o muito acima do proselitismo, quase a um nível só alcançável pelos mais puros e os mais simples, como que o inverso da fábula contada por Orson Welles da rã e do lacrau para explicar a "força maior" que toma conta da vontade dos "predadores" na sociedade. Apesar de ter pedido à rã para o ajudar a passar o rio, a meio da travessia, o lacrau não resiste a ferrá-la, como única resposta dizendo que era  mais forte do que ele e, assim, ambos se afundam.

Buñuel só nos relembra que "a carne é fraca" e que não há virtude que se conquiste uma vez por todas, nem hábito que não adormeça a primeira centelha do espírito. É verdade que nenhum poder se afirmaria, senão camuflado e em nome duma qualquer doutrina ou religião. Por isso, o evangelho que tanto glosa o mestre hispano-mexicano só podia ser subversivo.

Não pode deixar de ser significativo que o realizador, nesta obra feita à medida para o contexto espanhol, se tenha abstido da sua veia surrealista, do costumado onirismo dos seus outros filmes europeus. Aqui impera a clareza e o realismo.

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