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01/04/19

CHUVA É CANTORIA

António Mesquita



"Quando agora olho para o filme, sinto alguma alegria ao perceber que ele em nada contribui para o estereótipo de filmar os índios como se fossem fósseis vivos”
JOÃO SALAVIZA

Salaviza e Renée Messora filmam uma história de vida dos índios krahô, na aldeia da Pena Branca, estado de Tocantins, no Brasil.

Um rapaz de 15 anos, Ihjãc (Henrique, em português), adoece e põe-se a falar com os mortos. Essas vozes e o espírito personificado pela arara cometem-lhe o ritual da 'tora', uma festa  para encerrar o luto do pai, mas ele teme, ao mesmo tempo, tornar-se xamã. O médico da localidade mais próxima, Itacajá, diagnostica-lhe hipocondria e Ihjãc  vai adiando o regresso à aldeia, com medo do seu 'destino'.

Enquanto vagueia pelas ruas de Itacajá, com a sua poeira, o seu  ruído e, sobretudo, a omnipresença dos altifalantes de feira sente a falta do coro dos insectos nocturnos e do grito das aves da floresta natal. Não é por acaso que este contraste nos aparece tão chocante. É um modo mais subtil de defender a ideia denegada da 'pureza' dos índios. Como diz Salaviza; "Filme realista acima de tudo, “Chuva...” não deseja “cristalizar uma pureza indígena” que ali possa ainda existir (ou ser encontrada pelos olhos do branco) desde o século XVI."

Finalmente, Ihjãc regressa à aldeia para cumprir a obrigação da festa do luto. Depois, vêmo-lo diante da cachoeira onde falava com a arara e o espírito dos mortos e mergulhar nas águas sem voltar a aparecer. Devemos concluir que esta 'solução" para o seu medo do xamanismo significa que, apesar de tudo, a cultura (branca) dominante já o tinha separado da sua comunidade, ao ponto de já não poder acreditar no papel do xamã, mas também não querer nem poder trair o seu povo?

"O seu discurso (de Bolsonaro) contra os indígenas é tenebroso.", diz o realizador,  mas o verdadeiro perigo para a mitologia dos índios,  mais do que  a política, parece ser o da contaminação das culturas, porque Ihjãc já foi tocado pelo mundo envolvente.

Ainda Salaviza: "É preciso, ao invés, reconhecer os krahô sem preconceitos: sabem mexer em telemóveis, têm garrafas de água em cima da mesa, as mulheres gostam de pintar as unhas dos pés... E até há palavras de português que já introduziram no seu vocabulário e em seu proveito. Eles não são menos índios, nem há uma perda cultural, pela inclusão que fazem desses elementos no seu quotidiano, antes pelo contrário, muitas vezes há até um reforço da sua cultura pela absorção e subversão destas coisas que vêm de fora”.

Será que essa identidade índia depende da vontade de resistir e que a verdadeira mudança não começa pelos actos mais triviais do quotidiano, como moldar-se a uma outra língua ou usar um telemóvel? Nesse sentido, tampouco se pode falar 'numa comunidade em vias de extinção".

Enfim, "Chuva é cantoria na aldeia dos mortos" é um filme muito estimulante.


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